3.10.08

Então, é Primavera













Organizamos uma exposição de fotografias com flores do nordeste brasileiro, do Japão e do Canadá, registradas por dois fotógrafos: uma mulher bem jovem e um homem maduro.
Percebi que a sensibilidade não é algo que se adquire com a idade. Jovens podem ser bem sensíveis e, com suas atitudes, interferir no mundo para que esse seja melhor e mais bonito. Apesar da diferença de idade dos artistas, não se conseguia distinguir quando a foto era de um e quando era de outro. Essa descoberta me encantou e me encheu de esperança por dias melhores: os jovens de hoje serão os maduros do amanhã e eles estão muito mais preparados que nossa geração para a construção da harmonia entre os povos e para uma postura de respeito à natureza.
Enquanto arrumávamos o local da exposição, várias pessoas que estavam participando de outras atividades no espaço colheram flores pelo jardim e vieram nos ajudar na decoração. Mais um momento de encantamento e aprendi que o belo realmente transforma lugares e pessoas.
Ambiente acolhedor, boa música, flores nas fotos e nos vasos, sucos, saladas e tortas, incensos, velas, e, principalmente, convidados sensíveis à estação das flores. Não importa a idade, não importa o lugar, com sua exuberância de cores e cheiros, a Primavera sempre nos convida para um novo recomeço, lembrando-nos que a vida e sua magia devem ser celebradas.

1.10.08

Autoria

Reunião da escola. Pais aflitos porque seus filhos não estão atingindo todas as metas pedagógicas. Educadores angustiados orientam os pais para que vasculhem escondido as bagagens de seus rebentos procurando bebida.
Saio perplexa. Que mundo é esse? Qual a relação construída por pais e filhos na contemporaneidade? Pensava eu que seria algo baseado na confiança, na liberdade e no amor. Pais são amigos, são confidentes, são o porto seguro e não, agentes do serviço secreto.
Outra reunião de pais. Professores das diversas disciplinas apresentam os objetivos trabalhados e o quanto as turmas estão aquém do que foi planejado. Só querem amar, diz um; estão indisciplinados, diz outro; vocês precisam obrigá-los a estudar, tem o vestibular, o mercado exige.
Mais estupefata estou. Em que mundo vivo? Será eu a única alienada ali? Tento provocar uma reflexão sobre a não importância das notas, sobre o quanto é importante estarmos focados na formação da cidadania, no espírito críticos desses jovens que daqui a pouco tempo serão adultos exercendo o seu papel no mundo. Por que ninguém se pergunta se esses alunos, nossos filhos amados, estão felizes? Por que o foco é o sucesso? Por que ninguém ali se lembra da época maravilhosa dos nossos 15 anos?
Estou lendo um livro que fala sobre os conceitos freudianos: complexo de Édipo, castração, o grande Outro, o filho como falo da mãe. Essas reuniões de pais e mestres na escola comprovaram a teoria. O êxito do filho, nos moldes estabelecidos pela sociedade capitalista, significa que a família foi competente na educação. Ninguém está vendo o estudante como Sujeito, como autor de sua história. Ele continua preso na posição de objeto com a função de atender os desejos do Outro. Será preciso uma longa jornada, cheia de dores, doenças, depressões e lexotan, para que a pergunta primordial se instale: qual é o meu desejo?
Conheço jovens que estão na contramão da onda. Um deles lê muito, muito mesmo, tem postura crítica, é solidário, criativo, inteligente e carinhoso. Apresenta muitas dificuldades ortográficas e questiona o sistema educacional vigente. A escola sugere aulas de reforço e um acompanhamento mais de perto dos pais para que faça as fichas de leitura dos livros trabalhados em sala de aula. Outro jovem só tira notas boas, questiona o mundo, é sensível e carinhoso, usa calças lá embaixo, deixando a cueca aparecer e tem tranças no cabelo. A família da namorada não o quer como genro, pois parece um garoto irresponsável e drogado. Uma jovem é estudiosa, passou no vestibular, é alegre, cheia de vida e tira suas máscaras assumindo suas escolhas. As amigas a acusam de só pensar em si e se sentem ameaçadas com sua liberdade. Imagino o quanto deve ser difícil para esses três assumirem os seus desejos e não se submeterem ao que foi determinado por uma sociedade hipócrita, cujos membros fogem de suas verdades como o diabo foge da cruz.
Até quando vamos continuar privilegiando nossos medos? Até quando vamos carregar conosco nosso maior inimigo que é a liberdade que temos de escrevermos nossa própria história?

30.9.08

Fragmentos

Andava pelo centro do Recife quando vi um homem de meia-idade escrevendo com pedra numa lousa o valor de algum produto que iria vender. De repente, virou-se para uma senhora que estava perto e gritou:
- Ô, Creuza, 4trocentos tem quanto Os?
Na hora que escutei a pergunta, sorri maravilhada com sua inteligência e encantada com a riqueza da língua. Mesmos signos e inúmeros significados. Lembrei-me do inconsciente freudiano. Resolvi que escreveria um texto sobre o que tinha presenciado e fiquei matutando como grafaria o falado sem perder a originalidade. Pensei, pensei e, nas minhas limitações, não descobrir recurso lingüístico que me socorresse. Por isso, reproduzo a sabedoria popular:
- Ô, Creuza, 4trocentos tem quanto Os?

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Campanha eleitoral pegando fogo em Recife. O prefeito, muito popular nas classes menos favorecidas economicamente, está sendo acusado de uso da máquina administrativa. Li no jornal uma nota que relatava a conversa entre dois homens do povo.
- Você viu a confusão que o prefeito se meteu?
- Vi. Tão dizendo que ele usou a máquina.
- Que máquina?
- Não sei direito. Parece que foi a máquina Xerox.

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Saiu no jornal uma pesquisa que afirma que mais de 80% das crianças que não sabem nem ler nem escrever freqüentam a escola. Uau! Surge a pergunta: as escolas fazem o quê?
Várias respostas. A culpa é dos alunos. A culpa é das famílias. A culpa é do governo. A culpa é dos professores que não se empenham para ensinar direito. Esta última foi dada por um especialista em educação. Penso, cá com meus botões, que esse cara é um babaca, que fica sentado atrás do seu birô, numa sala com ar-condicionado, sem andar quilômetros para ir até a escola que leciona, enfrentando sol, chuva e lama. Nunca enfrentou uma turma superlotada e quente, com bancas quebradas, alunos famintos e violentados. Nunca ficou imaginando, enquanto aluno, o que danado seria a tal da uva que todo vovô vê nas cartilhas e que ele não consegue decifrar “Vovô viu a uva”. Os desenhos do papel, que lhe dizem serem letras, não contam histórias com algum significado para ele. Será que a uva é parecida com a jaca? Ou será com a manga? Será algo como a vaca?
Imagino que para intelectuais que habitam apenas os livros o discurso para culpabilizar a precária formação dos professores brasileiros é confortável. A minha pergunta é: se todos os professores fossem capacitados num programa organizado pelo tal especialista esses dados mudariam? Acho que Paulo Freire é um dos que pode dar a resposta.