9.1.10


Hoje visitei a Casa da Saudade. Vi suas paredes pintadas de um cinza escuro e pensei, como é triste esta casa, pois tudo que nela está é inalcançável. Fui entrando com cuidado e comecei a conhecê-la melhor. Cheguei ao cômodo da infância e ouvi as histórias contadas por minha mãe, as músicas cantadas por meu pai nas nossas voltas para casa no fusca marrom que tínhamos. Vi minha babá, levantando a saia de calor, com suas calças de tecido atacada por botões, fazendo bolinhos de arroz, feijão e carne para que comêssemos na brincadeira embaixo da mesa. Vi-me arrancando os belíssimos olhos azuis de meu irmão e o seu choro, indo, em seguida reclamar que Tital tinha tirado o seu olho. Também pude ver meus brinquedos, máquina fotográfica, máquina de escrever, gravador, algumas bonecas, e a paz que reinava em nosso lar. Andei mais um pouco pela casa e me encontrei na área reservada para a adolescência. Vi fotos de cenas lindas, beijos na boca, a descoberta do amor, os encontros no P2 do prédio, os passeios, a certeza de que tudo na vida aconteceria exatamente como eu planejara, os sonhos profissionais, os estudos. Quando percebi, já estava no espaço destinado à juventude. Encontrei os momentos na universidade, os estágios, os empregos, novo amor, noivado e casamento, a compra do primeiro apartamento, os sonhos em comum, a primeira filha. Fui transportada para o espaço da vida adulta. Vi, espalhados pelas paredes, registros dos cuidados com meu bebê, o seu primeiro sorriso, as suas descobertas, a maravilha da maternidade, a formação de uma família. Olhei as imagens de um novo relacionamento, a chegada de um filho, a chegada de um filho, todas as noites em claro, indo de quarto em quarto para dar a mamadeira, trocar a fralda, contar histórias. Idas aos museus, com todos ainda bebês, aos cinemas e teatros. Piqueniques na Jaqueira, visitas a Dois Irmãos. Viagens de carro, completamente lotado de lençóis, toalhas, travesseiros, comida, bebida, cds, livros, roupas, brinquedos, mapas. Tudo isso estava muito bem iluminado por lâmpadas de uma cor especial. Encantada com este aposento, dirigi-me ao da maturidade. Encontrei os filhos já crescidos, novos desafios profissionais, novo amor, novas possibilidades de vida. Afastei-me da casa com um leve sorriso no rosto. Sentia-me leve. Observando-a melhor, descobri que suas paredes não eram cinzas, e, sim, verdes, a cor da esperança e do amor, e que não tinha nada de triste, já que só sentimos saudade do que foi bom, das coisas que nos fizeram felizes, das pessoas que amamos. Esta foi minha maior descoberta, o endereço da Casa da Saudade é o coração.

8.1.10

Era quase meia noite. A porta do quarto foi aberta e ouviu o pai chamando pelo seu nome. Levantou num pulo só, coração batendo assustado, e perguntou se havia acontecido alguma coisa. Ele lhe deu um beijo na testa e disse que só tinha vindo falar com ela. Emocionou-se. Depois disso, todo o cansaço acumulado por dias e noites acordando o tempo inteiro, sempre atenta aos movimentos do pai, pelo corredor, pela sala, pelo quarto, foi reduzido à coisa nenhuma. Lembrou-se da mãe, que agora já habitava outra dimensão, e renovou, mais uma vez, a promessa que fizera de cuidar dele com todo carinho até o instante da grande viagem. Sorriu, com o canto da boca, ao ouvir o som já tão familiar do apito do controle remoto do arcondicionado. Som irritante para alguns; para ela, música, pois dessa forma seu pai tentava manter algum controle sobre a vida.
Doía muito vê-lo assim, limitado intelectualmente, sem o brilho costumeiro no olhar. Já fora professor, ocupara cargos públicos, exercera funções de grande liderança. E, agora, sua rotina estava reduzida a hábitos e horários que se repetiam todos os dias. Era a forma que encontrava segurança. Não sabia usar direito os controles remotos, nem o da tv nem o do arcondicionado, talvez para, simbolicamente, mostrar que não controlava mais sua própria vida. Por conta dessa dependência, já deixara de sair várias vezes. Ele não podia ficar só. Algumas vezes, pensara que estava pesado demais, difícil demais, ter que organizar sua rotina em função da dele. Seus filhos cobravam sua presença, seu marido necessitava de sua companhia, necessitava de um tempo também para si. Mas tudo isso ficava em segundo plano, pois os cuidados com o pai exigiam prioridade. Então, quando sua energia estava muito baixa, a Vida, trazia o milagre da regeneração das forças e lhe proporcionava momentos como o que vivera esta noite. Tudo o mais se tornava pequeno e guardava, no coração, as lembranças desses momentos recheados de amor.