14.3.09


Uma amiga me contou que seu filho perguntou:
- Mãe, quando eu crescer eu vou virar menina?
Esta pergunta era fruto da intensa convivência de seu filho com mulheres adultas. Ela é mãe solteira e mora com a mãe, viúva, e a irmã, solteira. São muitas mulheres no universo do menino que não consegue achar uma figura adulta masculina para se identificar.
Fiquei preocupada com as questões freudianas e completamente encantada com a inteligência da criança. A ingenuidade e a pureza fornecem a liberdade necessária para a criatividade.
Numa viagem pelo sertão nordestino também pude encontrar algumas pérolas de sabedoria.
Conheci uma senhora de 84 anos, moradora de uma cidadezinha com duas ruas, uma praça com televisão, uma igreja. A cidade tem água encanada, mas ela não tinha deixado os canos entrarem em sua casa porque tinha muito medo de ratos. A água só ia até uma torneira em sua sala e carregava baldes e mais baldes de água para a cozinha e o banheiro. Diante de minha surpresa, respondeu:
- Ah, minha filha, é que eu tenho muita ciência.
Noutra ocasião, comentando sobre a segunda esposa de um conhecido dela, afirmou orgulhosa:
- Foi uma ótima troca.
Traduziu, numa frase simples, tudo o que pensava sobre casamentos. Não está dando certo aqui, experimenta ali. Mais sabedoria popular, tendo a linguagem a seu serviço.
Uma senhora, já idosa, num encontro com diversos municípios pernambucanos para a discussão sobre melhores condições de vida da população expressou sua posição e concluiu:
- Eu sou fraca nas letras e forte no trabalho.
Muito lindo.

12.3.09

Foi assim. Recebi, por mail, um convite para uma reunião com a turma do colégio. Poxa! Fazia mais de 30 anos que não nos víamos e fiquei muito animada com a idéia. Iria matar a saudade de todo mundo, saber como a vida tinha acontecido para cada uma das minhas amigas e colegas de escola. Lembraríamos os trabalhos em equipe, as professoras, as freiras, as conversas nos recreio. Tantas lembranças gostosas...
Será que fulaninha tinha conseguido casar com sicraninho, naquela época, o grande amor da sua vida? E aquela amiga que sonhava ser embaixatriz? Como estaria a usineira que sempre se esmerava em aprender como dispor com classe e elegância a prataria à mesa nos jantares solenes? E a filha do deputado? Será que casara com algum político e se mantivera no ciclo de poder da sua cidadezinha do interior?
Todas essas perguntas passaram pela minha cabeça enquanto estava à frente do computador. Corri para resgatar álbuns com fotos da escola: festas, jograis, São João, feiras de Ciência. As pernas finas, os cabelos presos em coques, as transformações corporais de menina para mulher, as festas de quinze anos, a primeira transa.
- Aconteceu uma catástrofe: não sou mais virgem. Naquele tempo isso era motivo de preocupação, pois a moça poderia ficar falada. Parece que foi ontem e tanta coisa mudou de lá para cá. Mas é só fechar os olhos que ainda sinto a mesma emoção que senti quando minha melhor amiga me informou que estava grávida aos dezenove anos.
Sarros nos playgrounds dos prédios, namorados escondidos embaixo da cama, fugas para a praia, cigarros no banheiro da escola, pílulas enfiadas entre cadernos. Era até proibido ler alguns livros de Jorge Amado porque despertavam o interesse pela coisa proibida muito cedo. Tudo tem seu tempo, diziam os mais velhos.
Agora, com o convite, de que lado eu estaria? Seria ainda a adolescente cheia de esperança ou me tornara a adulta repleta de receios e cuidados? Será que me sentiria pertencendo àquela turma?
O encontro aconteceria na sexta-feira, à tarde, claro, pois os maridos não concordariam em ficar em casa enquanto suas mulheres estavam na rua. Isso não ficaria bem para mulheres casadas e de boa fama. Estava ansiosa, pois me conheceram como uma quase freira, bem ligada aos valores da igreja católica, e eu me apresentava no momento como bruxa. Como reagiriam? Como contaria minha história de casamentos, separações, abortos, filhos, tesão, busca, alegrias e dores? Tinha mudado de profissão e estava tentando ser escritora. Você trabalha aonde? Em canto algum. Ah! E aquele olharzinho de coitada, está desempregada. Não sabia se teria vontade de explicar que não era bem assim, que tinha largado vários empregos para tentar essa nova atividade, que não gostava de me sentir presa e que a vida de escritora me dava a liberdade que tanto havia buscado. Será que compreenderiam?
Chegou o grande dia e me peguei escolhendo com cuidado a roupa que iria usar na festa, pois não queria aparecer com cara de velha. Foram só trinta anos. Só?! Escolhi uma calça jeans, uma camiseta básica e um salto alto. Levei algumas fotos dos filhos e do maridão. O coração acelerou e me dirigi para a mesa da turma reunida. Abraços, sorrisos, alegria, um zona total, com todo mundo falando ao mesmo tempo. De vez em quando, estourava uma gargalhada, com alguma história daquela época.
De repente, todo barulho foi ficando longe e percebi que eu havia me desligado do ambiente e estava apenas como observadora. Minhas amigas estavam todas usando máscaras. Terninhos de executivas, para as que tinham vindo direto do trabalho, já que juízas e promotoras usam essa fantasia; as que tinham permanecido dondocas estavam com roupas de marca e totalmente na moda; também havia as que se rebelaram contra o sistema e usavam roupas mais alternativas e escutavam comentários tipo ‘você sempre foi diferente, uma revolucionária’.
Todas contavam as mesmas histórias de sucesso e felicidade. Estavam super bem casadas, os maridos eram maravilhosos, os filhos eram lindos e trabalhavam no que adoravam. Os corpos lindos e jovens eram fruto de uma alimentação saudável e de exercícios físicos. Um verdadeiro conto de fadas!
O vinho foi fazendo efeito e as máscaras começaram a cair. O casamento não era lá essas coisas, quase não gozavam, quando transavam era muito mais uma trepada do que um ato de amor, não havia carinho, os filhos eram uma carga pesada, trabalhavam muito, na maioria das vezes sem ser no que queriam, gostariam mesmo era de ter liberdade. Os corpos perfeitos tinham cicatrizes de plásticas, botox, silicone, lipo. Contaram que maridos tinham amantes, que tinham amantes. Essa parte era sem culpa, ‘pelo menos nesses momentos tenho prazer e me sinto viva’. Nada de confissões aos padres e às freiras e ‘Deus que nos perdoe’.
Pose para as fotos. Pose para a vida. Apenas por esta tarde, pudemos voltar àquele tempo mágico em que sonhávamos com uma vida perfeita. Seríamos felizes, sim. Seríamos amadas e realizaríamos muita coisa. Deixaríamos a nossa marca no mundo. O que aconteceu nesse lapso de tempo?
Tive, então, a idéia, de fazer a pergunta:
- Se cada uma de nós pudesse voltar atrás, exatamente para o momento em que terminamos a escola, o que cada uma faria de diferente?
Silêncio total. Lágrimas disfarçadas. O garçom chegou com a conta. Despedidas. E aquelas frases banais, ‘a gente se vê’, ‘foi muito bom te encontrar’, ‘você está ótima’. As máscaras voltaram para o lugar. É mais fácil usá-las do que buscar a verdadeira face refletida no espelho.
Voltei para o carro naquele estado de euforia típico de uma adolescente. Comecei a dirigir e a música do carro começou a me dizer ‘o futuro é uma astronave que tentamos pilotar’. Perfeito. A minha pergunta se voltou para mim.
- Se você pudesse voltar atrás, exatamente para o momento em que terminou a escola, o que faria de diferente?

9.3.09

Conversei hoje com uma amiga que é psicóloga e trabalha como funcionária púbica. Ela estava triste porque o dinheiro é pouco; perguntei-lhe se não gostaria de trabalhar uma parte do dia em consultório, pois teria uma renda extra. Segredou-me que adoraria mesmo era trabalhar com arte, um sonho de menina que nunca realizou.
Lembrei-me, então, de outras amigas e amigos com outros sonhos de infância que nunca foram realizados. Uma, trabalha com computadores, mas gostaria de ser arquiteta; tem outra que é professora e leva o maior jeito com moda. Conheci uma pessoa na minha adolescência que queria ser geólogo porque amava o contato com a natureza. Hoje é engenheiro, ou melhor, dono de uma empresa que constrói edifícios e vive trancado em seu escritório, talvez, apreciando o pôr do sol pela janela fechada por conta do ar-condicionado. Convivi também com um excelente técnico em informática que dominava completamente a lógica dos computadores e que sonhava ser fazendeiro; adorava o cheiro da bosta do gado e ficava horas contemplando cavalos. Soube que continua trabalhando com tecnologia e que seus ombros estão curvados, imagino eu que não resistiram ao peso de seu cotidiano. Um outro amigo trabalha com eletrônicos e dá aula até tarde da noite, mas adora mergulhar e fazer trilhas de bicicleta; precisa sentir seu corpo em movimento e passa seus dias num ritmo lento, tão lento quanto seu andar quase sem vida.
Pensei no meu percurso. Quando pequena sonhava ser aeromoça para poder viajar muito e conhecer lugares diferentes. Depois quis ser freira e trabalhar na África em missões religiosas. Viajei muito pouco e de freira não tenho coisa alguma, já que casei três vezes. Adorei livros desde muito cedo e desejei viver no meio deles, mas fui trabalhar com tecnologia e, depois, como psicóloga. Tenho filhos e pessoas que ainda dependem dos meus cuidados e justifico assim o desvio que fiz no meu caminho.
Em que bifurcação da estrada de minha vida tomei o rumo errado? Por trás de que árvore abandonei meus sonhos de menina? Por onde deixei meu coração? Quando vendi minha alma ao diabo? Será que ainda dará tempo?
Era uma vez...