23.4.08

Fundo do mar

Há alguns anos, estimulada por meu marido, fiz um curso de mergulho com cilindro.
Não foi um curso fácil. O instrutor explicava e eu não entendia coisa alguma. Era como se ele falasse outra língua. Antes de irmos para o mar, treinávamos na piscina. Surtei no primeiro dia que pus o cilindro e mergulhei. Achei que iria sufocar, mesmo sabendo que a piscina era rasa e que não me afogaria. Foi horrível. Acho que engatilhei memórias de vidas passadas e do meu parto, já que fui puxada por fórceps. Houve ainda o teste de resistência à pressão, numa torre de 10m de profundidade. Até que este foi mais fácil.
Enfim, chegou o dia do batismo e comecei a me aventurar pelo fundo do mar. O percurso de barco até o ponto do mergulho é uma verdadeira tortura. Enjoei tanto que fiquei verde. Mas o desejo de conhecer o mundo mágico de Netuno me deu forças para resistir. O grupo estava todo muito excitado com a experiência. Finalmente, chegou a nossa hora, minha e do meu marido, de cairmos na água – um mergulhador nunca deve ficar sozinho, pois pode haver algum problema e o companheiro tem a obrigação de ajudar, ainda que tenha que compartilhar o seu próprio ar, na linguagem da turma, cachimbar – e lá fomos nós. Descemos devagar, segurando na corda, ouvindo apenas o barulho das bolhas de nossa respiração. Fizemos o ritual de batismo e ficamos livres para explorar o mar, numa profundidade de 25m. Tivemos 20min. de arrebatamento. O silêncio profundo, a lentidão dos movimentos, o colorido dos peixes e dos corais. Realmente, é um mundo dentro de outro mundo. Tudo é diferente. Um amigo meu, que havia feito mergulho antes, tinha dito ‘eu vi Deus’. Acho que descreveu a sensação de toda pessoa que entra nesse universo. É uma outra dimensão.
Fiz outros mergulhos. Vi um grupo de arraias. Vi naufrágios. Vi o colorido dos peixes e dos corais. Fiz curso de fotografia no fundo do mar. Vi cores mudando à medida que descíamos mais e mais – a realidade não existe, claro.
Num dos meus últimos mergulhos, tive um acidente. Já estávamos saindo do verão, onde as águas são mornas, límpidas e sem correntezas fortes, e o mar não estava lá tão amigo. Eu, que não tenho muita intimidade com a água, não conseguia navegar com desenvoltura, sentindo-me arrastada pela correnteza. Meu companheiro de mergulho não entendeu o que estava acontecendo e achou que eu estava com frescura quando pedia que segurasse a minha mão. Ficou irritado porque queria explorar o naufrágio, já que tinha um módulo mais avançado que o meu, e me soltou por uns instantes para entrar no navio. Fiquei ‘parada’ e percebi que as bolhas de ar estavam muito grandes, um sinal claro de que eu estava próxima da superfície. Logo em seguida vi a luz do sol e descobri que havia subido 25m em pouquíssimos segundos. Entrei em pânico e só ouvi a voz do instrutor na sala de aula ‘temos que subir bem devagar porque senão o nosso sangue vai fazer as bolhinhas da coca-cola e ... bum, explodiremos’. Quando coloquei a cabeça fora da água, tentei tirar o respirador e colocar o snorkel, com o objetivo de economizar ar. Porém, a máscara caiu e comecei a engolir água, pois me esqueci de inflar o colete e o cinto cheio de pesos me puxava para o fundo. Tive a certeza que morreria ali, afogada, e toda minha vida passou como um filme em apenas alguns segundos. Descobri que os relatos da TV eram verdadeiros! Eu havia sido arrastada pela correnteza para cima e para longe do meu barco. Percebi que havia outras embarcações por perto e comecei a gritar por socorro. Os tripulantes me pediam para eu nadasse para junto de suas embarcações, eu me esforçava, mas não conseguia sair do lugar. Pularam na água, para minha sorte eram bombeiros, e me levaram para o barco de um deles. Deram-me água, aqueceram-me e avisaram ao meu barco que haviam me resgatado. Fomos em direção ao meu barco e encontramos o meu instrutor na água, com bóias, pedindo-me para que saltasse e fosse conduzida para o barco onde estava o meu grupo. Eu não conseguia pular, pois na hora da morte só pensei que fora irresponsável, pois tinha três filhos pequenos para criar, e não queria me arriscar de novo. Mas não tinha outro jeito, criei coragem e pulei. Ele me segurou, levou-me para o barco e fui recebida com alegria. Meu companheiro, minha dupla, estava todo sem jeito, pois sabia que não poderia ter me deixado sozinha, isso contrariava as regras dos mergulhadores. Explicou que quando saiu do naufrágio me procurou e não me viu; saiu circulando todo o navio e nada de mim; seu tempo no fundo do mar estava acabando e foi para a corda para subir, pois achou que eu já havia subido sozinha (eu jamais faria isso, jamais subiria e o deixaria sozinho no fundo do mar); quando chegou ao barco e perguntou por mim, ninguém tinha me visto; começou a se preparar para descer novamente e o instrutor falou que quem desceria seria ele; no momento dessa confusão receberam a informação que eu estava em outro barco sã e salva; alívio geral.
Meu ex-marido, que também mergulhava com o mesmo grupo, perguntou-me uma vez, na frente do meu marido, quais as causas do grave acidente. Respondi que o meu marido havia tentado me matar. Sorrimos um sorriso amarelo, cheio de mágoas e constragimentos.
Meu marido nunca tocou no assunto, nunca me pediu desculpas, nunca reconheceu que não teve cuidado comigo. Sinto pior quando tenho certeza de que ele não agiria assim se sua dupla de mergulho fosse uma pessoa estranha. Essa situação foi uma das que mais experienciei o sentimento de abandono e solidão. Talvez, ali, o copo da nossa separação tenha quase transbordado. Hoje somos ex: ex-marido e ex-mulher.