5.1.11











Fotos: Roberto Arrais

Estou ficando mal acostumada no meu processo de escrita, pois tenho contado sempre com a inspiração das belíssimas fotografias do meu marido. É que fico com pena de não compartilhar o que vejo ao vivo e a cores neste paraíso e que ele registra de forma tão sensível com sua câmera amiga.
Acho que também quero mostrar as coisas que valorizo e que me tornam o que estou sendo neste momento. Sim, estou sendo, pois não consigo dizer sou, pois soa como algo definitivo, pronto, acabado, o que me é muito semelhante ao processo da morte. Vida é movimento, transformação, algo sempre por fazer. Gosto de conhecer detalhes secretos que coloco nas entrelinhas de meus textos, ou jogo de palavras, palavras com grafias iguais e sons diferentes - acho lindo isso -, observações que só alguns sabem do que se trata, às vezes, só eu mesma sei o segredo que revelo codificado nas frases de algo que parece corriqueiro.
Não sou perfeccionista e aprecio o inacabado, aquilo que torna minha vida e minhas coisas recheadas de singularidades. Por exemplo, dei de presente de aniversário para o meu marido um São Francisco de barro, do artista Zezinho de Tracunhaém, que dá as boas vindas aos amigos que chegam à nossa casa. Esta peça tem um detalhe que a torna única: os pés do santo estão com sapato e ele sempre é representado descalço ou com sandálias, ficando seus dedos à amostra. Por que o nosso está assim, diferente? Porque o artista teve um prazo mínimo para fazer sua obra e deve ter esquecido este detalhe. O São Francisco do meu marido tem uma história para contar e isso o conecta com o que está vivo, pulsante. Assim são os inúmeros objetos que alegram nossa casa; cada um deles têm um significado e não estão relacionados à moda ou ao que é chique. É verdade que a mistura de estilos faz com que tudo junto lembre um mercado, uma loja de antiguidades, um brechó, mas, para mim, isso é o máximo.
Além dos objetos, os animais, as plantas, os sons, os cheiros, as texturas, revelam-me a magia do Sagrado. Tenho escrito repetidamente que descobri que Deus é muito amostrado. São fantásticas suas criações. Até que crio coisas bonitas, mas não consigo nem amarrar seus chinelos. A possibilidade de conexão com a natureza tem sido o meu caminho para a religiosidade, pois vivo em constante estado de encantamento.
Enquanto escrevo o texto, um lindo bem-te-vi entrou em nosso quarto, sinto o sol aquecendo minhas costas e ouço o cantar dos guinés, sempre em bando, que passeiam pelo jardim. Por isso, também tenho repetido esta cantiga, fico o máximo que posso em casa, fugindo da loucura que é o estilo de vida da cidade grande. Tive ontem que ir a banco, shopping e, confesso, fiquei tensa. Não gosto da selva de pedra de Boa Viagem, não gosto daquela confusão de carros, odeio o barulho dos shoppings e, quando observo as pessoas trancadas ali dentro, só me lembro de um filminho da Turma da Mônica, onde o Chico Bento vai ao shopping e diz verdades profundas sobre sua experiência no retorno à vida no campo.
Há alguns anos realizei, com toda minha família, uma atividade na cidade em que nasceu minha mãe, zona agreste de Pernambuco, e, para minha surpresa, nenhuma da pessoas com as quais conversamos - crianças, homens, mulheres, adolescentes, idosos e idosas -, desejavam vir morar na cidade grande, pois achavam que era loucura o que viam quando a visitavam. Todas preferiam a forma de viver das cidades do interior. Não é a toa que o movimento de migração está se invertendo no mundo todo: das grandes cidades para a paz de uma rotina numa cidadezinha.
Mais uma vez, imitando Lenine, eu quero estar cercada só do que me interessa.

4.1.11










Olhando as fotos que tirei de biquine na praia com minha filha, constatei o óbvio: o tempo é implacável com nosso corpo, trazendo marcas da velhice em todos os pontos. A barriga já está flácida, há pele sobrando no pescoço e em volta dos olhos. Puxando à família de meu pai, ainda não tenho os cabelos brancos. Não é fácil se ver assim. Mas, por outro lado, é maravilhoso perceber o ciclo da vida ocorrendo tão pertinho da minha intimidade. Agora a bela deusa já não sou mais eu e passo o cetro do meu reinado, com muito orgulho, para minha filha, assim como, há tempos atrás, minha mãe passou para mim. É muito bom quando as gerações não rivalizam e a energia da Deusa Tríplice se expressa em toda sua plenitude. Gosto de ver que minha descendência é mais sábia que eu, além de mais bela, mais inteira, mais intensa, e, principalmente, mais livre.
Lembro, com certa tristeza, a conversa que tive com a mãe de uma amiga querida quando aquela me dizia que não aceitava a filha se transformando em uma bela mulher enquanto envelhecia.
Minha mãe se arrumava e ficava linda, reverenciando a Afrodite que nela existia. Com a energia desta deusa, também me embelezava, ensinando a mim e a minha filha, os truques da maquiagem e da combinação das roupas. Acho que foi a mulher que conheci que mais tinha em si todas as deusas integradas. Adorava a natureza, era a sensualidade em pessoa, excelente e poderosa dona de casa, uma verdadeira anja, sempre ajudando todo mundo, laureada no curso de Direito aos 60 anos, e de uma religiosidade pura que expressava na sua fé por São Sebastião, padroeiro de sua terra. Não rivalizamos e acolheu minha beleza e meu poder, ensinando-me o caminho que hoje trilho com minha filha.
Reverencio com alegria a energia feminina e o ciclo da vida.

3.1.11




Primeiro final de semana do ano e abençoada com uma rotina de coisas que amo fazer. No sábado, logo cedo, organizei o café da manhã, com direito a suco de laranja e um café bem forte, fiz os exercícios xamânicos, meditei, lavei pedras e cristais com sal grosso, troquei a água dos cálices, acendi incenso, ajeitei as flores nos vasos, escrevi, vi meu marido fotografando, li, observei a natureza, fiz leite para meus filhos, tomei banho de mar com minha filha, ouvi boa música e, para terminar o dia, jantei munguzá com champanhe. No domingo, também organizei nosso café da manhã, com a ajuda do maridão que também colocou lindos discos cubanos em nossa radiola, trouxe o vaso com arruda para o centro de nossa mesa, fiz exercícios xamânicos, li, meditei, escrevi, preparei chá com alho, limão e mel para meu filho dodói, fui fazer bruxaria na casa de uma amiga de meu marido.

Fazia tempo que não se encontravam, ela tem mais de oitenta anos e contam histórias de muita amizade na adolescência e juventude dele. Conversa vai, conversa vem, sua amiga comentou que gostaria de rever a irmã dele, não se viam há uns vinte anos.
- Simssalabim!! Bim!! Bimm! Realizem-se seus desejos.
Foi o que pensei bem dentro de minha cabeça (ou de meu coração?) e falei:
- Então, vamos agora.
Ela concordou em sair, apesar de sua imensa dificuldade de locomoção, consequência de um avc.
Quando chegamos na casa dos pais de meu marido a emoção tomou conta de todos. Uma alegria imensa invadiu tudo e ficamos tomando cerveja e beliscando deliciosos salgadinhos. Histórias e mais histórias surgiam das lembranças daqueles, hoje adultos maduros, que se viam como crianças num tempo em que tudo era brincadeira.
É assim, nas coisas simples, na realização dos desejos daqueles que cruzam meu caminho, que me sinto bruxa. A tudo isso chamo magia.
Voltamos para nossa casa e fomos nos refrescar na piscina. Meu marido leu o que havia escrito sobre a morte de seu irmão e juntos choramos um bocado. No almoço, preparamos, com meus filhos, deliciosas lagostas e, em volta da mesa, ao som dos Beattles, celebramos nossa família com champanhe.
Para completar a magia, uma visita à Livraria Cultura para comprarmos um guia de viagem, pois estamos indo visitar Neruda.
Esta é a parte mais mágica da história: não temos dinheiro sobrando no momento e conseguimos viajar, realizando um sonho de meu marido. Milhas, albergues e outras coisas simples tornaram esta jornada possível. Apenas me entrego e sigo o coração.
- Simssalabim!! Bim!! Bimm! Realizem-se seus desejos.

2.1.11












Há vinte anos meu primeiro marido se separou de mim. Tínhamos uma filha bem pequena, com dois anos, e aprendemos, todos três, a contornar as dores dos momentos de ausência. Um dos mais difíceis para mim era o primeiro dia do novo ano que se iniciava, pois ela sempre passou a virada de ano com a família do pai. Durante um tempo, passava na casa de praia do Janga, onde eu havia saboreado o seu primeiro ano novo ao lado do meu amado marido. Depois, as comemorações se transferiram para Tamandaré.
Não importando a distância, no primeiro dia do ano novo sempre fui vê-la, levar meu colo, meu beijo e tê-la um pouquinho em meus braços. Nunca foi muito simples este ritual que introduzi em minha vida. Doía chegar na rua do Janga, ambiente que já tinha sido meu, e perceber que agora aquilo tudo já não me pertencia. Chegava com o carro, estacionava na rua, ela vinha ao meu encontro, ficava grudadinha em meu colo e conversávamos disfarçando a dor. Às vezes saíamos para um sorvete rápido e depois voltávamos para que pudesse seguir suas férias e eu suportar o vazio de sua ausência em nossa casa. Não foram poucas as ocasiões em que tive que parar o carro, algumas ruas à frente, pois as lágrimas não me deixavam enxergar nada.
Quando já estava mais velha me contou que sentia muito minha falta ao perceber que todas as outras crianças estavam com suas mães ao lado e não tinha a dela ali. Foi duro escutar sua dor. Também eu sentia como se estivesse a abandonando, já que não poderia cuidar dela, trocar seu biquine, preparar seu leite e contar histórias nas hora de dormir.
Veio mais um casamento, novos filhos chegaram, a caravana aumentou e o carro seguia cheio para as tradicionais visitas na praia. Os anos foram passando, os rituais se repetindo e aprendemos a lidar com essa situação. Quando me separei do meu segundo marido, meus dois filhos com ele já estavam grandes e foi mais fácil repetir com eles o mesmo ritual. É um pouco mais complicado conciliar as praias, já que cada pai está num ambiente diferente. Sempre dou um jeito. Faz tanto tempo e ainda hoje choro quando entro em contato com o sentimento que experienciava àquela época.
Ontem, primeiro dia do novo ano, consegui ver todos eles. Os meninos só chegaram em casa perto de meio dia e fui fazer o nosso famoso leite batido, sanduíches, pão assado e ovo. Aí, sim, pude seguir para a praia e dar meu saudoso abraço na filha que longe estava. Fui, com meu atual marido, preparada para vê-la no carro, dar beijos nas suas bochechas gostosas e voltar para casa abastecida para mais um período de saudade. Foi muito melhor do que eu esperava. Tomamos juntos, eu, ela e meu marido, nosso primeiro banho de mar do ano! Delícia rir ao seu lado. A vida sempre cheia de supresas...
Ah! Ando pensando na pergunta que fiz: quando é que se é escritora? Uma resposta que tem feito sentido para mim, por enquanto, claro, é que se é escritora quando se sente uma necessidade visceral de traduzir em palavras o que se vive, o que se sente, o que se vê, o que se cheira, o que se toca, o que se sonha. Fico inquieta quando a brisa suave traz o perfume dos cajus para o meu corpo, pois não me sinto capaz de traduzir em palavras todo o encantamento que sinto quando isso acontece. Um dia chego lá.