7.3.08

Céu da boca

Estava deitada na cama, rodeada de livros, com meu cachorro adormecido no chão e enrolada nas cobertas. Era de tarde e tudo inspirava paz. Comecei a comer banana machucada, com mel e farinha láctea. De repente, um pedacinho da farinha grudou no céu da boca e cai numa gargalhada. É que fui transportada, imediatamente, para os tempos de minha infância em que recebia na escola saquinhos de farinha láctea e ficava brincando de falar de boca cheia e tirava com o dedo a farinha grudada no céu da boca. Bons tempos. Lembrei-me que me escondi atrás do armário da sala, junto com uma amiga, quando vieram dar a vacina de varíola. Fomos as últimas a receber a injeção.
Essa minha amiga vivia andando de bicicleta pela rua e eu morria de inveja da liberdade dela, já que minha mãe não me deixava fazer muita coisa. A minha amiga morria de inveja dos cuidados de minha mãe comigo, pois a dela havia morrido quando ela só tinha um ano. Era bem branquinha e tomava pratos e pratos de sopa de feijão porque minha mãe dizia que isso a deixaria mais morena.
Crescemos juntas. Vivemos a adolescência entre confidências e suspiros. Foi ela quem me incentivou a quebrar tabus e a ter minha primeira noite de amor com meu namorado. Estive ao seu lado quando seu pai morreu. Também estivemos juntas em casamentos, partos, abortos, separações e mortes. Curtimos muitos feriados juntas, tomando cafés intermináveis em mesas cheias de cuscuz, queijo e tapioca.
Seguimos caminhos parecidos que, de repente, transformaram-se em inconciliáveis. Já não conversamos, nem gargalhamos, nem choramos juntas. Quando nos encontramos, trocamos beijinhos, falo com outras amigas e ela lê revistas de moda.
Continua branquinha e a farinha láctea ainda teima em grudar no céu de minha boca.