30.12.09















Este foi um ano de fortes experiências e muitas dificuldades, financeiras, principalmente. Mas estas me aperreiam e não me doem, não tocam meus sentimentos, não chegam perto do que é importante para mim. O que me deixa triste, murcha mesmo, é quando percebo os monstros que habitam nas pessoas que amei, que amo, ou que poderia amar. Aí, sim, dói, e, muitas vezes, prefiro abrir mão dos meus ideais de justiça e de verdade para não encarar esta realidade. Vivi algumas situações assim. Chorei, me enrolei no lençol, fiquei quietinha, tomei banho quente. Aos poucos, recuperei minhas forças e segui em frente, pronta para novas decepções. É bom quando coisas assim acontecem porque temos a oportunidade de ver as pessoas como realmente são, sem máscaras ou jogos teatrais. Lembro-me de Darci Ribeiro dizendo que não gostaria de estar do lado dos inimigos que o venceram. Comigo funciona do mesmo jeito. E é preciso lembrar que a gente colhe o que planta e que tudo que a gente faz tem que aguentar as consequências. Ninguém fere pessoas e fica impune. A justiça humana pode até falhar, mas a Divina jamais falhará.
Não posso colocar na balança e dizer que estes momentos terríveis tornaram o meu ano ruim. Tive muito mais momentos fantásticos, cheios de amor, alegria, saúde, cumplicidade, companheirismo, tesão, solidariedade, prazer, aconchego, dengo, e tudo o mais que fadas e duendes nos trazem quando temos o coração aberto para estas surpresas simples da vida. Aprendi muito com meus filhos, meus tesouros, sobre a vida e a liberdade. Serei eternamente grata a eles pela forma carinhosa com que acolheram o amor da minha vida e, juntos, formamos uma família de verdade. Estou sofrendo, noites e noites ao lado do celular, para encarar que cresceram e que estão no mundo para o que der e vier. Dá uma saudade do beijinho que curava o dodói! Com meu marido, grande camarada e companheiro, tenho aprendido a beleza das pequenas coisas e o valor da paciência para as lutas sociais. Não tem sido fácil dividi-lo com o povo, mas ele não seria feliz se não pudesse realizar sua missão de vida. Meu pai me ensina a dor dos limites que a idade impõe e a sabedoria que se constrói na velhice. Gostaria de poder deitar a cabeça em seu colo e ouvir seus conselhos, como também, ouvi-lo cantar ‘que saudades de professorinha que me ensinou o be-a-ba’. Não dá mais e a lembrança desses momentos se mistura às lágrimas de saudade da época em que éramos uma família feliz e eu era apenas a filha. Também vivi momentos mágicos com meus irmãos, sobrinhos e sobrinhas, e familiares queridos, incluindo agora todos que pertencem à grande família do meu marido. Distanciei-me fisicamente de amigos amados, por vários motivos, e sinto muito a falta deles, principalmente delas, mas a dor que nunca vai calar é a saudade do meu amigo-irmão que se deixou capturar pelos espíritos africanos. Deu-me uma raiva de Deus. Trabalho com pessoas maravilhosas que estão sempre me ajudando e me apoiando nos desafios do cotidiano. Sou muito, muito, muito grata a todos que compartilham sua intimidade em meu consultório, pois me ensinam coisas que só poderia aprender ali. Lancei meu primeiro livro infantil e isso foi muito importante para mim porque agora começo a me ver como escritora.
E, claro, os instantes vividos em Maria Farinha superaram todas as expectativas que tinha sobre o que/quem é Deus. Este foi um capítulo especial do que vivi neste ano que termina.
Gosto de saber que estou sempre me reinventando. Com quase cinquenta anos, ainda namoro e adoro beijar na boca, beijo de língua mesmo, como adolescente enamorada. Durmo abraçadinha, pé-com-pé, com meu marido e fazemos muitas coisas juntos, além daqueles momentos só delícia, claro. É bom perceber que a vida, com suas dores, não me deixou amarga e sem esperança no que virá. Tenho muitos sonhos a realizar.
Não sei o que o novo ano trará de surpresas, de desafios, mas li outro dia uma frase que dizia assim: o homem pensa e Deus ri. Creio de verdade nisso. Tudo está interligado e vivemos experiências que precisamos para completar nosso processo de individuação. Quero viver pensando menos e deixando a intuição me guiar. Ela sempre acerta. E que Deus possa rir cada vez mais da minha ingenuidade e da minha alegria na entrega ao Sagrado.

28.12.09












Passou a agonia da festa de Natal e pude curtir, junto com meu núcleo familiar, o nosso Natal. Fomos para a casa de praia e realizamos o famoso ritual de renascimento. A mesa já estava preparada com os símbolos que representam nossos valores: água, vinho e o pão repartido, para que, em nosso lar, sempre haja o que compartilhar. Banho de mar, jogar fora e deixar o fogo transformar o que não queremos mais, agradecer o que sonhamos realizar no novo ano que se aproxima. Bruxarias que realizo há quase dez anos e faço questão de compartilhar com os que moram mais dentro do meu coração, como leite com sustagen e suco de vampiro. Além do ritual, ficamos felizes com as coisas simples que realizamos juntos. Sob as bênçãos de São Francisco e Jesus, cozinhamos um camarão delicioso, temperado com ervas de nossa horta, jantamos à luz de velas numa varanda de frente para o mar, reverenciamos os duendes do jardim, conversamos com maria-farinha, ouvimos o canto dos pássaros, ficamos preguiçando na rede, lendo bons livros e ouvindo boa música, tomamos suco de laranja num café da manhã banhado pela luz do sol, gozamos da liberdade de um passeio de barco na travessia para o Colina 77, barzinho que frequentei na adolescência e que tive o prazer de voltar ao lado do meu marido e dos meus filhos. Nada de extraordinário fizemos e gozamos da essência da Vida. Na volta, de havaianas, as legítimas, fomos às compras de bermudas, camisas e cuecas. Para completar o final de semana perfeito, a tradicional limpeza do lustre de cristal da sala de jantar. Agora, sim, depois da ceia de Natal com as grandes famílias, do almoço no dia 25 com meu pai, da limpeza do lustre e do ritual na praia, concluí mais um ciclo e estou pronta para o que virá.

27.12.09

Adoro cheiro de livro. Adoro folhear páginas e sentir em meus dedos a textura macia. Encanto-me com o fato de desenhos, as letras, quando arrumados de uma forma padrão, traduzirem os sentimentos do mundo. Tenho tanta coisa para contar. Estou sempre com livros perto de mim. Na cama, de pijama de algodão macio, cheio de desenhos de flores, durmo embalada pelos sons das palavras escritas naquelas páginas mágicas. Descobri um lugar especial para guardá-los quando adormeço: uma fresta entre o colchão e um pedaço da cama. Durmo e eles ficam ali, bem juntinho, embalando meus sonhos e velando meu sono. Apaixonei-me pela poesia de Manoel de Barros. Comecei a ler aquela liberdade toda e fui fisgada pela força da natureza e pela ousadia de sua escrita, com suas próprias regras gramaticais. Deu-me uma inveja. Eu, preocupada com as vírgulas e os pontos, e ele, lá, escrevendo do jeito que lhe dá na telha. Seus anos de vida fortaleceram suas palavras: Poesia é voar fora da asa. Lindo!
Também ando em companhia de Clarice, a Lispector, e me impressiono, cada vez mais, com sua enorme capacidade de revelar a complexidade do feminino escondida no cotidiano das mulheres. Quanta sede de viver está sufocada na água que lava a louça! Louca? Basta um cecidilha, um tracinho besta embaixo do cê, e tudo muda. Claro que sempre dá vontade de sair por aí, bebendo da vida em sua essência. Livre, louca, fazendo cada dia uma coisa diferente, descobrindo o que existe por trás do escuro, por trás da claridade que cega quando o sol nasce. Mas tem a louça na pia, as fraldas dos meninos, a gravata do marido, a água nas plantas, a comida do passarinho. Não se pode ser borboleta. Na maioria das vezes, ficamos periquitas em gaiolas abertas sem coragem de voar. Temos casa, comida, roupa lavada, ainda que tudo isso seja feito por nós mesmas, e a segurança de uma aliança no dedo. O desconhecido nos assusta e a rotina familiar nos dá a ilusão do útero para sempre perdido. E aí, a vida vai passando, o coração vai amornando, a alma vai adormecendo, devagarinho, sem que se perceba direito. Até que um dia, por um motivo qualquer, a vida vem e estoura tudo, num pedido desesperado de socorro. O que fazer? Ficar quietinha, esperando a vida adormecer de novo. E se as baratas chegarem antes de uma outra chance?

14.12.09


Como ser uma boa escritora? Ler, ler, ler; escrever, escrever, escrever; rever, rever, rever. Começar tudo de novo. É um trabalho lindo e muito solitário. As ideias chegam, pode ser até durante um banho se percebe o que está acontecendo direito. De repente, pumba, estão ali.
Por que nos testes vocacionais não aparece a opção escritora?
Como não perecebi antes que ser escritora é a minha vocação? Foram tantas as pistas, tantos os sinais. Sempre adorei livrarias, papelarias, aquele cheiro delicioso que só os livros têm. Desde pequena que tenho máquina de datilografia, blocos e canetas. Escrevi diários, poemas, pequenas estórias (à época, era assim que se grafava). No recreio, biblioteca. Melhor presente, livros. Momento mágico, chuva, cama, lençol e travesseiro, um bom livro.
Talvez, uma possibilidade de resposta, seja que não é fácil trilhar o caminho para ser autora da própria vida e de suas histórias. Precisei de alguns anos em companhia de Freud para ter a coragem de tirar máscaras e enxergar minha própria face.
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Estou com saudade de minhas amigas. Depois das mudanças que vivi, não as tive mais como companheiras de viagem. Hoje já consigo compreender o porquê do nosso afastamento. Acho que se sentiram traídas. Começaram sendo amigas de uma estudante recatada, que virou uma mulher independente no mundo dos bits e bytes, que virou psicóloga, que virou educadora, que virou empresária, que virou ongueira, que virou bruxa, que virou escritora. E, aí, cadê a estudante recatada? Como poderiam achar nesta, aquela amiga lá do início? Foram tantas que vieram, que aconteceram, que fica difícil saber quem é a mulher que hoje habita a amiga de outrora.
Isso sem falar na vida amorosa. Primeiro, tivera o nome de batismo; um nome grande, mas bonito, lindo mesmo. Com o primeiro casamento, primeira troca de nome. Não era mais T.S.D.V., agora, T.A. O tempo passou, separou-se, casou-se novamente: T.C., surgiu. O tic-tac soou por mais um período e veio outra separação, outro casamento e o nome agora era T.P.F. Quando parecia que tinha se aquietado, nasceu outra, nova: T.V.A., fruto de outra separação e outro casamento. Como deveria ser o seu nome depois de tantos nomes? T.A.C.P.F.A.? Será que este seria o nome que representaria todas as experiências da vida que tivera? Ou deveria ser T.S.D.V., pois, apesar das mudanças, sua alma permanecera a mesma?

6.12.09

Ilustração: Romero Andrade Lima




Tive a oportunidade de ouvir a apresentação do programa Mãe Coruja, coordenado pela primeira dama do estado de Pernambuco, Renata Campos. Fiquei muito feliz com o que vi e ouvi, pois acredito que as verdadeiras transformações que ocorrerão no nosso planeta terão que começar pelo útero. Claro que há as restrições características de um programa governamental, abrangente, que tem que lidar com uma cultura existente que ainda não absorveu todos os benfícios que seus objetivos tentam alcançar. Senti falta de um espaço para parteiras, para os famosos chás de nossas avós no cuidado com os bebês. Não percebi se há um enfoque na amamentação, pois como psi defendo com unhas e dentes a importância deste vínculo, não apenas para a saúde física, mas, principlamente, para a mental, na relação mãe-bebê. Também fiquei com questões sobre o acompanhamento psicológico das mães assistidas pelo programa e sobre a alimentação destas gestantes. Minha cabeça ficou cheia de ideias de parcerias com a sociedade civil, como o Rotary, que está presente em quase todos os municípios do estado. Há um cuidado especial para as mães que ainda estão na adolescência? Estimula-se o debate do planejamento familiar? Tudo isso que pensei, questionei, está relacionado a aspectos objetivos da concepção, gestação, parto e pós-parto, à saúde, propriamente dita.
Como Psicóloga, que trabalha dentro de uma abordagem transpessoal, considero de suma importância o período que o bebê passa no útero e, também, o momento do parto, pois vemos em consultório as consequências da desarmonia que ocorre nestes instantes cruciais de todo ser humano. Além disso, também trabalho com o Sagrado do Feminino, e fico sensibilizada para as oportunidades de resgate dessa força mágica que envolve a mulher quando gera uma nova vida.
Iniciativas como esta precisam ser valorizadas e apoiadas por toda a sociedade se quisermos construir verdadeiramente um mundo de paz.
Logo no início da palestra, Renata fez uma observação importante. Falou que esposa de médico não precisa estar ao lado do marido nas cirurgias que ele faz, que esposa de engenheiro não precisa entender de construção de prédios, mas que esposa de político não pode se omitir de estar ao lado do marido, desenvolvendo ações que o ajudem na realização de um projeto que contribua para a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Compartilho essa posição e acrescento mais ainda: esposa de político pode, e deve, contribuir com sua energia feminina, seu olhar singular, para que em cada canto do planeta, a vida possa retomar seu caminho de alegria, amor e paz.
Vamos fazer a nossa parte.

5.12.09

Saira do paraíso. Voltara à agitação da cidade, com seus engarrafamentos colocando todos dentro de garrafas. Começou a sentir um aperto no peito. Essa sensação ocorria com mais frequência. Abriu a pasta e viu um monte de folhas de papel, tudo contas para pagar. Observou que algumas já estavam vencidas. Lembrou-se da Bela Adormecida. Todo o reino parou enquanto a princesa hibernava em seu castelo. Por que não acontecera o mesmo com ela? Por que o mundo não parou um pouquinho enquanto se reabastecia, alheia às loucuras da sociedade moderna? Como um material concreto tão leve, folhas de papel, poderia pesar tanto sobre seus ombros? Foi tomar um banho. Observou teias de aranha no box do chuveiro. Providenciar limpeza. Gasolina para o carro. Calibrar pneus. Lâmpada queimada. Trocar. Limpar o lustre da sala. Tirar dinheiro para pagar empregada. Tirar dinheiro para farras dos filhos. Escovaram os dentes? Tomaram banho? Fizeram a lição de casa? Remédios para o pai. Ligar o arcondicionado. Levar paletó do marido para lavanderia. Dar banho no cachorro. Feira. Qual é mesmo a marca certa da manteiga? O biscoito certo? A bolacha certa? O sabão em pó certo? Ela sempre certa e quase louca, abafada por pressões do deve ser, tem que ser. Eu não TENHO nada, gostaria de berrar. Silencia. Na imaginação, conversa com as lavadeiras de seu jardim. Pergunta se têm tantas responsabilidades assim, com coisas sem importância. Ouve seus piados de volta e escuta a surpresa delas por perceberem que os humanos são tão pouco inteligentes, gastando a vida com uma rotina insossa. Lembra que tem pensado muito nessa história da vida, ao ser vivida, ser gasta. A cada dia que se vive, menos vida se tem. Como viver uma vida nova na vida que vive agora?
Tenta tomar um café quente, ler seu último companheiro de rede. Não consegue aquietar a alma. As palavras se tornam caracteres apenas. Bem que Freud explica e Lacan justifica, significante/significado. Sujeito barrado. Barrada, de si. Sua filha chega e precisa desabafar.
- Mãe, cê tá ouvindo? Parece que nem liga para meus problemas.
E será que alguém se importa com os seus? Amigas? Tomaram estradas diferentes quando cobrara uma escuta recíproca. Amores? Seguiram caminhos diferentes do seu. Seu coração começara a voltar-se para si. Não queria festas, encontros, compromissos, reuniões. O foco de toda sua ira era um objeto pequeno, que fazia um som familiar, mas que marcava o ritmo da vida no cotidiano dos habitantes deste pleneta à beira da morte: o relógio. O tic-tac, antes tão querido, agora despertava uma enorme angústia. Queria seguir o ritmo do biológico, das sensações, dos desejos. Percebera que estava tendo dificuldades de voltar para o corpo quando despertava bruscamente. Por onde andava sua alma nos momentos do sono?
Quem era ela? Filha de? Mãe de? Esposa de? Diplomada em? Lembrou-se de uma amiga que comentou que ela, a amiga, era mulher de árabe, pois o marido andava à frente e ela sempre alguns passos atrás; era assim no shopping, era assim na vida. Ficara triste pela amiga e agora também começara a ser perguntar se seus papéis, suas máscaras também não estavam sempre associadas a pessoas que não eram ela mesma. Tirar as máscaras, rasgar as máscaras, até sangrar, para que o sangue revele sua verdadeira face. Quem me roubou de mim?, leu isso na capa de algum livro, em alguma livraria. Quando me perdi de mim?, perguntou-se.
Começou a vomitar, ficou tonta, febril, sentiu fortes dores na cabeça e um grande aperto no peito. Basta, resolvera. Voltou para seu paraíso, deixando para trás todo o peso que carregava nos ombros.
Chegou à praia ainda a tempo de ver o sol nascer. O mar estava calmo, num movimento tranquilo de ondas. A água estava morninha e foi entrando devagar, deixando que seu corpo sentisse o prazer de ser embalado por aquele vai-e-vem suave. Impermanência. Os peixes, seus velhos amigos, saltaram à sua volta. Os belíssimos pássaros brancos passaram voando baixinho, na mais perfeita ordem, e cantaram a saudação de boas-vindas. Continou caminhando em direção ao horizonte. O sol ofuscou sua visão por um instante. Quando conseguiu enxergar novamente, viu uma jangada e lá estava um homem que acenava para ela:
- Eu não disse que iria voltar? Vim buscá-la. Relaxe. Agora quem vai cuidar de tudo serei eu.
Gostou da sensação de paz que a envolvia. Seguiu em direção à jangada. Por trás dela, um pouco mais acima, havia um outro amigo que sorria e dizia:
- Eu vi Deus.
Quis ir. Continou caminhando e, desta vez, não deixou a cabeça de fora. Dissolveu-se.

4.12.09

Foto: Roberto Arrais

Acordei cedo hoje, junto com o sol. Coloquei a mesa na varanda, preparei suco, pães. Acendi incenso e liguei o som com músicas da Senhora do Luar. Meditei um pouco. Tomei café, conversando com meu amado. Enquanto comíamos, fomo surpeendidos pelo canto de um bem-te-vi que veio passear em nosso jardim. Ele foi trabalhar e eu fui aguar a grama, as flores e as árvores que circundam a casa. Ao chegar na roseira, senti o perfume delicioso que emanava e me encantei com suas doze rosas que se ofereciam com delicadeza, como se dissessem:
- Este é meu Dom. Estou feliz por fazer minha parte no Universo.
Senti inveja das rosas. Não se perguntavam quem eram, de onde vieram, nem para onde estavam indo. Apenas eram e se entregavam aos prazeres de ser. E eu, tão perdida, sem respostas para muitas das perguntas que me faço agora.
Enquanto lavava a louça, vi um enorme navio passando pela janela. Estava tão perto que quase pude tocá-lo. Forrei a cama e comecei minha rotina de trabalho. Entrei no computador, li os jornais e os blogs de política, vi o que diziam os astros para hoje, verifiquei meus mails. Deitei-me na rede e parti para a segunda parte da minha rotina de labuta: li, li e li. Estou com o livro de Milan Kundera, A Arte do Romance, na tentativa de aprender com os mestres a fazer um texto que seja bom e que exerça sua função no mundo, transportando para suas páginas a imaginação e o coração de quem o leia.
Coloquei meu biquine e fui caminhar na beira da praia. O mar estava seco, ou seja, a maré estava baixa. Andei devagar, sentindo o vento no meu rosto, o calor do sol sobre meus ombros. Vi um bichinho bem pequeno, bem feio, cheio de patas, que carregava sua casa nas costas. Fiquei com pena dele. O mar me chamou para um mergulho e fui entrando com cuidado. A água estava bem morninha, como num chuveiro quente, só que morninha em toda aquela imensidão. As ondas faziam um balanço suave. Entrando ao meu lado estava uma maria-farinha enorme, com as patas azuis, seu típico andar de lado e as garras abertas prontas para me atacar. Seguimos juntas, respeitando o espaço uma da outra. Só deixei minha cabeça de fora e meu corpo sentiu as delícias daquele banho paradisíaco. Peixes começaram a pular ao meu redor. Pisei em algo que se moveu, em seguida, em algo áspero. Puxei-o para minha mãos com os dedos do pé. Era uma linda estrela do mar, com os cílios recheados de animais que se banqueteavam em seu corpo. De repente, um canto no céu e, rapidamente, como num mergulho, voando bem baixinho, um bando de pássaros brancos estavam em fila, numa perfeição matemática. Cheguei a procurar a régua que havia riscado a linha reta. O barulho de avião fez meus olhos se voltarem para o céu. Lá estava ele, bem alto, indo para algum lugar distante. Será que as pessoas que estavam nele tinham idéia da riqueza da vida que acontecia aqui embaixo? Relutei em sair da água, mas o dever me chamava.
Fui à horta, colhi tomates, manjericão e hortelã. Tomei cerveja, deitada numa espriguiçadeira, lendo novamente meu companheiro atual. Mais sons chegaram aos meus ouvidos: a música das enormes palhas do coqueiro, os piados das lavadeiras que vieram passear por nosso jardim, como se já fossem donas da casa. O sol foi dormir e a lua surgiu enorme e amarela dentro do mar, até parecia que o mar estava pegando fogo. Agasalhei-me, peguei uma xícara de café quente e me enrolei na rede para mais uma sessão de leitura. As estrelas no céu piscaram me provocando para nova etapa de trabalho. Hora de escrever. Agora, estou aqui, sentada em frente ao computador, tentando traduzir em palavras uma rotina simples, tranquila e extremamente inteira. Tao.

30.11.09









Fotos: Roberto Arrais
Os xamãs me ensinaram que posso perceber a energia de uma lugar através da presença dos espíritos que o frequentam. Se está cheio de seres de luz, então este é um local repleto de amor; se está vazio, precisa ser harmonizado, pois há trevas.
Olhando para todos estes espíritos no final de semana, encantei-me com a energia amorosa que existe em nosso pedacinho de paraíso. Pássaros cantam e passeiam em nosso jardim; árvores dão doces frutos; palhas do nosso coqueiro nos embalam com sua música; flores enfeitam com cores e perfumam o ambiente. Temos ainda as ondas do mar, as aves, as marias-farinhas, o sol, a lua, as estrelas, a água morninha. Este é o meu lugar Sagrado, o meu útero, o meu refúgio, para onde vou, na realidade ou na fantasia, sempre que quero me reabastecer, ou, simplesmente, ficar feliz e dissolvida no Todo.
Além de toda a riqueza da natureza, vivo momentos lindos ao lado de pessoas que amo, escrevo, leio, crio, invento.
Que este lugar seja, para sempre, uma dimensão mágica onde os desejos de todos se realizem!

23.11.09

E o ciclo da vida começa novamente





Acompanhei, de perto, o nascimento de minha sobrinha Sofia e, confesso, que fiquei maravilhada com a magia da vida. Por mais informações que eu tenha sobre todo o processo da concepção, espermatozóide e óvulo, do desenvolvimento do bebê no útero, do parto, não consigo sentir só o biológico no momento em que a vida explode num novo bebê que chega à Terra. Tem que ter um tantão de Sagrado ali. Chorei, emocionada, ao lembrar minha mãe que estaria enlouquecida de alegria se pudesse ver mais um dos seus a nascer. Para ser sincera, sei que estava ali ao nosso lado, claro que em uma outra dimensão. Lembrei, sem muita consciência, do nascimento daquele que agora era o pai, e de toda nossa fé para que sobrevivesse nos seus seis meses de gestação e fosse feliz. Sobreviveu, tornou-se uma criança linda, com enormes olhos azuis, e hoje é um adulto encantador que já gera novas vidas e salva outras tantas como médico. Honrou a chance que a Vida lhe deu.
Voltei no tempo e me vi na maternidade esperando por Gabi, depois Digo, depois Doca. Quanta alegria! Revivi, também, os momentos dolorosos dos meus três abortos e rezei por aqueles que não tiveram a chance de pertencer à nossa família. Fiquei louca para ter outro filho, agora com meu novo amor, mas pensei que já estou mais para avó. Os meus filhos foram todos frutos de muito, muito amor por meus maridos à época. Foi lindo ter Eduardo ao meu lado, esperando ansioso por nossa filhota, cuidando dela por um mês todinho e me apoiando no início do meu caminho como mãe. Também tive Almir vibrando por ser o pai de filhos tão lindos e me ajudando a ser uma mãe melhor. Todo esses filminhos passaram por meu coração numa fração de segundos, enquanto observava as enfermeiras prepararem Sofia para ir para o berço aquecido.
Aí entrou a Psi e comecei a questionar o que nós, ocidentais, estamos fazendo com nossos bebês. Nascem, tiramo-nos do lado das mães, enfiamos um monte de tubinhos por tudo que é buraco, deixamo-los sozinhos numa espécie de chocadeira quente. Fiquei observando os movimentos do corpo de Sofia, jogando mãos e pés à procura de algo que o sustentasse no vazio. Senti uma dor muito grande no peito. Poxa! Estamos fazendo tudo errado. Enfiamos tanta tecnologia nesse processo e nos afastamos do natural, do ciclo da vida em si. Resolvi que lutaria pelo resgate do parto com parteiras, da forma mais próxima da natureza, num verdadeiro ritual de mulheres, com a Deusa reinando absoluta. Vi uma enorme legião de mulheres, de todos os tempos, de todos os lugares, reunindo-se em círculo ao redor daquela que traz à vida um novo ser, ajudando-a com sua energia feminina. É assim que deve ser. Temos que resgatar o simbólico desse momento mágico.
Bem-vinda, Sofia! Que a Grande Deusa a proteja. Que a energia Feminina ilumine o seu caminho.

7.11.09

Nada do que foi, será, do jeito que já foi um dia






Faz algum tempo que não escrevo. Acho que andei calada porque ainda não havia conseguido colocar em palavras a dor que estava e ainda estou sentindo. Perdi um amigo muito querido, num estúpido acidente de carro, em Angola. Fecho os olhos e ainda o vejo adolescente me chamando para ver a lua na varanda. Consigo ouvir sua risada, olhar seu corpo remechendo por trás da cadeira de sua esposa, numa tentativa de dançar quieto num lugar. Adorava as estradas, adorava a reunião com a peãozada. Viveu do jeito que quis.
Conhecemo-nos há mais de trinta anos. Gostava de aperrear minha mãe, suspende suas pernas na garagem do prédio toda vez que ela entrava com o carro, insinuando que ela era munheca de pau. Também adorava vir de carona com ela e começar a falar coisas desconexas no carro. Não foram poucas as vezes em que viemos junto, a pé, do colégio, coonversando coisas sobre a transformação do mundo. Acompanhei de perto seu namoro com uma das minhas melhores amigas. Segurei várias barras de suas cachaças e farras. Lembro-me do seu vestibular, de sua formatura, do seu casamento, do filho. Ouço sua voz no meu quarto, quando enchia bolas para o aniversário de minha filha, dizendo que não acreditava que estava fazendo aquilo. Era a alegria em pessoa. E olha que tinha motivo para se derramar em lágrimas, pois havia perdido três dos seus irmãos por conta de uma doença genética. Detestava construir coisas pequenas, não suportava arquitetos brigando porque uma parede estava deslocada 10cm. Fez muitas estradas, aeroportos, tudo grande.
Assumiu o lugar de meu irmão mais velho e sempre puxou minhas orelhas quando não concordava com as loucuras que fazia. Se eu o tivesse escutado há alguns anos, não teria feito uma das maiores besteiras de minha vida:
- Ele não é homem para você.
Teimei, segui em frente, sofri. Com as voltas que a vida dá, afastamo-nos por causa dessa história que não teve um final feliz. Ficamos mais de dois anos distantes e senti uma tristeza enorme quando, nos mails que trocamos nos seus últimos dias de vida, percebi que parecia que ele não me conhecia mais. Apesar da distância, meu coração sempre nutriu muito, muito, muito, amor por ele. Não deu tempo de retomarmos nosso abraço, nosso colo amigo, nossas risadas. Não pôde conversar com meus filhos e aprender com eles o que ainda não sabia e também ensinar coisas que eles pensam que já sabem. A morte o roubou de mim. Queria envelhecer com sua amizade, contando-lhe minhas descobertas, ouvindo suas histórias. Fiquei com raiva de Deus.
Agora, não tenho mais meu Rico rio, rio que minha alma aprendeu a escutar. Meu rio foi em direção ao oceano e já se tornou água salgada. Deve estar feliz, pois adorava os mergulhos no fundo do mar. Quando mergulhou a primeira vez, ligou para mim e disse emocionado:
- Eu vi Deus.
Tenho certeza, Rico, que você O está vendo agora. Manda para Ele o recado de que nós, que ficamos aqui, estamos cheios de saudade e que exigimos que Ele o trate muito bem, pois não é todo dia que chega no céu gente com suas qualidades. Aliás, as lágrimas que escorrem pelo meu rosto se misturam a um sorriso maroto, pois já imagino a zona que você está fazendo por aí, agitando com sua alegria este lugar.
Daí você verá toda as verdades que as máscaras escondem. Conhecerá todas as situações. Protegerá seu filho, meus filhos, sua mulher, sua família, seus amigos. E, Rico, não deu tempo de espalhar que você morreu de aids para que sua viúva não tivesse mais companheiro algum. Lembra que você contava essa história e depois soltava aquela sua gargalhada? Nela, você não está gravado apenas em todas as células de seu corpo, mas está em cada pedacinho do seu coração e de sua alma, e, isso, ninguém, nem nada, é capaz de apagar. Fica tranquilo.
Não consegui chegar no seu enterro. Fiquei na maior dúvida se iria, pois tive medo de não suportar a dor. Fui com Gabi. Pegamos engarrafamento, demos voltas e mais voltas, não conseguimos achar o cemitério. Voltamos arrasadas. Dizia a ela que tinha que existir um motivo para não ter chegado até lá. Descobri depois e, quando nos encontrarmos, contarei. Boba, eu. Esqueci-me de que você agora tudo vê, tudo sabe.
Tem um pensamento de um autor, que me tirou da religião católica, que diz mais ou menos assim:
- Longe é um lugar que não existe, pois o encontro, depois de momentos ou de vidas, é certo para aqueles que são amigos.
Para você, meu irmão amado, meu abraço, minha saudade, minhas lágrimas. Prometo que, em sua homenagem, viverei, mais ainda, uma vida seguindo meus desejos.
Fica com Deus. Que pleonasmo triste! Fica em Paz.

19.10.09





Fotos: Roberto Arrais


Vivi experiências, nestes últimos dias, que trouxeram meu passado de volta e me fizeram refletir sobre a inexistência do tempo.
Coisas que aconteceram há anos, parecem que ainda estão no aqui e no agora. Lembranças, saudade, alegrias e dores, tudo junto mexendo com meu coração. Amigos, quase irmãos, num presente tão distante. Vendo o que olham quando me enxergam, não os reconheço, não me reconheço. Será que não sou como penso e sinto que sou? Será que me vêem através das lentes deles e aí não podem enxergar de verdade a minha alma e, sim, fragmentos de si mesmos? Não tenho respostas para estas perguntas e nem sei se quero entender tudo isso com a razão. Hoje, quero mais é escutar as coisas com o coração. Não aceito mais não dar ouvidos ao meu.
E, por falar nele, tive medo que tivesse um troço, ontem à tarde, quando recuperei vários pedacinhos preciosos dele que andavam longe de mim. Quando soube da notícia que voltariam para meu olhar, senti um aperto, uma emoção muito forte, comecei a tremer e a chorar. Tentei me acalmar e fui tomar um banho bem quente, ritual que faz milagres em mim. Depois, fui ao seu encontro. Não consegui logo procurar por eles, com medo de me acabar em lágrimas. Caminhei devagar, tateando, tentando descobrir onde estavam escondidos. De repente, vi-os em cima de uma mesa, num canto do terraço. O coração disparou, derreti. Senti que a saudade era recíproca. Quase nos abraçamos. Não consegui mais prender o choro e deixei que o que sentia explodisse ali, na frente deles. Dirigi-me em sua direção e, com delicadeza, comecei a tocá-los. Meus dedos passeavam por suas páginas, abria-os e lia as inúmeras dedicatórias que fui escrevendo ao longo dos anos. Ali estava guardada uma boa parte dos meus tesouros. Ouvi, novamente, a música das histórias que contava para meus amados, vi-os deitados em minha cama, de fraldas e com mamadeiras, senti o cheiro da colônia Johnson. Todas aquelas preciosidades voltaram ao meu presente. Isso já era um presente. Eu conseguia identificar um por um, pois tinham uma história única para contar, além daquela registrada nas palavras impressas. O tempo andou um pouco mais para trás e me vi, ainda criança, ouvindo as histórias lidas por minha mãe; depois, estava descobrindo o mundo na casa de minha tia. Passei o resto da tarde vivendo vários encontros amorosos.
Acalmai-me e pensei: gol de placa do ogre que me afastou deles por todo este tempo. Ele realmente soube como me fazer sofrer. Este ogre é muito inteligente e me conhece bem, sabendo exatamente como deve agir para me atingir e ferir. Descobri que vivi como uma mãe que tem seus filhos sequestrados e que passa os dias rezando para que estejam bem e que retornem em segurança.
Para muitos, aquilo era só um monte de livros. Para mim, tijolos que fui colocando na casa que é a minha vida. Estou, agora, aguardando o momento de compartilhar este tesouro com meus tesouros de vida e, juntos, recordarmos os momentos que vivemos juntos, sempre recheados de carinho e amor. Iremos dar boas gargalhadas e o ambiente estará recheado de ternura, esta energia maravilhosa que transforma tudo em magia.
Ainda existem pedacinhos de meu coração que estão longe, apartados pela força das sombras. Tenho certeza de que retornarão ao meu convívio, porque aquilo que o Sagrado uniu, homem algum separa.