19.7.12






D. Maria, minha vizinha, é uma mulher cheia de surpresas. Quando veio morar aqui, fez logo amizade com todo mundo. Foi de casa em casa, se apresentando e convidando as comadres para um café com bolo em sua casa. Prosa fácil, sorriso largo e, o principal para a gente ganhar a confiança de uma pessoa, um olhar que vê bem dentro do olho da outra. Gostei dela de cara.


D. Maria acorda cedinho, junto com o canto dos galos, e vai logo para o quintal dá comida para os bichos. Depois ajeita o jardim, colhe suas ervas e se senta numa posição esquisita, olhando para lugar nenhum. Fica um tempão assim. Levanta, entra na casa e vai trabalhar. Soube que é trabalho sério porque vive na rede lendo e na varanda usando o tal de computador. Às vezes almoça aqui em casa, às vezes vou almoçar na dela. Tudo simples e gostoso. Tem tardes que a mulherada toda se junta para cozinhar um doce, costurar umas roupas, bordar uns panos de prato ou só jogar conversa fora. D. Maria adora ouvir as histórias que cada uma vai contando e sempre escuta as dores e as alegrias com muita atenção. À tardinha, pega sua vassoura de mato e varre o quintal. Depois fica olhando a noite chegar. Janta sua sopa, seu cuscuz e seu café bem forte. Dorme cedo e sempre diz que é igualzinha ao sol: de noite, quieta; de dia, cheia de energia.

Eu estava no terraço com meus netos quando vi a cara de D. Maria na televisão. Os meninos faziam tanto barulho que não conseguia ouvir o que dizia. Fiquei preocupada, pensando que talvez D. Maria estivesse metida em alguma confusão. Susto mesmo tomei no outro dia de manhã. Quando acordei, vi o maior buruçu na frente da casa de D. Maria. Tinha carro para todo lado, tinha gente da televisão, do rádio, do jornal, e todo mundo só queria saber de falar com minha comadre. Até agora não entendi direito o que aconteceu. Parece que ela ganhou um prêmio, uma coisa dessas, porque descobriu uma coisa muito importante. Ouvi falar que é cientista. Nem sei o que isso quer dizer. Só sei é que quando esse pessoal foi embora, D. Maria pegou sua vassoura de mato, foi varrer o quintal e quando me viu, sorriu e perguntou:

- Boa tarde, comadre! Vamos ter nosso bolo com café hoje de tarde? Estou louca por um dedinho de prosa.

Fiz o sinal da cruz. Graças a Deus, D. Maria – a cientista – não tinha roubada nossa D. Maria – a comadre.

23.4.12

Era uma vez uma pedra muita linda que vivia num riacho, lá numa floresta.




De tanto ouvir as águas claras falarem com alegria e entusiasmo do encontro do rio com o mar, ficou querendo conhecer também essa maravilha. Tinha escutado que a água do mar tinha gosto de sal e que ficava sempre num movimento de ir e vir, parecendo até uma rede balançando, e isso era o que chamavam de ondas do mar.

Mas todas as águas do riacho que iam em direção ao mar, só iam e nunca voltavam para contar exatamente como era lá, como era para um rio se entregar ao mar. Sabia dessas poucas coisas porque alguns peixes seguiam o rio ao contrário e traziam as novidades do que viam nas outras terras, às vezes tão distantes do local onde a pedra vivia. Pedra não sai andando por aí e ficava toda tristinha, com aquele desejo guardado dentro dela.



- Será que o rio morre quando se dissolve no mar? Ou será que não volta para contar porque se torna tão grande que fica metido à besta?

Um dia, uma ventania muito forte soprou vinda do lado do mar e contou à pedra que o rio não voltou, não porque morreu, mas porque se tornou oceano. A pedra ficou louca de vontade de também virar a mesma coisa.

Como existe tempo para tudo nesse mundão, chegou o momento da pedra realizar seu sonho.

Veio pelo leito do riacho um homem, já mais velho, bem magrinho, com um grande chapéu na cabeça e uma barba branca bem comprida, num bote, remando bem devagar. Porque ele não vivia com pressa, sabia conversar com tudo que existia – pedras, plantas, animais, rios, estrelas – e pode ouvir o pedido da pedra:

- Amigo, por favor, me leve com você para conhecer o mar.

O coração do homem bem sabia o que é ter sonhos a realizar. Pegou a pedra com carinho e a colocou numa almofada sobre o bote, pois dessa posição ela poderia ir vendo tudo. Com carinho e paciência foi contando para a pedra o que era cada coisa nova que ia aparecendo no caminho.

Veio a lua, veio o sol, vieram as estrelas, veio novamente o sol. Começaram a ouvir uma música diferente. O homem explicou que aquilo era o som do mar. A pedra tremeu de emoção, o homem encheu seus olhos d’água. O desconhecido estava tão pertinho.

O homem parou o bote, colocou a pedra na mão, bem junto a seu peito, e juntos contemplaram aquela imensidão. Viram as ondas dançando e ficaram querendo também se misturar àquela beleza enorme.



Eram tantos pontos de luz refletindo o sol que a pedra não conseguia dizer qual a cor do mar.



O bote seguiu seu caminho e o homem deixou, amorosamente, a pedra sentir o gosto do sal. A água era morna e envolveu a pedra com delicadeza. Foi afundando, afundando, afundando, bem devagar. A pedra do riacho sorriu feliz. Tornara-se Oceano.


Fotos: Roberto Arrais
- Mãe, que horas são?


- Dez e meia.

- Já começou a TV Grobinho. Bora pra casa?

Este foi o diálogo que ouvi entre uma mãe e suas duas filhas que brincavam na beira da praia em Maria Farinha. Maré Baixa, céu azul, mar bem calminho. As crianças faziam castelos de areia.

Fiquei atônita com o pedido, pois, para mim, estavam num paraíso e iriam chorar quando a mãe as chamasse de volta para casa, seria a hora da escola e coisa e tal. Então, lembrei uma história que li no livro Socorro! É proibido brincar., onde a autora relata uma cena semelhante. Conta ela que estava na praia com uma amiga e seus dois filhos e os meninos ficavam sentados na areia, de cara emburrada, reclamando que não tinham coisa alguma para fazer. Comentavam que preferiam ter ficado em casa, vendo TV, jogando videogame ou na internet. Refletia a autora que as crianças dessa época estavam desenvolvendo uma postura passiva diante das coisas que se apresentavam para elas, sem a força da ação, e questionava que sociedade construiriam. Depois recordei outra história de filhos de amigas minhas que para concordarem com a viagem para a casa de campo, exigiam que fossem levados os videogames e os computadores, pois lá não teriam o que fazer. Viajei no tempo e vi meus filhos, bebês ainda, montados em cavalos, brincando com galinhas, descobrindo as plantas, tomando banho de bica. Bem que achavam muito o que fazer numa casa de campo.

Fiquei me perguntando: por que um comportamento tão diferente do outro, num grupo de crianças da mesma idade, envolvidas pelo mesmo ambiente?

Claro que é importante para as crianças o acesso aos instrumentos culturais de sua sociedade – os computadores, a internet, os videogames, os celulares fazem parte disso -, mas não podemos deixá-las interagir apenas com a tecnologia que funciona na dimensão do virtual, da abstração. Isso tudo é um recorte das imensas possibilidades do viver. Há a natureza, os esportes, a literatura, a música, o teatro, o cinema, a fotografia, as artes plásticas, a dança, enfim, outras linguagens que precisam experimentar para que possam fazer uma ampla leitura do mundo. Sem falar nas questões espirituais e emocionais.

Precisamos acordar, antes que nossos filhos virem autômatos. Se isso acontecer, ficarei arrasada, pois há muito tempo, numa aula do meu curso de Ciência da Computação na UFPE, briguei com um professor que dizia que o amor poderia ser implantado nas máquinas através da teoria dos autômatos. Será que ele me provará que tinha razão?





OBS1: Oba! As crianças não foram embora. Vi-as da varanda e ainda estavam lá e brincando. O mar ganhou!!! A tv perdeu!!

OBS2: Ontem estava trabalhando no terraço da casa do sítio de meu avô, no meio da mata, em Lagoa dos Gatos. Hoje estou trabalhando na varanda da nossa casa de praia, em Maria Farinha. Novas formas de ser feliz.

18.4.12

Segunda parte da viagem...




Chegamos em Panelas e já nos encontramos com Valdir da Mata. Minha energia foi mudando, pois é um bruxo disfarçado de gente. Pegou um aparelho para trabalhar com abelhas, Roberto foi ao sindicato e seguimos para a comunidade do Alfaiate, local especial do município, onde vivem 80 famílias cercadas pelo verde da mata atlântica que ele ajuda a preservar.




Casa linda, feita por ele. Babei com seu fogão a lenha. No forno, Sônia, sua esposa, faz até bolo.




 Linda sua filha Larissa que vive num paraíso sem nem saber. Galinhas, plantas, ar puro, remédios naturais, mel de uruçu. O ritmo é o da natureza não o do tique-taque de Alice.









Fui logo conhecer a sementeira e suas novas invenções inspiradas no Manual do Arquiteto Descalço, livro que emprestamos a Valdir para que criasse coisas adaptadas à realidade do lugar.





- Patrícia tá aqui!

Não entendi direito o que aquela frase queria dizer. A esposa saiu e veio me conhecer.

- Ele só dizia que nunca tinha conhecido uma pessoa como você.

Elogio? Logo veio a explicação.

-Quando me contou que a pia do banheiro de sua casa ia ser uma bacia de feira, morri de rir.

Compreendi a afirmação anterior. Imaginei-o dizendo assim:

- Nunca conheci uma pessoa como ela, doidinha, doidinha, mas tão feliz!

A filha surgiu com os livros infantis, que já publiquei, em suas mãos. Olhos brilhando. Veio em minha direção e nos abraçamos.

- Olha, filha, foi ela quem escreveu estas histórias aí.

Mostrei para ela as fotos no final dos livros. Era eu mesma. Conversamos, folheamos os livros, já bem lidos, é verdade. Disse-lhe que era uma bruxa e que a verruga no meu nariz estava escondida pela maquiagem. Sabia as histórias de cor. Não queria levar seus livrinhos para a escola porque tinha medo que seus amigos os rasgassem. Prometi que levaria outros para que distribuísse por lá.





Comemos um delicioso doce de banana, feito em casa, e tomamos água com gosto de quartinha. Reunião para definir os projetos. Quanto custa roupa de proteção para o trabalho com abelhas? Dividem, meio a meio, o tesouro que têm em casa, mel puro, para que possamos trazer para nossos filhos.





- Com tosse? É só tomar um chá com este mel, folhas de eucalipto e flores de colônia. Fica bom na hora.



Dão-nos tudo para fazer o chá aqui, colhendo no quintal as folhas e as flores. Os eucaliptos já são aqueles do reflorestamento de Valdir.Temos outras reuniões em Lagoa dos Gatos e precisamos ir embora. Chegam jovens que vão para a mata aprender a colher mel.

- Precisamos preservar as abelhas.






Tudo limpo, tudo lindo, tudo em harmonia. Marcamos uma visita para um almoço, outro encontro em Lagoa dos Gatos, uma visita a Maria Farinha para que conheçam o mar.

Novos amigos, gente de alma pura e grande sabedoria. Sabem o que é preciso para ser feliz.



Fotos: Roberto Arrais



Ontem foi um dia que saiu completamente do meu controle. Havia planejado uma viagem para Lagoa dos Gatos e Panelas, junto com Roberto, onde resolveríamos assuntos de trabalho. Iríamos articular em Panelas o financiamento de um projeto de recuperação de nascentes e de preservação da mata atlântica. Este trabalho lindo já é executado, sem financiamento algum, por um homem muito especial, Valdir, da Mata, como é conhecido. Prefiro chamá-lo de Homem do Dedo Verde. Depois da parada em Panelas, seguiríamos para Lagoa dos Gatos, pois teria que resolver algumas questões burocráticas referentes à editora Caleidoscópio e iria conversar com as autoridades de lá sobre a implantação de serviços para a população: consumo e educação. Tudo certo, às cinco e meia da manhã colocamos água e biscoito no carro e pegamos a estrada.

Não chegamos muito longe. Logo ali, em Moreno, filas de carros parados. O que aconteceu? Um protesto, fecharam a estrada com pneus e tocaram fogo. Ainda deu tempo de mudar o caminho. Demos uma volta imensa, fomos por Carpina. Quase éramos pegos em outro protesto, pois encontramos um grupo com pneus nas mãos.





Descobrimos que era um movimento articulado do MST, colocando bloqueios em tudo que era canto. Depois de muita estrada, chegamos em Vitória de Santo Antão, vindos de Glória de Goitá. Mais uma parada forçada. Pneus, fumaça preta, motoristas ensandecidos, ambulâncias impotentes.






Fiquei revoltada. Defendo o movimento, acho que é uma injustiça tão poucos com tantas terras improdutivas e tantos sem ter onde plantar, mas não concordei com aquela forma de se dizer o que está errado nesse país. E os doentes como sobreviveriam nas horas que estivessem sem poder seguir em frente?! Fui ficando cada vez mais irritada, uma vontade louca de fazer xixi, surtei. Desci do carro, bato e porta e fui caminhando até Gravatá, na esperança de achar um banheiro e, principalmente, colocar para fora minha ira. Depois de um tempo longo, Roberto me pegou na estrada.O pessoal de Lagoa dos Gatos ligou avisando que havia mobilização em Caruaru e em Agrestina. Seguimos com receio de novas interrupções. Resolvemos tomar a estrada de Bonito. Aquilo é tudo, menos uma estrada asfaltada. Ainda pegamos duas marcas dos protestos, com restos de pneus queimados no asfalto, mas conseguimos passar. Chegamos em Panelas às onde e meia. Seis horas de viagem. Eu estava mordendo vento. Roberto, tranqüilo, e acho que feliz pelo sucesso da mobilização de gente que luta há tempo por seus direitos. Eu havia esquecido meus ideais, minhas teorias, e só pensava nos transtornos que aquilo tudo havia provocado no meu dia. Senti vergonha da minha pequenez, mas as sombras existem e surgem com força quando cutucamos o cão com vara curta. Tão fácil deixar-se tomar por menos.


13.4.12

Era meu primeiro dia de trabalho na escola. Estava feliz e pensava em realizar muitas coisas como psi.


Cheguei cedo e percebi um grupo de crianças conversando em torno de alguém que não conseguia ver. Aproximei-me e fui ouvindo sua voz, sua risada gostosa. Cheguei mais perto e me deparei com um menino de olhos espertos, óculos grandes, peito estufado, pernas encolhidas, sentado numa daquelas motocas de criança pequena. Deveria ter uns dez anos. Apesar de seu corpo apresentar problemas, irradiava luz e alegria. Olhou-me e sorriu. Sorri de volta. E foi assim que nos conhecemos.

Acompanhei-o diversas vezes nos momentos em sala de aula, nas aulas de dança, música, artes ou educação física. Se seu corpo não podia fazer todos os movimentos, sacudia-o com ritmo e se permitia sentir o prazer possível. Às vezes chegava na sala da coordenação com dores no peito ou falta de ar. Nessas horas meu coração apertava porque lembrava que sua doença impedia que sua estrutura óssea se desenvolvesse no mesmo ritmo dos órgãos internos, o que poderia levá-lo a um colapso. Ainda o vejo dando explicações sobre o Ar, em nossa Feira de Conhecimentos. Também ouço sua voz e seu sorriso quando dizia que paquerava com minha filha. Levantava os olhos e piscava, piscava, achando a maior graça quando eu fazia cara de braba.

Gosto de saber que tive sua confiança, a ponto de me revelar, em segredo, que brincava de Barbie e Kant, entendendo que eu compreenderia que estava tentando desvelar os segredos do amor e do sexo. Ele era lindo e todos, no colégio, o amavam.

Essa situação foi difícil para sua família, mas sua mãe nunca desistiu e não deixou que o medo da morte chegasse tão perto, com força para impedir a esperança. Eu sabia que não iria embora cedo. Era um anjo com a missão de espalhar coragem, força e alegria por onde passasse. O risco maior seria sua adolescência. Fez cirurgia, abriu o tórax, criou espaço.

Saí do colégio, perdi o contato e nunca mais havia tido notícias dele. Mas, vez por outra, me lembrava de sua gargalhada e do piscar de seus olhos e meus lábios sorriam, acompanhando o sorriso de saudade do meu coração.

Noutro dia, andando pelo shopping, ouvi:

- Tia, tia!

Olhei em direção àquela voz familiar. Deparei-me com ele, sentado em uma mesa, agora já homem feito, acompanhado de colegas. Não havia mais a motoca. Em seu lugar, uma discreta muleta. Lágrimas de alegria teimavam em sair de meus olhos. Contou-me que estava fazendo faculdade e que logo seria psi, como eu.

Este foi um daqueles momentos raros em que temos a oportunidade de ver a face de Deus. Em silêncio, reverenciei-O. Abracei-o, beijei-o, com o coração batendo descompassado. Despedimo-nos com alegria.

Depois fiquei pensando que havia testemunhado a força da vida, esse mistério que nos acompanha e que nos faz sentir a magia no ar.

11.4.12

Ninho vazio.


Voam seus próprios vôos.

Contemplo-os com doçura.

Saudades do que já se foi.

Missão cumprida.

Resta-me EU.

Sensação estranha.

Agora é o meu tempo,

o meu tempo é meu.

Mundo de possibilidades.

Liberdade para escolhas.

Ou isso,

ou aquilo.

Ou será,

aquilo e

e isso

também.

Encontro com minha face,

sem máscaras,

no espelho.

Decifrar o enigma.

Não mais outros.

Para onde ir?

Não há mais gaiolas.

Coragem para voar?

10.4.12

Sem coragem de ser,


de ser coisa alguma.

Deixar-se levar,

pela vida,

pelo vento.

Tão chato fazer planos,

saber para onde ir.

Permitir ao vazio chegar,

encontrar-se com o nada.

Viver dá um cansaço.



7.3.12

Eu era uma menina quadrada. Vivia num mundo quadrado. Morava num apartamento, ia para lá e para cá num carro, passava muito tempo numa sala de aula de uma escola, via televisão, tinha uma mala quadrada. Para piorar as coisas, usava óculos quadrados.


De tanto ficar em quadrados, terminei ficando cabeça quadrada e, assim, pensando que o viver também era quadrado. Tudo certinho: quatro lados iguais, quatro ângulos iguais. E fui fazendo tudo o que os certinhos fazem: estudava, tirava dez – diziam que seria cientista -, era bem comportada, não reclamava, não pensava, não sentia. Acho que imitava e seguia sendo uma maria-vai-com-as-outras.

O tempo passou, cresci quadrada, fui trabalhar com uma coisa quadrada, o computador. Tudo exato, tudo certinho. E eu cada vez mais quadrada, cercada por coisas quadradas.

Mas aí aconteceu uma coisa na minha vida que fez com que meu corpo deixasse de ser quadrado: fiquei grávida e minha barriga foi ficando cada vez mais redonda, virou uma bola e eu me tornei um círculo.

Nem percebi direito como aconteceu, mas eu era mãe, tinha filhos, e essa coisa mágica, de ver a vida brotar, fazia com que eu não coubesse mais numa vida quadrada.

Deixei o trabalho com o computador-quadrado, desliguei a TV-quadrada, abandonei o carro-quadrado, me mudei do apartamento-quadrado

O que fiz?

Fui morar numa casa com jardim, cercada de plantas, pedras e animais. Comprei uma bicicleta com cestinha. Li livros, muitos livros, tantos livros que resolvi trabalhar fazendo livros.

Como consegui?

Simples. Tirei os óculos quadrados e comecei a enxergar com o coração, que de quadrado não tem é nada. No lugar de cientista, virei foi artista.

6.1.12

Foi assim. Aqui em casa começou a aparecer uma gata. Comia a comida de Hércules, o cachorro, depois começou a dormir no sofá da varanda. De tanto que insistiu, eu, que tenho medo de gatos, resolvi comprar uma ração específica para ela. Quando descia para colocar sua refeição, enroscava-se em minhas pernas pedindo carinho. Vi quando transou com um gato que também circula pelos jardins e fiquei no aguardo de sua ninhada. A cada dia, mais intimidade criava. Ficou deitada na minha sala de trabalho enquanto eu escrevia, deitava no terraço quando meus filhos estavam com os amigos. De repente era da casa.


Os pavões também vieram comer da sua ração e ela recuava diante da entrada do bando – são em número de dez. Mas aqui era seu território.

Na manhã da última terça-feira, coloquei sua ração e estranhei porque não apareceu. Pensei:

- Ih! Quando um gato some da casa é sinal que seu dono vai morrer. Como ela acha que a dona sou eu...

Logo depois tive a notícia que havia tido seus filhotes na casa vizinha e dei graças a Deus por isso, pois não teria que assumir uma gata e sua ninhada. Mas a gata saiu do seu aconchego e começou a trazer seus filhotes, seis ao total, um por um, para nossa casa, mais especificamente para um local em frente ao meu birô, no cantinho Sagrado onde escrevo, leio, medito. Demorei a acreditar no que estava vendo. Ela comia um pouco, dava de mamar aos que já estavam aqui e corria para ir buscar mais um. Agora estão todos aqui. Eu e a família toda estamos cuidando deles com carinho. Comida, água, leite. Não ligo mais o ventilador, não acendo a luz à noite, não coloco incensos. Tudo para respeitar este tempo / lugar em que a vida mostra sua força e sua beleza.

O jardineiro veio fazer nosso jardim e viu os gatos, os pavões, os tô-fraco, também descobriu uma colméia em uma das árvores daqui e comentou:

- Por que é que os animais só querem viver nessa casa?

Respondi na lata.

- Porque a gente é xamã.

Saiu sem querer; quando vi, já tinha falado. Ele arregalou os olhos, fez um silêncio e disse um “Ahhhhhh!”, sem explicar e compreender muita coisa.

Adoro jabuticaba e colocamos um pé aqui em casa. É difícil comer algum fruto, pois logo que começam a aparecer, os visitantes do jardim chegam e levam tudo. Comentei esse fato com meu marido, reclamando que os animais estavam comendo ‘minhas’ jabuticabas. Sorriu e respondeu:

- Quem disse que são suas?

Frase curta, direta, simples e muito verdadeira. Só porque a plantei, está num terreno de uma casa que aluguei, sou eu quem coloca água nela e tira as folhas de seu caule, não a faz minha. Os animais não conhecem estas regras. A natureza é muito maior que as leis de propriedade.

Sinto-me feliz por ter diminuído a correria do meu dia-a-dia e estar mais conectada com o ritmo da natureza, podendo compartilhar seus ciclos e o brotar da vida em todas as formas Sagradas.











1.1.12

R: É um prazer entrevistá-la. Tenho lido seus textos no blog, também li os livros. São tantos temas! Muitas Patrícias numa só?

P: Claro que sim. Uma parte de mim adora escrever para crianças. Acho que as crianças compartilham comigo a crença nas fadas e nos duendes e, também, o encantamento pela natureza. Os olhos de uma criança ficam deslumbrados com as descobertas que vão fazendo, assim como eu, apesar dos meus quase 50 anos de vida. Nasci no Dia das Crianças... guardarei sempre a criança dentro de mim.

R: Mas há também aquela que escreve para as mulheres.

P: É verdade. Não sei se é ‘só’ para mulheres, mas, com certeza, para dar voz aos mistérios de feminino. Há muito tempo éramos sacerdotisas e nossas habilidades valorizadas pela comunidade na qual vivíamos. Tecíamos, cozinhávamos, trabalhávamos com argila, cuidávamos das crianças, curávamos. Os homens desempenhavam outros papéis, mas ambos os grupos eram respeitados. Mudanças aconteceram e hoje vemos um feminino ferido, com mulheres desprezadas, agredidas e violentadas, tentando assumir uma postura masculina para sobreviver na sociedade que construímos. Trilhei o caminho do masculino para o feminino e vivo feliz porque me reconheço fêmea e me tornei mulher. Nada melhor do que acompanhar o crescimento dos meus filhos, respeitando meu instinto materno, do que sentir os ciclos do meu corpo, regido pela Lua, do que amar meu macho e meu marido. Vivo em paz.

R: Muitas mulheres e muitos homens defenderiam que suas ideias são machistas.

P: Machistas, não; feministas, também não. Defendo que nenhum homem é melhor que nenhuma mulher. Defendo que homens e mulheres não são iguais. Entendo que o processo do viver, ou da individuação, como diria Jung, favorece a integração do feminino (yin) com o masculino (yang) em cada ser humano, permitindo que se construa o a totalidade. Agora, num casal, há um macho e uma fêmea, com energias específicas. Ouvi, muitas e muitas vezes, queixas das mulheres, bem sucedidas profissionalmente, que reclamavam de ter que ser provedoras, de ter que sair para uma reunião de trabalho e deixar o filho com febre em casa, de tomar um remédio para cólica menstrual e colocar um terninho quando queriam ficar recolhidas, curtindo a menstruação. Roger Woolger tem um livro excelente sobre o tema, A Deusa Interior. Ouvi tudo isso de clientes, de amigas e, também, vivi estes conflitos. Não está fácil ser mulher nos dias de hoje. É importante que os homens também conheçam essa realidade feminina e nos ajudem a colocar as coisas no lugar, restabelecendo o equilíbrio yin-yang.

R: E a espiritualidade, veio de onde?

P: Estudei em colégios católicos, minha família era católica, mas tive um tio espírita. Na infância assisti à novela A Viagem e aquilo me pareceu familiar. Brinquei com o copo andando na mesa, participei de grupos jovens e me sentia em êxtase quando estava em oração. Mas não aceitava as Cruzadas, não aceitava a riqueza da Igreja Católica e tantas outras coisas, como a caça às bruxas na Inquisição. Aí, lá pelos meus 16 anos, li Ilusões, de Richard Bach, e resolvi que não me crismaria, pois a fé que tinha no Sagrado não era a que pregava o catolicismo. Mais na frente, tive a oportunidade de conhecer a religião espírita mais de perto, mas não aceito o sofrimento na Terra como uma garantia do Céu. O meu Deus, a minha Deusa, está presente na magia da Natureza, no momento em que sinto meu filho mexendo na barriga, no instante em que faço amor com meu homem. Aprendi outros caminhos com a Psicologia Transpessoal e com o Xamanismo. Adoro saber-me bruxa. A Divindade é para mim algo vivo, pulsante, sempre manifestada nas coisas simples. Já não me importa aprender e, sim, experienciar a Energia Cósmica expressando-se através de tudo, absolutamente tudo que existe. Energias, espíritos... é maravilhosa esta entrega. Vivo uma inabalável fé na Vida. Tento compartilhar, através dos meus textos, a jornada que minha Alma percorreu. A Vida me chama e eu me entrego, ou, como diria um filho meu, me jogo, em absoluta confiança.

R: E as mudanças foram muitas. Profissões, maridos...

P: (risos) Por medo, joguei para baixo do tapete, por muito tempo, a minha verdadeira vocação que era viver plenamente o meu amor pelos livros. Devido a traumas de vidas passadas, receei o êxito, o sucesso, a fogueira. Como era muito inteligente fui direcionada para o mundo da exatidão, mundo masculino, e trabalhei com lógica, bits e bytes. Sentia um vazio enorme, uma vida sem significado. Resolvi seguir outro talento que tinha, mas que ainda me manteria trás das cortinas, longe das luzes do palco e dos aplausos, e fui cuidar das almas feridas, sendo psicóloga. Foi uma época linda de minha vida, onde conheci pessoas incríveis e aprendo que tudo que fazemos tem uma razão de ser. Chegou um momento em que minha Alma gritou, que pedi para ser ouvida e pude, finalmente, ter uma rotina de escritora. É uma vida muito simples e solitária, voltada para dentro. Agora não era mais uma cientista, tornara-me uma artista. Ler, escrever, ler, escrever, ler, escrever, observar o mundo, visitar meu mundo. Dialogar com pássaros, árvores, seres invisíveis; conversar com o mar; banhar-me de lua e estrelas; abraçar-me com o sol. Aos poucos fui me mudando para mundos paralelos. É difícil manter os pés no chão e a cabeça nas nuvens. Moro uns dias perto da mata e outros perto do mar. Adoro esta alternância entre as energias yin-yang. Intui que viveria assim quando li, há algum tempo, o livro Feminilidade Consciente, onde a autora vivia dessa forma. Gosto disso: previsão ou criação do futuro? Não importa, para mim. Repito muito uma canção de São Francisco de Assis que diz que ‘doce é sentir, em meu coração, humildemente, vai nascendo o amor’. Procuro me manter num estado de consciência que me possibilite viver assim. Para contar tudo isso, escrevo.

R: E as mudanças no amor?

P: Ah! O amor! Tenho que estar apaixonada pelas coisas e pelas pessoas que me cercam. O tempo de ser feliz para mim é agora. Amei muito os homens que tive, aprendi com eles a me tronar mais inteira. Sou grata e os honro pela possibilidade de amá-los. Claro que houve dor e sofrimento nas separações que tive, mas viveria tudo de novo. Deram-me filhos lindos, os meus verdadeiros tesouros, o que me deixa plena e feliz. Foram histórias cheias de tesão, mas que acabaram porque nos transformamos e não Havaí mais encaixe. Adoro o poeta Vinicius de Moraes, um home de muitos amores e vida intensa, quando nos ensina que ‘a vida só se dá pra quem se deu’.

R: Por falar em poeta, que autores estiveram em sua mesa e cabeceira durante esses anos?

P: Não sei especificar quais me acompanharam, pois leio e, muitas vezes, não sei o nome do livro, o nome do autor, os nomes dos personagens, e estou completamente arrebatada pelo texto. Fernando Pessoa, Clarice Lispector e, recentemente, Daniel Lima. Cora Coralina, Adélia Prado, Djanira Silva, Cecília Meireles. Li coleções de livros que havia em casa. Machado de Assis é fantástico e seu conto, O Alienista, me colocou em transe por diversas vezes. O que amo mesmo é o cheiro do livro, a textura das páginas, o mistério ainda não revelado pelas palavras não lidas. Reler um poema que toca o coração é algo que deixa o meu aquecido.

R: Como está sendo para você esse sucesso tudo? É duro ser celebridade?

P: Algumas coisas são maravilhosas, outras bem difíceis de conviver. Críticos, invasão de privacidade estão entre as coisas chatas, assim como os compromissos editoriais. Viver da literatura é um presente do Universo para mim, mas o melhor de tudo é meu encontro com o leitor, seja através dos textos ou numa conversa na rua, na praça, num café. Nasci para isso. O sucesso, o que é? Continuo com minha rotina simples, cuidando das pessoas que amo, cercada só do que me interessa. Faço suco, leite, café, asso pão, limpo xixi e coco do meu cachorro, cuido das plantas, medito, caminho, namoro, tomo banho de mar, falo com a natureza e com fadas e duendes, leio, escrevo, ouço música, vejo filme, encontro com meus amigos e minha família. Claro que é bom ter dinheiro para pagar as contas, para comprar os livros que quero, para viajar muito. O importante é que vivo meu Dom, exerço meu Talento. Agora vivo a Paz. Se a Morte chegar, irei tranqüila porque vivi a vida que sonhei para mim.

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A entrevista acima ainda não existiu na minha realidade ordinária, porém si que está próximo o momento de sua realização, onde conversarei com uma repórter sobre a Jornada da Alma que sou. Quando isso acontecer não saberei se fiz uma profecia, criei o futuro, ou, apenas, o vi. Importa?