1.1.11









Fotos: Roberto Arrais


Novo ciclo. Nossos ancestrais sabiam que a vida dos humanos precisa se conectar com os ciclos da natureza. Parece que esquecemos este valioso ensinamento e apenas nos ligamos ao ritmo dos relógios. Tudo na Terra segue os ciclos das estações, realizando o que o simbolismo de todas as tradições já representam: nascimento, vida, morte, renascimento.
O início de um novo ano concentra as energias para as possibilidades que todos teremos de fazermos diferente, de tomarmos aquela atitude que nos fará felizes, mas que adiamos achando que a vida é eterna. Na verdade, deveríamos viver cada novo dia como se fosse o início de um novo ano, focalizando tudo que podemos realizar para a felicidade acontecer no aqui e agora. Porque, se pararmos para pensar, veremos que não sabemos se continuaremos vivos no dia de hoje e se sentiremos a alegria de acordarmos para um novo bom dia!
Aprendi, na pele, estes ensinamentos com meus pais e minha tia: meu pai tomou uma dose de uísque e teve um avc que o deixou limitado por dez anos; minha mãe foi dormir e não acordou mais; minha tia foi ao banheiro e quando voltou e se sentou no sofá teve um avc que a colocou em coma por mais de dois anos. Por que fugimos da realidade que a morte está sempre à espreita, empurrando-nos para saborear a vida em toda sua plenitude?
E se você não tiver um amanhã?

31.12.10







A cada dia que vivo, assumo mais o meu lado bruxa. Hoje, último dia de 2010, comecei com orações, de todos os credos, exercícios xamânicos, meditação. Comprei flores e arruda, já fiz rituais e a mesa estará pronta com todos a simbologia que representa os valores que me são caros. Água, vinho, pão a partilhar. A cada novo ciclo renovo meu compromisso com a Vida. Não quero uma existência que passe como uma ventania, sem me permitir perceber o significado das coisas que me acontecem. Sob as bênçãos da Deusa, procuro expressar o Sagrado do Feminino aqui neste planeta lindo, iluminado pelas estrelas, pela lua e pelo sol.

No final da tarde coloquei tarô para me conectar com as energias que me envolverão no novo ano. Gostei do que descobri. Muito trabalho e o começo do meu renascimento.
Lembro que em 1999, no finalzinho de novembro, papai sofreu o avc e tivemos uma virada de ano muito difícil. Em 2001, mamãe se foi e nosso reveillon foi doloroso. Agora, em 2010, quem partiu foi papai e estou aqui, cheia de saudade, procurando forças para seguir em frente. Minha filha está longe, com o pai. Meus irmãos também não estão ao meu lado. Os filhos cheios de ideias para festas com os amigos. Reverencio os amores que tive e nesta noite mágica também peço pela felicidade de cada um deles. A casa está em silêncio. Pela primeira vez, nada de festa. Uma experiência diferente.
Apesar das perdas, este ano também me trouxe muitas realizações. Meus filhos realizaram muitos dos seus projetos, meu marido retomou a estrada de seu coração e eu tive a oportunidade de me entregar ao sonho de infância, sou escritora. Além disso, conseguimos vir morar na casa que apaixonou toda nossa família e estamos convivendo com bichos, plantas e estrelas numa forma nunca imaginada antes. Só fico triste quando penso na nossa casa de praia, que está alugada, pois estou morrendo de saudades dela. Em abril estaremos novamente lá.
Quando viramos o ano passado, não sabíamos o que nos aconteceria no ano que se iniciava. Gosto desta sensação de mistério. Ninguém faz ideia do que vem lá, como Lenine canta na música. E 2011, que surpresas nos trará?

30.12.10











Fotos: Roberto Arrais


Desde pequenos que meus filhos ganham de presente de natal um kit cultura: cd, dvd e livro. Neste, não foi diferente. Receberam livros, cds, dvs com shows e filmes. Já compartilhamos alguns, outros ficaram para quando as férias acabarem e todos voltarem para casa. Ainda bebês, com fraldas e mamadeiras, visitávamos museus, exposições, livrarias, praças e parques, sim, porque a natureza sempre fez parte do rol das coisas que considero essenciais para todo mundo aprender a amar. Hoje já colhemos os frutos. Têm um execelente gosto musical – o mais velho quer trabalhar com produção fonográfica e cinema -, adoram ler – o mais novo devora livros -, curtem arte – a mais velha é uma fotógrafa maravilhosa e começou a colocar sua alma nas palavras. Gostam de roteiros de viagem diferentes, sem essa de visitas a shoppings, bares e restaurantes, mas com programas que incluam as belezas naturais e o que o lugar tem de cultura. Minha filha já presenteia com livros, dvds e cds. Pudemos ouvir Maria Betânia, tomando um delicioso vinho. Peguei carona no livro que meu filho ganhou e me deliciei com Clarice, a Lispector, claro.
- Quando eu crescer quero ser como ela!
Às vezes penso que se copiasse o que escreveu e colocasse embaixo minha assinatura, todos iriam pensar que o texto era meu, pois diz exatamente o que penso e sinto neste momento de minha vida.
- Quando é que se é escritora? – pergunto eu, como ela se perguntava.
Adoro ficar na minha nova sala de trabalho, ouvindo o vento balançar as folhas dos cajueiros e mangueiras que envolvem a casa, sentindo o perfume inebriante e sensual dos frutos e das flores que vivem por aqui. Não gosto do gosto do cajú, mas estou completamente apaixonada pelo seu perfume. Quando a brisa vem e seu cheiro me envolve, minha alma sorri com alegria.
Tal qual Clarice, venho prestando mais atenção às coisas da vida. Observo pássaros, árvores, flores; presto muita atenção aos pavões que passeiam e cantam no jardim. Os sentidos do corpo estão muito aguçados em mim. Tudo que é som, cheiro, gosto, pele e visão me cativa. O relógio em meu braço não é mais o meu guia. A luz do sol e o brilho das estrelas orientam agora o meu cotidiano. Um objeto que me fascina é o espremedor de laranjas. Seu som, pela manhã, logo cedo, me deixa com água na boca por antecipar a delícia do suco que vou tomar. Suco de laranja é algo de deuses. Que linda sua cor! E a xícara com a fumacinha do café formando desenhos no ar e o aroma inconfundível deste mágico líquido preto se espalhando pela casa! Isso tudo, sim, é que é magia. Lá fora a vida continua agitada e eu, aqui no meu paraíso particular, cultivo uma rica vida interior. Não sei o que a televisão mostra, não leio mais jornais todos os dias. Minha conexão com o mundo se faz através da internet e das conversas com amigos e familiares. Acabei de saber que houve um assalto com metralhadoras e gente ferida num supermercado onde costumava fazer compras. Essas histórias não mais me pertencem. Por enquanto, apenas cercada pelo que me interessa. Discos, livros, filmes, sensações, rede. Da minha mesa vejo passando um grupo de guinés.
- Tô fraco, tô fraco, tô fraco.
Fazem sempre este percurso, mais ou menos no mesmo horário. São lindos. Lembro que durante um tempo, quando lia Pessoa, não entendia muito quando ele falava da existência das coisas por si mesmas, sem a necessidade da compreensão, de uma explicação. Ah, como sinto estas coisas como verdades hoje. A vida existe sem a minha permissão. Simples, assim.
Outra situação que compartilho com Clarice é que ela escrevia no seu lar, cuidando da casa, acompanhando o crescimento dos filhos, colocando rosas nos vasos da sala. Para mim, essa rotina é essencial, é o que me alimenta. Adoro a família em volta da mesa jogando conversa fora. Imperdível o leite batido no liquidificador com Sustagen, Nescau e Ninho. Delícia! Abrir as portas dos quartos, vê-los dormindo o sono dos anjos e agradecer aos céus por mais um dia de felicidade. Já o meu lugar no mundo é quando encosto a cabeça no peito do meu marido e ouço o som do seu coração.
Às vezes fico pensando em que como sou boba. Valorizo coisas que a maioria das pessoas nem percebe. Marcas, moda, hábitos da contemporaneidade me fazem pensar que pertenço à época das cavernas. É bem verdade que uso computador, chuveiro quente, arcondicionado, e adoro a comodidade proporcionada por eles. Fico em êxtase com obras de arte e nossa casa é cheia delas.
Quando olho para os cômodos do lugar que hoje moro, encanto-me com as transformações que ocorreram. Parece que aqui é um lugar encantado que sempre existiu para nos acolher. Está com a cara dos membros de nossa família e nenhum de nós tem muita coragem de sair daqui para enfrentar a agitação do mundo lá fora.
Bom, o que acho mesmo é que Deus é muito do amostrado.

28.12.10












Deus!


Casimiro de Abreu

Eu me lembro! Eu me lembro! – Era pequeno
e brincava na praia; o mar bramia
e erguendo o dorso altivo, sacudia
a branca espuma para o céu sereno.

E eu disse a minha mãe nesse momento:
“Que dura orquestra! Que furor insano!
Que pode haver maior do que o oceano
ou que seja mais forte do que o vento?!”

Minha mãe a sorrir olhou pros céus
e respondeu: - “Um ser que nós não vemos
é maior que o mar, que nós tememos,
mais forte que o tufão! Meu filho, é – Deus!”



O mar também tem amores,
o mar também tem mulher.
É casado com a areia
e dar-lhe beijos quando quer.
É casado com a areia
e dar-lhe beijos quando quer.


Este poema e esta canção de ninar ainda estão em meus ouvidos com o tom de sua voz. Se fechar os olhos, posso vê-lo cantando, uma mão no joelho e a outra segurando seu inseparévl cigarro, entre um gole e outro de uísque. Como gostava de contar causos e histórias! E que memória brilhante! Decorara todas as lições de sua cartilha, comprometendo o início de seu aprendizado com as letras. Muito, muito inteligente, entendendo de lógica e compreedendo as estrelas no céu, não permitiu que se perdesse no mundo das ideias. Gostava das coisas simples da vida e soube conciliar os opostos que nele habitavam: filho de Maria e frequentador das famosas Festas da Mocidade; boêmio e intelectual. Adorava contar sobre os banhos de mar com seus irmãos e seu pai nas madrugadas do Carmo em Olinda.
- Lá vem perigo amarelo! – diziam todos de sua família anunciando a chegada de seu irmão.
A igreja de São Pedro foi o berço de sua formação católica. Foi lá que fez sua primeira comunhão, junto com sua irmã, numa impecável roupa branca.
Criava galinhas, subia em árvores e telhados, deixando quase louca de preocupação sua Santa Mãe, como gostava de chamá-la na saudade de seus cuidados e proteção.
Deliciava-se com os filhoses de sua babá e não trocava por nada os seus famosos bifes de molho. Cuidou de todos eles - pai, mãe, irmão, irmã e babá - até o fim de suas vidas. O menino de calças curtas, trabalhador de 2a. e de 1a. aos quinze anos, que só tinha dinheiro para comprar uma única calça comprida, transformou-se no anjo da guarda de todos, dos que fizeram parte de sua família de origem e dos que formaram a família Theophilo Benedicto de Vasconcellos, sua mulher e seus três filhos.
Formou-se em Matemática e em Engenharia Civil. Foi professor universitário de sua amada UFPE. Lá foi pró-reitor por diversas vezes. Teve muitos amigos e sempre foi leal aos que compartilharam seu dia-a-dia. Adotou a família da esposa como sua e distribui muitos vestidos de noiva.
O Rotary foi uma extensão de sua família. Foi presidente, governador e simples sócio.
Nunca cargo algum lhe subiu à cabeça. Humilde, gostava de usufruir do que tinha com aqueles que amava e com os mais necessitados.
Aquele menino franzino que brincava seu ursinho e, depois, com seus cachorros, chegou longe. Jogava futebol, pingue-pongue, gamão, xadrez, dominó, baralho, paciência. Era o estudo das probabilidades.
Comia sal e açúcar e menosprezava os cuidados com a saúde.
Imitando o grande amigo, perguntava, quando vestia sua calça branca, seu sapato branco, seu cinto branco e sua camisa de seda vermelha, para ir para mais uma noitada ao lado da esposa amada e da turma de amigos do Rotary ou do Cesesp, na Adega da Mouraria:
- Mamãe, será que estou agradando?
A vida passou rápida e foi traiçoeira. Sua mulher teve Parkson, ele teve um derrame que deixou sequelas em sua área mais desenvolvida: a cognição. Ficou viúvo e viveu dez anos de solidão. Não tinha mais o brilho no olhar, não cantava mais as saudades da professorinha, nem me colocava em seu colo, alisando meus cabeos e me garantindo que tudo ficaria bem.
Sempre se gabou porque seu nome registrava sua aliança com o Cara lá de cima: amigo de Deus.
Eu fiquei sozinha e o vazio provocado por sua partida é tão grande e dói tanto que me faz perguntar, olhando para o mar que tanto amou:
- Deus, Você ainda está aí?
Como continuar a viver sem tê-lo ao meu lado?

Ainda não havia conseguido colocar em palavras algo que se referisse ao meu pai depois que partiu para uma outra vida. Sempre disse que no dia de sua morte eu surtaria. Infelizmente, o surto ainda não veio, mas a dor de sua ausência é imensa e estou tentando permanecer aqui na vida. Ser sua filha foi um privilégio e perdê-lo, a experiência mais dilacerante de minha vida.

Este é o primeiro dos muitos textos que virão. Aos poucos, quando as lágrimas me deixarem ver o teclado.

26.12.10




Fotos: Roberto Arrais


Mais uma vez, final de ano. Um ciclo se encerra, outro se prepara para começar. No meu caso, realmente, uma verdadeira transformação. Troquei de pele. Deixo de ser psi e começo a vida como escritora. Nada mais difícil me aconteceu até agora. Como libertar a artista que habita em mim, se durante anos a mantive trancada, deixando apenas a razão ser aquela que me conduzia? Preparei tudo: mudança de casa, um lar cheio de árvores, flores, frutos e bichos, cheiro de natureza, melodia de pássaros, silêncio para criar em um espaço só meu, cercada de livros e das coisas que me fazem bruxa. Mas, cadê os textos? Só me chegam lágrimas de uma saudade de uma vida que tive, da vida que tenho e de uma outra que não sei se terei. Alterno entre uma tristeza profunda e uma alegria quase infantil. Leio, leio, medito, coloco água no jardim, cuido de todos e dos detalhes que tornam nossa casa um lar com o nosso jeito. Há tanto tempo sem cuidar de mim que acho que perdi o jeito.
O que mais me faz feliz? Ver a vida pulsando em meus filhos. São livres, de uma forma que nunca consegui ser. Quando me perdi da alegria?
Pessoa me revela que minha dor não pertence apenas a mim:

"Mais triste do que o que acontece
É o que nunca aconteceu.
Meu coração, quem o entristece?
Quem o faz meu?
Na nuvem vem o que escurece
O grande campo sob o céu.
Memórias? Tudo é o que esquece.
A vida é quanto se perdeu.
E há gente que não enlouquece!
Ai do que em mim me chamo eu!