2.5.08

Laços

Estava feliz. Iria para a terra de minha mãe fazer uma palestra para jovens. Ela nascera em uma cidadezinha do agreste pernambucano, uma região cheia de pedras, montanhas e muita água. Adorava ir para lá na minha infância comer manga e jabuticaba, andar de roda gigante na festa do padroeiro da cidade, brincar carnaval à noite no mesmo espaço que durante o dia servira para compra e venda de carne, participar da roda de cantoria com primos e tios assobiando em gargalos de garrafas e marcando o ritmo das músicas com um garfo, assar milho na fogueira e dança um legítimo forró pé-de-serra no alpendre da casa iluminada, ainda, por candeeiros.
A saudade me tomava, pois não visitava o lugar desde a morte de minha mãe. Sabia que o trabalho era o motivo aparente e que o que me deixava com o coração derretido era a possibilidade de reverenciar o meu amor por ela e devolver à sua queirda terra um pouco do muito que havia dado à sua família. Meu avô saiu de lá há muitos anos com a esposa e quinze filhos e veio para a capital para que pudessem estudar e manteve todos com a venda das frutas e verduras da terrinha santa. Agora somos mais de cem com o sangue das jabuticabas nas veias.
Preparei a palestra com cuidado. Queria que tivessem o melhor de mim. Escolhi uma roupa bonita. Levei mala porque iria dormir numa pousada já que ficaria muito tarde para voltarmos pelas estradas perigosas. Iria com um amigo querido, profissional que muito respeitava.
Saímos cedinho. Fiquei mais calada que de costume durante a viagem e completamente muda quando nos aproximamos da cidade. Lágrimas brotavam de forma incontrolada e só ouvia nos ouvidos da saudade as músicas cantadas quando estava com meus pais e meus irmãos e íamos chegando às terras de minha mãe. Meu coração disparou, ou parou, não sei dizer ao certo. Fui reconhecendo os lugares. Quase nada havia mudado nas ruas e casas. Mas eu tinha crescido e minha mãe já estava morta. Pedi para meu amigo me levar logo para a casa do sítio em que ficávamos. Tudo estava destruído e a casa em ruínas. No antigo banheiro crescia a árvore da preguiça. O açude, testemunha de muitos banhos, continuava lindo como se os anos não tivessem passado. Chorei, chorei, meu amigo me abraçou em silêncio, respeitando meu momento de dor, alegria e saudade. Fiquei quietinha por um tempo. Depois fomos ver as plantações de um agricultor e ele nos deu coentro, batata, melancia, mostrou-nos seus porcos, sua vaca, sua casa. Tudo com muito orgulho. Meu amigo me deu um ramalhete de coentro. Sorri com o carinho.
Fomos para a palestra, emocionei-me, chorei de novo ao contar que minha mãe rezava para que o avião que voava lá no alto do céu caísse para que pudesse vê-lo de perto. Transmiti fé, coragem e esperança para os jovens relatando a história da família. Aplausos no final.
Dirigimo-nos para a pousada e, para minha surpresa, meu amigo não quis ficar para dormir, preferindo arriscar-se na estrada. Não entendi, mas não questionei, pois estava completamente fragilizada depois do dia cheio de fortes emoções.
Assim que o celular voltou a funcionar, liguei para meu marido e avisei que estava voltando para casa. A viagem foi longa. Senti que meu amigo tinha me dado um presente inesquecível com aquele abraço. Ele havia compartilhado comigo um dos lugares mais secretos e sagrados do meu coração: o cantinho em que guardo a minha mãe. A partir daquele dia estaríamos ligados para sempre.
- Estou ansioso com essa viagem! Não entendo direito o que está acontecendo, mas sinto que ela mexe comigo. Isso é loucura, só somos amigos. Se ela desconfiar, nossa amizade vai por água abaixo. Fico querendo conversar com ela o tempo todo. Tenho necessidade de vê-la, de ouvir sua voz e sua risada. É melhor não dormir aqui hoje. Estou morto de cansado, mas a estrada vai ser mais segura do que essa pousada.
- Por que fui deixá-la ir nessa viagem maluca? Vejo como seus olhos brilham quando fala nele. Ainda não percebeu, mas está completamente encantada por ele. Devia ter feito valer minha posição de marido. Mas se ela descobre que morro de ciúmes, vou perdê-la. Ela defende tanto sua liberdade e é tão ingênua que não vai entender minha posição. Se eu falar sobre ele posso até espertar algo que nem sabe que sente. O celular fora de área e eu sem comunicação. Trim... Trim... Alô! Ufa! Graças a Deus ela não vai dormir lá. Está voltando para casa.
Três pessoas que conversavam e não estavam se comunicando verdadeiramente. A magia do não-dito é algo muito forte e cria realidades. Pena que só poucos acreditem nisso. Voltei para casa, é verdade, sem saber sobre os ciúmes de meu marido, completamente inocente sobre o que sentia por meu amigo, sobre o que meu amigo sentia por mim. Mas um laço muito forte havia nos unido para sempre. Cônjuge algum deve deixar um vazio desse ser preenchido por pessoas estranhas ao relacionamento do casal. O retorno à minha mãe seria um momento muito especial para mim e a pessoa que estivesse comigo construiria um elo indestrutível. Não demos a atenção devida ao fato. Aprendemos com isso. Voltei para casa, mas não voltei jamais para o meu marido.

28.4.08

Outra versão dessa metáfora do jumento é a febre dos concursos públicos. Investimos dinheiro e tempo em cursos preparatórios para concursos públicos na tentativa de garantirmos um bom emprego para o resto da vida. O que seria um bom emprego? O que seria uma vida boa? Todos os dias o mesmo trajeto, o mesmo cartão de ponto, o mesmo birô, a mesma rotina, o mesmo ritual de olhar o relógio esperando que toque o sino da liberdade? Não importa que a semana seja terrível, temos os fins de semana, temos as férias para fazermos o que realmente nos dá prazer. Essa repetição nos traz a sensação de segurança: não podemos ser jogados fora, pois há estabilidade no emprego; não precisamos dar nosso sangue, pois não estamos no mercado selvagem da competição das empresas privadas. O desconhecido nos assusta. Atrás do imprevisível está a certeza da morte. E tentamos fugir dela, como tentamos. A ilusão de que controlamos a vida, o cotidiano, faz-nos sentir com poderes para ludibriar a morte, o fim de tudo. Assim, voltados para o que está fora, fugimos de nós, fugimos da vida. E perdemos tanto por ficarmos enforcados com a corda do jumento. Como nos ensina Lenine, ‘ninguém faz idéia do que vem lá, do que vem lá’.
Em recentes viagens pelo sertão nordestino, vi muitos jumentos abandonados pelas estradas. Às vezes em grupo, outras vezes sozinhos, comendo capim ou, simplesmente, andando. Estavam soltos, sem corda alguma nos pescoços, sem donos, livres. O fato de não terem donos traduzia o abandono. Não havia alguém que cuidasse deles, que lhes desse comida e água, que lhes proporcionasse abrigo da chuva e do frio noturno. Poderiam seguir sem rumo pelo caminho que desejassem.
Fiquei pensando que algumas mulheres se sentem abandonadas quando não têm um dono – um marido -, para tomar conta delas. A aliança no dedo funciona como a corda no pescoço do jumento. ‘Tenho dono, sim, e ele cuida de mim, dando-me comida, proteção e abrigo’. Não sabem exatamente o que fazer quando estão por conta própria nesse mundão de Deus. Não se sentem com coragem de sair por aí descobrindo o que a vida tem para oferecer. Preferem a certeza do terreno conhecido, passeando apenas por caminhos limitados pelo uso da corda esticada do pescoço do jumento, que no caso das mulheres está transmutada em aliança no dedo, ainda que o preço seja a domesticação e a anulação de seus desejos mais secretos.
Ressalto que não são todas as mulheres que agem assim. Ressalto que não são todos os casamentos que são assim. Mas essa situação é bem mais comum do que se imagina. É impressionante como a liberdade assusta. ‘O que fazer quando sou livre?’