5.12.09

Saira do paraíso. Voltara à agitação da cidade, com seus engarrafamentos colocando todos dentro de garrafas. Começou a sentir um aperto no peito. Essa sensação ocorria com mais frequência. Abriu a pasta e viu um monte de folhas de papel, tudo contas para pagar. Observou que algumas já estavam vencidas. Lembrou-se da Bela Adormecida. Todo o reino parou enquanto a princesa hibernava em seu castelo. Por que não acontecera o mesmo com ela? Por que o mundo não parou um pouquinho enquanto se reabastecia, alheia às loucuras da sociedade moderna? Como um material concreto tão leve, folhas de papel, poderia pesar tanto sobre seus ombros? Foi tomar um banho. Observou teias de aranha no box do chuveiro. Providenciar limpeza. Gasolina para o carro. Calibrar pneus. Lâmpada queimada. Trocar. Limpar o lustre da sala. Tirar dinheiro para pagar empregada. Tirar dinheiro para farras dos filhos. Escovaram os dentes? Tomaram banho? Fizeram a lição de casa? Remédios para o pai. Ligar o arcondicionado. Levar paletó do marido para lavanderia. Dar banho no cachorro. Feira. Qual é mesmo a marca certa da manteiga? O biscoito certo? A bolacha certa? O sabão em pó certo? Ela sempre certa e quase louca, abafada por pressões do deve ser, tem que ser. Eu não TENHO nada, gostaria de berrar. Silencia. Na imaginação, conversa com as lavadeiras de seu jardim. Pergunta se têm tantas responsabilidades assim, com coisas sem importância. Ouve seus piados de volta e escuta a surpresa delas por perceberem que os humanos são tão pouco inteligentes, gastando a vida com uma rotina insossa. Lembra que tem pensado muito nessa história da vida, ao ser vivida, ser gasta. A cada dia que se vive, menos vida se tem. Como viver uma vida nova na vida que vive agora?
Tenta tomar um café quente, ler seu último companheiro de rede. Não consegue aquietar a alma. As palavras se tornam caracteres apenas. Bem que Freud explica e Lacan justifica, significante/significado. Sujeito barrado. Barrada, de si. Sua filha chega e precisa desabafar.
- Mãe, cê tá ouvindo? Parece que nem liga para meus problemas.
E será que alguém se importa com os seus? Amigas? Tomaram estradas diferentes quando cobrara uma escuta recíproca. Amores? Seguiram caminhos diferentes do seu. Seu coração começara a voltar-se para si. Não queria festas, encontros, compromissos, reuniões. O foco de toda sua ira era um objeto pequeno, que fazia um som familiar, mas que marcava o ritmo da vida no cotidiano dos habitantes deste pleneta à beira da morte: o relógio. O tic-tac, antes tão querido, agora despertava uma enorme angústia. Queria seguir o ritmo do biológico, das sensações, dos desejos. Percebera que estava tendo dificuldades de voltar para o corpo quando despertava bruscamente. Por onde andava sua alma nos momentos do sono?
Quem era ela? Filha de? Mãe de? Esposa de? Diplomada em? Lembrou-se de uma amiga que comentou que ela, a amiga, era mulher de árabe, pois o marido andava à frente e ela sempre alguns passos atrás; era assim no shopping, era assim na vida. Ficara triste pela amiga e agora também começara a ser perguntar se seus papéis, suas máscaras também não estavam sempre associadas a pessoas que não eram ela mesma. Tirar as máscaras, rasgar as máscaras, até sangrar, para que o sangue revele sua verdadeira face. Quem me roubou de mim?, leu isso na capa de algum livro, em alguma livraria. Quando me perdi de mim?, perguntou-se.
Começou a vomitar, ficou tonta, febril, sentiu fortes dores na cabeça e um grande aperto no peito. Basta, resolvera. Voltou para seu paraíso, deixando para trás todo o peso que carregava nos ombros.
Chegou à praia ainda a tempo de ver o sol nascer. O mar estava calmo, num movimento tranquilo de ondas. A água estava morninha e foi entrando devagar, deixando que seu corpo sentisse o prazer de ser embalado por aquele vai-e-vem suave. Impermanência. Os peixes, seus velhos amigos, saltaram à sua volta. Os belíssimos pássaros brancos passaram voando baixinho, na mais perfeita ordem, e cantaram a saudação de boas-vindas. Continou caminhando em direção ao horizonte. O sol ofuscou sua visão por um instante. Quando conseguiu enxergar novamente, viu uma jangada e lá estava um homem que acenava para ela:
- Eu não disse que iria voltar? Vim buscá-la. Relaxe. Agora quem vai cuidar de tudo serei eu.
Gostou da sensação de paz que a envolvia. Seguiu em direção à jangada. Por trás dela, um pouco mais acima, havia um outro amigo que sorria e dizia:
- Eu vi Deus.
Quis ir. Continou caminhando e, desta vez, não deixou a cabeça de fora. Dissolveu-se.

4.12.09

Foto: Roberto Arrais

Acordei cedo hoje, junto com o sol. Coloquei a mesa na varanda, preparei suco, pães. Acendi incenso e liguei o som com músicas da Senhora do Luar. Meditei um pouco. Tomei café, conversando com meu amado. Enquanto comíamos, fomo surpeendidos pelo canto de um bem-te-vi que veio passear em nosso jardim. Ele foi trabalhar e eu fui aguar a grama, as flores e as árvores que circundam a casa. Ao chegar na roseira, senti o perfume delicioso que emanava e me encantei com suas doze rosas que se ofereciam com delicadeza, como se dissessem:
- Este é meu Dom. Estou feliz por fazer minha parte no Universo.
Senti inveja das rosas. Não se perguntavam quem eram, de onde vieram, nem para onde estavam indo. Apenas eram e se entregavam aos prazeres de ser. E eu, tão perdida, sem respostas para muitas das perguntas que me faço agora.
Enquanto lavava a louça, vi um enorme navio passando pela janela. Estava tão perto que quase pude tocá-lo. Forrei a cama e comecei minha rotina de trabalho. Entrei no computador, li os jornais e os blogs de política, vi o que diziam os astros para hoje, verifiquei meus mails. Deitei-me na rede e parti para a segunda parte da minha rotina de labuta: li, li e li. Estou com o livro de Milan Kundera, A Arte do Romance, na tentativa de aprender com os mestres a fazer um texto que seja bom e que exerça sua função no mundo, transportando para suas páginas a imaginação e o coração de quem o leia.
Coloquei meu biquine e fui caminhar na beira da praia. O mar estava seco, ou seja, a maré estava baixa. Andei devagar, sentindo o vento no meu rosto, o calor do sol sobre meus ombros. Vi um bichinho bem pequeno, bem feio, cheio de patas, que carregava sua casa nas costas. Fiquei com pena dele. O mar me chamou para um mergulho e fui entrando com cuidado. A água estava bem morninha, como num chuveiro quente, só que morninha em toda aquela imensidão. As ondas faziam um balanço suave. Entrando ao meu lado estava uma maria-farinha enorme, com as patas azuis, seu típico andar de lado e as garras abertas prontas para me atacar. Seguimos juntas, respeitando o espaço uma da outra. Só deixei minha cabeça de fora e meu corpo sentiu as delícias daquele banho paradisíaco. Peixes começaram a pular ao meu redor. Pisei em algo que se moveu, em seguida, em algo áspero. Puxei-o para minha mãos com os dedos do pé. Era uma linda estrela do mar, com os cílios recheados de animais que se banqueteavam em seu corpo. De repente, um canto no céu e, rapidamente, como num mergulho, voando bem baixinho, um bando de pássaros brancos estavam em fila, numa perfeição matemática. Cheguei a procurar a régua que havia riscado a linha reta. O barulho de avião fez meus olhos se voltarem para o céu. Lá estava ele, bem alto, indo para algum lugar distante. Será que as pessoas que estavam nele tinham idéia da riqueza da vida que acontecia aqui embaixo? Relutei em sair da água, mas o dever me chamava.
Fui à horta, colhi tomates, manjericão e hortelã. Tomei cerveja, deitada numa espriguiçadeira, lendo novamente meu companheiro atual. Mais sons chegaram aos meus ouvidos: a música das enormes palhas do coqueiro, os piados das lavadeiras que vieram passear por nosso jardim, como se já fossem donas da casa. O sol foi dormir e a lua surgiu enorme e amarela dentro do mar, até parecia que o mar estava pegando fogo. Agasalhei-me, peguei uma xícara de café quente e me enrolei na rede para mais uma sessão de leitura. As estrelas no céu piscaram me provocando para nova etapa de trabalho. Hora de escrever. Agora, estou aqui, sentada em frente ao computador, tentando traduzir em palavras uma rotina simples, tranquila e extremamente inteira. Tao.

30.11.09









Fotos: Roberto Arrais
Os xamãs me ensinaram que posso perceber a energia de uma lugar através da presença dos espíritos que o frequentam. Se está cheio de seres de luz, então este é um local repleto de amor; se está vazio, precisa ser harmonizado, pois há trevas.
Olhando para todos estes espíritos no final de semana, encantei-me com a energia amorosa que existe em nosso pedacinho de paraíso. Pássaros cantam e passeiam em nosso jardim; árvores dão doces frutos; palhas do nosso coqueiro nos embalam com sua música; flores enfeitam com cores e perfumam o ambiente. Temos ainda as ondas do mar, as aves, as marias-farinhas, o sol, a lua, as estrelas, a água morninha. Este é o meu lugar Sagrado, o meu útero, o meu refúgio, para onde vou, na realidade ou na fantasia, sempre que quero me reabastecer, ou, simplesmente, ficar feliz e dissolvida no Todo.
Além de toda a riqueza da natureza, vivo momentos lindos ao lado de pessoas que amo, escrevo, leio, crio, invento.
Que este lugar seja, para sempre, uma dimensão mágica onde os desejos de todos se realizem!