25.4.09

Meus tesouros































Eles cresceram e agora querem trilhar seus próprios caminhos. Momento difícil esse, para uma mãe galinha, como eu. Que saudade do tempo em que me sentia com poderes para protegê-los de tudo. Era tão simples. Bastava proteger as quinas dos móveis, colocar telas nas janelas, bóias nos braços, ou no auge da loucura, depois de uma experiência traumática, escrever o número do celular em seus braços para o caso de se perderem.
- Só tome refrigerante fechado.
- Não vá ao banheiro sozinha.
- Cuidado com estranhos que ofereçam pipoca e sorvete.
Se os perigos ainda fossem só esses...
Lembro-me de cada gestão, de cada parto, do cheirinho da colônia no banho, da hipoglós sujando as fraldas. Tão lindos quando se entregavam ao sono, depois de um banho e de uma mamadeira! Um suava muito, outro tinha uma almofadinha que segurava na hora de dormir, outro dizia tim-lim-lim-lim, telo leite. E eu ía passando de quarto em quarto, ninando-os com músicas inventadas ou com cantos religiosos carregados de desejos de paz, amor e proteção. Até hoje temos Maria de Nazaré como referência desses momentos sagrados.
Os banhos de chuva, as brincadeiras de teatro e de escolinha, os legos, os bonecos, as bonecas, simba, os livrinhos de histórias. Ah! Todos na cama da mamãe, de pijama e fralda, segurando a mamadeira e adormecendo ao som do Era uma vez... e foram felizes para sempre.
Não me arrependo por ter diminuído o ritmo do meu curso de Psicologia para ter condições de dar apoio para minha filha quando voltava estressada do final de semana com o pai -compreendia a sua dor por ficar longe dele -, ou, ainda, por ter renunciado a cargos e propostas de trabalho que me tomassem mais o tempo. Foi delicioso acompanhá-los nas aulas de natação. Foram maravilhosas nossas tardes de filminho, pipoca e brigaderio. E os passeios a parques, museus, livrarias, teatros e cinemas!
A praça de Casa Forte foi um capítulo à parte. Comida para os peixinhos, bem cedo, vestidos de pijamas e camisola. As festas da Vitória Régia eram um sucesso absoluto, com direito a acompanhamento desde a montagem dos brinquedos.
Suco de vampiro, leite com nescau, sustagem e leite ninho. Guaraná, para um; coca-cola, para o outro. Um só gostava de bolo branco, o outro só gostava do de chocolate. As refeições em volta da mesa, sem direito à tv ligada, sempre foram momentos de encontro e de troca.
E foi assim, respeitando o jeito de cada um, vivendo uma rotina simples e recheada de amor e harmonia, que construímos uma relação sólida, verdadeira, baseada no diálogo e na confiança.
Aproveitei, por mim, o melhor de cada fase de vida deles.
Os adolescentes, homens agora, não me querem mais por perto. Nada de beijinhos. No lugar de ouvir 'você é a mulher mais linda do mundo', ouço 'que bicha chata'. Como psi acho o máximo porque reconheço nessas situações a saúde mental característica da fase de desenvolvimento que vivem, tão bem descrita por Freud. A jovem adulta já não rivaliza tanto, pois está achando seu caminho, apesar de ainda não ter muita paciência para meu jeito de contar histórias. Freud também explica isso. Mas uma coisa é a teoria, outra é a dor provocada no coração de uma mãe quando todas essas situações começam a acontecer.
Ainda há o pânico dos monstros que existem no mundo real e que não são mais o bicho-papão: violência, drogas, bebidas, cigarro, abuso sexual, assalto, acidentes de carros. Que saudade do tempo em que não dormia porque ficava coçando a cabeça de um deles que havia acordado de um pesadelo! Não durmo mais um sono tranqüilo até que todos cheguem de seus programas. Ao ouvir a útima batida na porta e o 'mãe, cheguei', o coração, finalmente assossega.
Acredito na capacidade de cada um de realizar seus sonhos e ser feliz aqui nessa vida. Claro que do jeito único que vão escolher. Construir com eles um ninho de amor foi a minha missão. Agora, só posso dar-lhes a confiança de que podem voar seus próprios vôos e sempre, sempre, sempre, estarei de braços e coração abertos, para o retorno, quando quiserem se reabastecer de dengo e voarem novamente, cada vez mais alto.
Comigo ficam as lembranças e a saudade.





24.4.09

Mais uma vez, vejo uma tartaruga morta numa praia nordestina, aqui bem pertinho mim. A primeira vez foi em Maria Farinha, Paulista; hoje foi em Olinda. A última, só vi pelos jornais e, mesmo assim, me deu um aperto no coração. A outra, eu vi de corpo presente.
Estava na praia e começou aquela agitação. Corri para o local em que um grupo de pessoas estava aglomerado e me deparei com uma das cenas mais tristes que já presenciei: uma enorme tartaruga jazia na areia da praia. Estava machucada – rede de pescadores? - e não tinha conseguido sobreviver aos ferimentos, ao calor, à ação humana. Fiquei contemplando aquele ser imenso, com uma forma tão diferente da minha. Alisei seu casco e chorei. Se pudesse, queria conversar com ela, como Francisco de Assis, e aprender sobre suas descobertas.
- Olá, Irmã Tartaruga!
Com certeza me ajoelharia ao seu lado, numa posição de reverência.
- Por favor, conte-me o que aprendeu durante todos esses longos anos de vida.
E a ouviria contar histórias fantásticas sobre o fundo do mar, sobre com é lindo o luar quando estamos contemplando a lua da superfície do oceano, sobre como é gostoso o calor do sol num descanso nas areias da praia.
Com certeza me falaria da harmonia existente entre todos os seres marinhos. Relataria seu encanto pela beleza das plantas, pelo colorido dos peixes, pelo silêncio mágico que o ambiente aquoso proporciona. Talvez, durante sua longa jornada, tivesse encontrado humanos desbravando os oceanos, e me falasse sobre seu espanto por criaturas tão estranhas e esquisitas, tentando uma adaptação num habitat que não era naturalmente seu.
- Irmã Tartaruga, você já viu Deus?
Sorriria diante de minha ingenuidade e diria:
- Você está Me vendo agora, Filha.

π π π π π π π π π π π π π π π π π π π π π π π π

E eu compreenderia, de repente, de um fôlego só, o que sempre soubera minha Alma: o Sagrado expressa-se sempre na natureza.
Sinto que é assim com tartarugas e baleias encalhadas. Elas se oferecem em sacrifício para que saibamos que a Divindade está aqui, ali, acolá, em tudo, absolutamente tudo, que existe no Universo. Estes seres atravessaram a barreira do tempo, aprenderam com o Sagrado, viajaram por dimensões e têm uma enorme sabedoria a compartilhar.
O mesmo acontece com as árvores enormes e seculares. Gosto de contemplá-las, de ouvi-lhes os segredos. Quantas juras de amor não foram pronunciadas sob suas sombras! Quantos beijos foram levados pelo farfalhar de suas folhas! Quantos sonhos de criança ficaram guardados em suas raízes!
Gosto das coisas que duram muito tempo vivas. Sempre sinto esse desejo de ouvir suas histórias. Quem sabe se essa coisa de me tornar escritora não é para contar, para colocar em palavras, essa Sabedoria? Por que não conseguimos ter olhos para vê-la? Por que não temos ouvidos para escutá-la?

20.4.09

Foi assim. Eu estava numa livraria no setor de livros infanto-juvenis. Selecionara alguns títulos: os de Clarice Lispector, Tatá pede socorro – história que contei inúmeras vezes na cama para meus filhos amados -, alguns de Machado de Assis. Coloquei-os sobre uma mesa com tamanho adaptado para crianças e percebi, então, a presença de um menino.
Vestia bermuda, camiseta e chinelos. Deveria ter uns 10 anos. Era moreno, gordinho, rosto redondo, olhos grandes. Pegava alguns livros e os soltava depois de folheá-los com rapidez. Pensei que não deveria saber ler. Escolheu um com números e começou a contar em voz alta. Estava imerso em seu mundo. Aproximei-me da mesa e pedi licença para pegar meus livros. Sorriu. Em seguida, perguntou-me:
- A senhora podia me pagar um lanche? Tô com muita fome.
Pronto, fora fisgada. Meu coração apertou. Uma criança faminta de comida também tinha fome de livros. Claro, neles há o mundo da fantasia, do faz-de-conta e é lá que encontra consolo e esperança de um final feliz para sua dura vida. Mas uma coisa é saber disso tudo na teoria e outra é ver essa verdade escancarada na sua frente. Sentei-me ao seu lado e começamos a conversar.
- O que é que você quer comer?
-Um Mc Donalds Feliz. Você sabe o que é?
- Sei. Mas o sanduíche é tão ruim. O legal é o brinquedo que vem. Você já comeu alguma vez?
- Não, mas minha irmã já e disse que é muito gostoso.
- Você mora onde?
- Em ...
- Estuda?
- Tô na segunda série.
- Mas você ainda não sabe ler, né?
- Sei não.
- Quer que eu leia para você? Quer que eu conte uma história?
Seus olhos brilharam. Soltou um sorriso largo. Seu rosto se iluminou.
- Quero.
- Vamos escolher? – sugeri, sorrindo também.
Levantamo-nos e percorremos prateleiras escolhendo alguns livros. Ele pegou alguns de carros, de animais, de atividades. Escolhi contos de fadas.
Começamos por um livro que tinha a atividade de procurar desenhos de objetos em uma cena. Ele vibrava a cada achado e sorria quando eu dizia:
- Poxa! Como você é fera! Toca aqui.
E batíamos nossas mãos para festejarmos as conquistas. Conversamos mais um pouco.
- Como é seu nome?
- Manuel.
- O meu é Tital. Você mora com seus pais?
- Moro e com mais quatro irmãos. Meu pai e minha mãe estão sem trabalho.
- Seu pai sabe fazer o quê?
- Tudo. É ruim ficar sem comida em casa.
- E como é que vocês fazem quando a situação aperta?
- A gente sai, eu, meu pai e minha mãe, para pedir comida nas casas.
- Você fica muito chateado nessa hora?
- Fico, mas quando a barriga fica roncando, não tem jeito. Tem que sair e arrumar comida.
Pegou o livro de Pinóquio e me deu para ler. Adorou quando Pinóquio foi virando um burro, quando seu nariz cresceu com mentiras e quando a baleia expulsou todos por sua enorme boca aberta.
Eu tinha um compromisso com hora marcada e precisava interromper nosso encontro.
- Você prefere um lanche ou uma cesta básica?
- Uma cesta básica. Minha mãe vai ficar tão feliz. – e se levantou entusiasmado.
Saímos abraçados da livraria. Havia, também, fome de carinho. Não quis tirar dele a realização de seu desejo de criança e lhe comprei um sorvete.
- A senhora não vai tomar um?
- Não.
- Ah! Então não quero.
Insisti e terminou aceitando o mimo, não sem antes se certificar que esta opção não excluiria a cesta básica.
Fomos ao supermercado, compramos a cesta básica e uma revista de carros. Arrumei dinheiro para sua passagem de ônibus.
Falou meio sem jeito:
- Desculpa por tá dando esse aperreio.
- Não foi nada. Hoje eu estou ajudando você. Amanhã você poderá me ajudar. Já pensou se você estuda, vira médico e um dia eu chego doente num hospital que você trabalha e você cuida de mim?
Mais uma vez seus lindos olhos brilharam.
- É mesmo. Ou então, eu vou ser policial e prendo ladrões. Aí eu vou estar ajudando a senhora também.
Na hora da despedida me abraçou bem forte e perguntou:
- Quando é que a gente vai se encontrar de novo?
- Não sei. Eu nunca venho aqui. Acho que foi o destino.
Sorrimos um para o outro. Dei meia volta e saí andando, quase correndo, sem coragem de olhar para trás, com receio que meu amigo percebesse as lágrimas que escorriam em meu rosto.
Experiência mágica essa. Mais uma, das inúmeras em minha vida.