27.12.07

Que parte te cabe neste latifúndio?

Passou o corre-corre do Natal. Acabaram-se os shoppings lotados, os engarrafamentos, as filas. Troca de presentes, roupas bonitas, muita comida e muita bebida. Para onde foi o espírito natalino? Onde ficou a solidariedade? Em que lugar foi colocada a possibilidade de renascimento para uma vida mais inteira?
Tive a oportunidade de ganhar um enorme presente de Natal ao participar de uma reunião do Movimento dos Sem-Teto. Tudo tão organizado. A discussão foi sobre a vida e os valores de Ernesto Che Guevara. Uau! Que homem! E lá, numa sala lotada de gente que sonha e acredita, havia a esperança de que um dia, cá, no nosso gigante Brasil, cada um tivesse direito ao seu punhado de chão, ainda em vida, para não ficar apenas com a parte que ‘te cabe nesse latifúndio’, como aconteceu em Morte e Vida Severina, de João Cabral.
Impressionou-me a quantidade de mulheres com seus filhos presentes à reunião. Todos e todas politicamente esclarecidos, discutindo eleições, compra de votos em troca de sacos de cimento, CPMF, escola para todos, saúde para todos. Meus amigos e amigas letrados não têm as informações que eles têm e discutem.
A organização do movimento fez uma apresentação dos valores s sonhos que dão base ao seu funcionamento. Entrou uma criança com a bandeira, entraram mulheres e homens com pás, enxadas, réguas, entraram, também, com um tijolo e uma telha, ‘com esse tijolo construirei as paredes da minha casa’, ‘com essa telha cobrirei o telhado da minha casa’. Lágrimas rolaram pelo meu rosto. Agradeci ao Universo a oportunidade de estar ali, compartilhando o sonho sagrado de moradia e aprendendo com eles que a esperança sempre nos impulsiona para a vida. Gente teimosa, que não desiste nunca.
Ao final, o grupo cantou ‘Che, Zumbi, Ontônio Conselheiro, nós somos companheiros...’. Eles estão certos, pois como os heróis citados, são heróis e constroem com o seu suor um país para todos. Naquele momento vivi o meu Natal. Nasci de novo.

22.12.07

Vida de escritora

Desde que comecei a escrever que fiquei imaginando como seria a emoção de publicar meu primeiro livro, como me sentiria, se me reconheceria como membro da nova confraria, se meu coração iria disparar, se as lágrimas rolariam pelo meu rosto.
De repente, aconteceu. Acho que nem percebi direito como a coisa foi sendo construída. Um mail, um texto, um acerto, um convite para o lançamento, uma caixa de correio e, como num enredo de história em que o tempo e o espaço são construídos pelas palavras, eu o tinha em minhas mãos. Fiquei emocionada. O coração não disparou, parou. As lágrimas vieram e me lembrei de quando Fernando Pessoa me empurrava para os sonhos: ouse, sonhe, acredite, realize, o Universo faz o resto. Ele estava ali, pequenino, bonito, uma história escrita por vários autores e autoras e eu era uma delas. Fui folheando as páginas devagar, com carinho, procurando com os dedos meu nome, minha história. Olhei-o, cheirei-o, deslizei-o sobre minha face. Aquilo era real. O livro não estava no buraco de Alice.
E eu, que estava tão sem rumo, retomei o meu caminho. Simples, assim.

21.12.07

Missa no Interior

Nem sei dizer há quanto tempo fui a uma missa no interior. Hoje, ao participar de uma, deu-me uma enorme saudade da infância, saudade da minha mãe e dos tempos em que ouvia ‘Deus te abençoe’.
A missa está diferente. Muitos jovens, que cantam e fazem coreografia. Os mais velhos ficam quietos como se lembrassem de que sem eu tempo a missa era celebrada em latim e as mulheres tinham que usar véu.
Encantei-me com uma senhora de lindos cabelos brancos. Tive vontade de reverenciá-la e ela ainda achava humildade para se ajoelhar e pedir perdão.
O padre não merecia seu rebanho. Parecia um rei, ditava ordens e conselhos, foi grosseiro. Enfim, prepotente. Bem longe do amor pregado por Jesus.
Percebi que a missa numa cidade de interior é um evento social – tivemos até Parabéns para você.
É bonito o ritual, o som do sino a ecoar pela cidade, convocando todos para um encontro com o sagrado.
Apesar dessa possibilidade, não consigo deixar de ficar incomodada com o conceito de pecado que as religiões trazem. Pregam que só através delas há salvação
Não sinto assim. Conecto-me com o Sagrado toda vez que me permito o sentimento do Uno.

15.12.07

Carta para uma amiga

Vi uma escritora lançando um livro em que assumia a identidade de vários personagens e escrevia cartas. Resolvi imitá-la e vou escrever uma carta a partir do lugar de uma mulher de 40 anos que acabou de se separar.

Querida amiga Moni:
Acabei de me separar e, pasme, nossos amigos estão chocados com minha atitude. Como você já sabia, há algum tempo eu vinha tentando salvar meu casamento. Augusto é uma pessoa muito legal, mas sempre exigiu de mim uma subserviência que ficava difícil de manter. Até que tentei e pedi demissão do meu trabalho só para ficar disponível para ele. Não havia carinho, não havia cumplicidade nem companheirismo. Esforçava-me para agradá-lo e sempre vinha uma patada. Desse jeito ficava muito complicado fazer amor e o meu tesão andava lá embaixo.
O nosso Réveillon, um caos; o Carnaval, sem alegria; a Páscoa, não teve doçura; o São João, cheio de lágrimas e o Dia dos Namorados foi repleto de solidão. Ainda teve aquela paixão de Augusto por nossa vizinha e ele vivia fazendo mimos para ela e me obrigando a carregar cadeira e a pegar cerveja gelada. Não o responsabilizo pela crise. Eu, apenas eu, deixei as coisas chegarem aonde chegaram. Há uns meses ele avisou aos nossos amigos, os mesmos que estão me atirando pedras, que iria sair de casa; depois, desistiu e tudo foi esquecido.
A tristeza foi tomando conta de minha alma e cheguei a desejar minha morte para que ele sentisse o quanto eu era importante em sua vida. Tantas e tantas vezes lhe disse que enquanto eu estivesse brigando pelo casamento teríamos alguma chance, mas quando eu jogasse a toalha seria realmente o fim. Não acreditou.
Resolvi que queria mais da vida, que queria mais de um casamento e pus um ponto final nessa história. Aí, acordou para Jesus. Prometeu ser o melhor marido do mundo, reconheceu todas as grosserias, assumiu que morria de ciúmes de mim e por isso me agredia, me disse que eu era a mulher mais gostosa e maravilhosa que poderia existir, chorou, chorou e sonhou que tudo iria ser diferente. Fiquei arrasada porque era isso que eu desejava antes, mas nesse momento o meu coração não estava mais preenchido por ele. Não consegui dar mais uma chance.
Os nossos amigos e amigas surtaram. Acusaram-me de estar traindo a instituição família, de estar provocando sofrimento nos meus filhos. Deram colo para Augusto e me deixaram só.
As coisas pioraram quando me envolvi com um homem maravilhoso que havia conhecido no meu antigo trabalho. Chegaram a sugerir que eu tivesse um caso, que não precisava acabar o casamento por causa de uma aventura, isso sugestão das amigas, claro, pois os homens sentiram-se traídos. Ninguém acreditou que esse meu novo amor não tinha sido meu amante, com exceção do meu ex-marido, dos meus filhos e dos meus pais. Incrível, né?
Só que eles sabem que eu jamais viveria uma situação assim. Talvez, algumas das mulheres tenham ficado chateadas porque não tiveram a coragem que eu tive. Ah! E que você também teve, afinal você foi a primeira a se posicionar assim.
Agora, amiga, o que me magoou e ainda me magoa é que esses meus amigos homens tiveram o meu apoio em todos os momentos que viveram, inclusive quando entraram em crise nos casamentos, apaixonaram-se por suas amantes. Ajudei ainda suas mulheres, escutando-as e dando aquela força para validar o amor entre eles. Isso tudo foi jogado na lata do lixo.
Além disso, temos quase 40 anos de amizade e muitas, muitas histórias juntos. Enfrentamos mortes de pai, mãe, irmãos, nascimentos e doenças de filhos, aniversários, festas, velórios. Foram tantos os momentos vividos lado a lado.
É uma pena que a vida tenha colocado experiências desse tipo no meu caminho. Mas estou vivendo um momento muito mágico, cheinho de amor, alegria, tesão, cumplicidade, paz, carinho, enfim, tudo que sempre acreditei mas que achava que não aconteceria mais em minha vida. Presentão da Deusa, né?
Um beijo carinhoso.
Tital

30.11.07

Será uma novela?

Tenho uma amiga-irmã que diz que não assiste mais as novelas da TV porque os autores não têm imaginação, já que minha vida é muito mais imprevisível que qualquer novela. Exageros à parte, até que tenho vivido experiências ricas em emoção.
Casei-me a primeira vez aos 23 anos achando que seria para sempre. Ledo engano. Quatro anos após a festa estava separada e com uma filha de um ano e meio para cuidar. Vivi momentos difíceis, tive medo de não conseguir dar conta de tudo. Sobrevivi. Depois, envolvi-me com um grande amigo, engravidei, abortei – conto depois -, casei com ele, tive mais dois filhos e estivemos juntos por dezessete anos. Separei-me há pouco tempo. O engraçado dessa parte da história é que no filme do meu primeiro casamento ele aparece ao lado da esposa; os meus pais foram padrinhos do casamento dele. Éramos amigos de infância e até já frevamos juntos numa homenagem aos pais. Nunca imaginei que pudesse ser meu marido algum dia. Mas a gente não sabe o que o futuro nos reserva e isso é fantástico.
Há uns cinco anos o meu Príncipe Encantado, meu primeiro e único namorado – minha filha diz que sou a única mulher que ela conhece que só teve um namorado e três maridos – me procurou, via internet, e disse que sentia muito a minha falta, que sempre se lembrava de mim e que queria saber como eu estava. Fazia quase vinte e cinco anos que não nos víamos. Quase desmaiei na hora que vi o mail. Trocamos vários, nos falamos por telefone algumas vezes, mas continuamos sem pôr os olhos um no outro. Ele se separou, casou-se novamente. Eu me separei, casei novamente. Ma s a vida nos manteve distante.
Noutro dia, um pouco antes de minha separação, estava muito triste num shopping e resolvi tirar minhas alianças e ver como ficaria minha mão sem elas. Só que havia chorado muito e tinha tirado os óculos, pense numa mulher cega. Ele passou, olhou muito para mim, eu olhei para ele, mas não o vi. E eu estava sentada numa mesa colada à mesa dos filhos dele, tinha conversado com eles e tudo. De repente, senti meu coração disparar e intui que era ele. Minha amiga, que havia ido ao banheiro, procurou por ele com o olhar e o achou, ainda lívido com a situação. Não nos falamos.
Eu teria uma reunião logo após o almoço com um amigo para planejarmos uma palestra. Claro que o trabalho não rolou, pois estava descompensada. Meu amigo riu muito com a história, deu-me colo e hoje estamos juntos, vivendo o maior amor do mundo. E ainda dizem que a vida imita a arte. Até que minha amiga tem razão!

29.11.07

Agora é pra valer

Desde que resolvi ser escritora fiquei com receio de que meus textos fossem muito narcísicos, já que meu mestre havia ensinado que devemos ter cuidado para não ficarmos falando só sobre nossa própria vida. Então, escondi-me atrás de pronomes impessoais, de sujeitos ocultos e de personagens. Mas sentia que isso demonstrava que ainda estava usando minha pele de asno, que ainda estava sem coragem de mostrar a minha cara.
Resolvi que agora é para valer. Vou postar fotos, vou me identificar, vou falar de mim, sim, da minha história, das minhas experiências, das minhas alegrias e das minhas dores. Acredito que isso vai dar mais intensidade aos meus textos, já que serão mais verdadeiros, e que muitas outras mulheres comuns, como eu, poderão também se ver neles.
Vamos lá! Agora esse blog vai ser movimentado. Começo postando minha foto.
Meu nome é Patrícia. Tenho 45 anos. Nasci no Dia da Criança e acho que fiquei marcada pela ingenuidade da infância para o resto da vida. Acredito de verdade em fadas, duendes, que tudo está vivo e interconectado. Pense numa mulher que acredita na sabedoria do Universo! Sou libriana e adoro o belo.
Vou apresentar-me através dos arquétipos das Deusas. A minha Ártemis adora o contato com a natureza. Amo mergulhar no mar quentinho do nordeste brasileiro – até bebo a água salgada! -, adoro o silêncio do vento, encanto-me com árvores e flores. Sinto que a natureza é a expressão da Divindade, não importa o nome que damos a Ela. Já a minha Afrodite é a Deusa que me guia. Só consigo ficar numa relação se estiver completamente apaixonada. Graças a ela tenho dois ex-maridos e vivo um amor mágico. Hera me torna uma boa anfitriã e uma guerreira quando se trata de conseguir um objetivo. Deméter me realiza como mãe de três filhos lindos e ainda como mãe do mundo. Atena me ajuda muito a usar meu QI acima da média e me inspira a estar sempre começando novos projetos. Perséfone me leva ao Paraíso e ao Inferno e me faz conhecer minha sombra. Integrando tudo, reverencio a Grande Deusa, que reúne toda sabedoria feminina. Sempre disse que nasceria como mulher todas as vezes que tivesse a chance de reencarnar.
Bom, por hoje é só.

30.10.07

Reencontro

Estava no alto de uma colina quando o vi pela primeira vez. Roupas comuns, barba e cabelos brancos, passos firmes e tranqüilos que o conduziam em minha direção. Neste momento senti o enorme amor que emanava de sua alma. Eu estava diante de um homem iluminado. Meu coração se encheu do mais profundo amor e ajoelhei-me em reverência à sua sabedoria. Estendeu sua mão e com uma voz doce me pediu para levantar, colocando-se como apenas humano. Num lampejo, enxerguei sua luz, humildade, coragem, força, doçura, carinho, ousadia, conhecimento, sensibilidade, uma imensa esperança e a fé inabalável na vida.
Em silêncio, agradeci ao Universo a oportunidade de compartilhar sua energia sagrada. Resolvi segui-lo, acolhê-lo carinhosamente em meu colo e ajudá-lo em sua missão. Fiquei feliz, plena e percebi que naquele instante eu tinha reencontrado a minha alma.

1.9.07

Pijama

Estava ela deitada em sua cama, aninhada em cobertas, lençóis, travesseiros e almofadas. Vestia um pijama rosa com bolinhas brancas que tinha escrito na blusa ‘eu gostaria de morar em seu coração’. Nos pés, meias com desenhos de ursinhos. Parecia uma adolescente e camuflava, assim, a sensualidade da mulher madura que era. Encantava-me apreciá-la em seu mundo mágico, rodeada de livros. Lia Clarice e ria e ria. Lia Florbela e chorava e chorava. A história das mulheres também lhe fazia companhia. Estava plena. Seu sorriso era doce. De vez em quando, suspirava. Imaginava eu que era de felicidade. Ficava tentando ler-lhe os pensamentos. Ouvia, não sei se de verdade ou apenas na minha imaginação, que ela agradecia à Deusa a coragem de ser mulher e de se manter fiel à sua tradição, reverenciando, mais uma vez, na vida atual, o sagrado do feminino. Lembrava de sua luta como mulher nos campos, onde trabalhara para o sustento dos seus. Lembrava quando usara sua sabedoria e os ensinamentos da Mãe Terra para a cura dos males e fora queimada na fogueira como bruxa. Sim, fora uma bruxa e a força dessa bruxa a acompanhara até agora. Lembrava quando facilitara a fuga de outras mulheres com seus filhos e filhas durante o caos dos campos de concentração nazista. No presente, estava orgulhosa por não ter fugido à luta e ter enfrentado o seu desafio mais ousado: entregar-se ao seu coração. O medo do desconhecido fora grande. Perceber que a vida não estava sob seu controle fora atordoante demais. Mas, conectara-se com sua alma e entendera que não precisava se acovardar. Confiara na vida e se jogara para saborear todos os riscos de uma existência cheia de amor.
Realmente, ela estava feliz. Fiquei com inveja dela.

21.8.07

Prisão

Meu Amado:
Estou incomunicável, trancada na torre do castelo e sendo vigiada em todos os meus passos. Papai não admite nosso relacionamento. Acha-me jovem demais e não aceita sua condição financeira e também sua idade. Diz que você vai morrer logo e que não poderá me proteger por muito tempo.
Bá me acompanha para todos os lugares e tem ordens expressas de não deixar você se aproximar. Mas, resolvi escrever-lhe para que compreenda e sinta a minha dor. Não sei se estas linhas, que revelam um pouco do meu sofrimento, conseguirão chegar às suas mãos. Vou tentar.
Sinto falta de você, do toque de suas mãos, da doçura de sua voz, do seu sorriso fácil e franco. Como lamento não termos mais nossas intermináveis conversas de fim de tarde, quando nossos olhares diziam o que as palavras não conseguiam expressar. Bastava-me olhar-lhe para que meu coração revelasse o segredo do meu amor por você.
A família planeja-me um casamento de conveniência. É isso que se espera de uma moça de bem. Não posso aceitar que a vida me traga tão amargo destino. Como poderei casar-me com alguém com quem não terei afinidades, com quem não poderei conversar ou ainda derreter-me em seus braços de carinho e desejo? Como poderei convencer-me de que viver é apenas ser uma boa dona de casa, uma esposa obediente e uma mãe exemplar, quando sinto em minhas veias o pulsar da vida que me chama para a liberdade e para as descobertas?
Triste sina a minha. Mulher subjugada numa sociedade hipócrita. Os livros têm sido meu alento. A poesia de Pessoa dorme sempre junto ao meu travesseiro. Ainda não lhe contei, mas descobri há pouco a intensidade de Florbela Espanca, também poeta portuguesa. Sei que irá adorá-la, pois fala do amor exatamente como o vivenciamos.
Sofro e sinto em meu corpo a dor de sua ausência. Os dias não têm mais o mesmo brilho. O sol já não aquece com toda sua intensidade e a lua, coitada, não ilumina mais o céu apenas para que possamos trocar beijos cheios de desejo. O vento sopra triste, cantando a canção da saudade. Ah! Quanto ainda teremos que suportar para podermos viver plenamente o nosso amor?
Para você, minha saudade, minha ternura e um beijo carinhoso pousado no canto de seus lábios.
Eternamente sua.

19.8.07

A festa

Estou feliz. Vou me casar novamente. Desta vez, sei que será por muito, muito tempo. Encontrei um homem maravilhoso e nos reconhecemos desde a primeira vez que nos vimos.
Resolvemos compartilhar nossa felicidade dando uma festa e convidamos os amigos, os familiares e as pessoas que já fizeram parte de nossas vidas. Este já é o nosso quarto casamento. Cada um tem três ex, além de outros personagens que não ficaram por um tempo maior ao nosso lado. Procuramos em nossas lembranças pessoas com quem ficamos, pessoas que namoramos, pessoas pelas quais nos sentimos atraídos. Resgatamos fotos, objetos, músicas.
Algumas amigas minhas acharam que eu tinha enlouquecido e me perguntavam se não teria ciúmes de todas elas, que quando meu amado visse suas ex se sentiria mexido e que isso poderia abalar minha relação com ele, talvez até desistisse do casamento e voltasse para uma delas. Não considerei esses pontos já que eu e ele achávamos que se havíamos chegado ao presente da forma que chegamos, devíamos muito disso ao que aprendemos com as pessoas com as quais nos relacionamos. Poderíamos agradecer-lhes a bênção de estarmos prontos para vivermos um amor tão lindo.
A festa foi super animada. Todos os ex com filhos, os meus, os seus e os nossos, com as atuais esposas, namoradas ou ficantes, ou ainda, maridos, namorados ou ficantes, amigos de várias fases de nossas vidas – descobrimos até que muitos deles eram amigos entre si –, nossas famílias, todas as pessoas que de alguma forma foram importante para nós, estavam lá, brindando à nossa felicidade. Os álbuns passavam de mão em mão e ríamos com as roupas da época e com os fatos que vivemos e que ali estavam registrados. ‘Eita, aqui foi quando brigamos por causa....’. ‘Essa aqui foi quando estávamos na festa de ...’. Tanta coisa compartilhada, tanta história a ser contada.
Momento mágico para nós dois. Coisa boba essa de dizer que uma relação não deu certo porque acabou. O poetinha já nos ensinou que todo amor dever ser eterno enquanto dura.
Ainda estamos curtindo os momentos hilários da festa. No nosso casamento, só nós dois.

6.8.07

Se lave-se

A gente aprende muito numa com conversa de mulheres. Noutro dia, uma amiga estava me contando sobre uma experiência que uma amiga dela teve com o marido. Era Dia dos Namorados. Ela havia ido antes para a casa de praia deles e preparado um jantar todo romântico, com velas, flores, incenso, vinho, tudo em tons vermelho, comprado uma camisola nova, colocado uma música para dançar agarradinho, tudo no clima para uma noite de amor. Quando chegaram lá o marido não fez comentário algum sobre o cenário, pegou o vinho, abriu, encheu as taças, começou a tomar, sem brindar, e ligou a televisão. A amiga da minha amiga respirou fundo, tentou relevar, pensando que os homens são assim mesmo, e continuou tomando vinho ao lado do seu amado. Depois de algumas taças, ele virou para ela, apontou para o andar de cima e disse “Se lave-se, porque hoje vai ser por todo lado”.
Pronto, aí acabou todo o clima, todo o desejo de fazer amor. Agora, o que iria rolar, se rolasse, seria uma trepada sem graça, sem carinho. Talvez, a amiga da minha amiga nem gozasse, sem visitasse o jardim das delícias. Já o seu marido, iria fazer a farra e, o que é pior, achando-se o homem mais gostoso e poderoso do mundo. Coitado, não entende nem um pouco a alma feminina.
Mas o que me impressiona nessa história toda, muitas mulheres vivem essa mesma experiência com pequenas modificações, é o que nos leva a continuar numa relação como essa. Medo da solidão? Medo de ser rotulada? Medo de se sentir fracassada? Os homens são todos iguais?
Talvez, quando cada mulher começar a se amar, a se respeitar, tenha coragem para querer mais da vida e dos seus amores.

24.7.07

Gostoso e proibido

Por que a gente vai para uma loja de doces quando está de regime? O desejo está exacerbado, o doce é delicioso e é proibido, a gente sabe disso, mas vai e fica olhando aquele colorido todo, sonhando com as possibilidades dos diferentes sabores, querendo sentir as texturas, os cheiros. Não adianta ver os anúncios nas fotos. Avisos não são suficientes “engorda”, “faz mal aos dentes”. É uma necessidade do corpo. É preciso colocá-lo na boca, prová-lo, quase sentindo o mesmo prazer que um beijo provoca. O desejo é mais forte e se realiza.

21.7.07

Granito

Noutro dia estava olhando uma pedra de granito com a luz iluminando sua superfície. Fiquei encantada. Parecia que ali estava cheio de estrelas que piscavam me chamando para uma viagem. De verdade, eram pedacinhos de pedras fixos em um único lugar.
Às vezes, a vida da gente é assim. As coisas do mundo nos chamam e ficamos estatelados como pedras, imóveis, com medo do movimento, do desconhecido.
‘É melhor um pássaro na mão que dois voando’, ‘seguro morreu de velho’, e são tantos os ditos da sabedoria popular que refletem a necessidade humana de segurança. O imprevisível nos assusta. Por que será que o mar nos fascina? Suas ondas indo e vindo, o insondável de sua profundidade, isso de alguma forma hipnotiza a alma. Talvez o segredo esteja aí: precisamos de ritmo em nossas vidas, a contração e a expansão do Universo, o pulsar do coração, a inspiração e a expiração dos pulmões, o dia e a noite, o sol e a lua. Uma vida cheia de certezas é tão sem graça. A aventura nos captura.
Já dizia o poeta, ‘como será o meu destino?’.

19.7.07

E agora?

Foi tomando conta de mim assim, bem devagarinho. Um sorriso, um olhar, uma afago. Palavras saíam de sua boca poesiando. A fala de sua alma espelhava o silêncio da minha. Afinidades, sonhos a realizar juntos. É como se o conhecesse desde sempre.
Ainda não sabia das divergências, pois o tempo era curto. Há apenas uma semana de curso, num lugar mágico que me arremessava para dentro do aqui e do agora, esquecia-me do que era, dos papéis que desempenhava no que convencionara chamar de realidade.
As aulas, as vivências, os lanches, os intervalos... tudo me dava oportunidade de conhecê-lo e encantar-me cada vez mais.
Comecei a perceber que intuía sua presença assim que chegava ao salão, mesmo que eu estivesse de costas. Não precisava vê-lo para senti-lo. Ansiava pelos momentos em que ficaríamos a sós à noite e conversaríamos sobre a vida, sobre o Sagrado, tendo as estrelas e a lua como companhia e o vento frio forçando-nos ao envolvimento nas cobertas.
E o tempo voava.
Na última noite, chamou-me para um passeio no alto de uma montanha que nos proporcionaria uma linda vista do lugar.
Arrumei-me com capricho, o coração já disparado pela saudade que sua ausência iria me causar. Fomos caminhando em silêncio. Conversamos, ouvimos música, boa música, tomamos vinho. Levantou-se, estendeu-me a mão “Vem, vem aqui que eu quero dançar com você.”. Ficamos dançando. Já não me senti a na Terra. Lágrimas caíram dos meus olhos e molharam sua camisa. Sentia seu cheiro, a textura de sua pele, o pulsar de seu coração.
Nenhuma palavra dita. O silêncio nos tornava uno.
Suas mãos começaram a deslizar por minhas costas, fazendo-me derreter. Afagou meus cabelos. Puxou meu rosto para perto do seu e começou a beijar meus olhos, minha face, prolongando o desejo de sentir sua boca na minha. Deliciosa tortura. Finalmente, o longo beijo. Beijo que toma, que entrega, beijo que deixa as pernas bambas.
Acordei. Não acreditei que tudo aquilo fora um sonho. As alianças em minha mão comprovavam que não estava mais habitando o mundo do meu inconsciente.

13.7.07

Impossível?

Meus amigos e minhas amigas têm me cobrado uma maior freqüência na produção de textos. Até concordo com eles e com elas que poderia estar escrevendo mais. Às vezes, fica difícil expor sentimentos que ainda não estão claros para quem os vivencia e o silêncio traduz o muito que poderia ser mostrado, mas que permanece escondido. Aos poucos, todos os segredos vão sendo revelados, inclusive para a própria autora.
Por enquanto, vou contando histórias das amigas, das amigas, das amigas de minhas amigas. Uma delas está vivendo uma situação que nunca imaginou que pudesse acontecer nessa fase de sua vida, com quarenta e tantos anos.
Depois de mais de 20 anos de casada, com quatro filhos já grandes, e toda uma vida dedicada à família, foi comunicada pelo marido que o mesmo estava saindo de casa, pois havia se apaixonado por uma mulher maravilhosa com 20 anos de idade. Foi um baque. Sentiu-se traída pelo marido e pela vida. O que faria agora? Não tinha formação profissional, estava velha e feia – pelo menos era assim que se via naquele momento – e não sabia como fazer para continuar vivendo. Chorou muito e, depois de um tempo, percebeu que precisa tomar um novo rumo.
Amigos a ajudaram e conseguiram um emprego numa instituição pública. No seu primeiro dia, toda nervosa, chegou e foi logo conversar com o chefe que lhe perguntou “A senhora já trabalhou antes?” e ela, pega de surpresa, respondeu “Eu me desquitei agora”. O chefe ficou olhando como quem diz “essa aí ainda vai ter muito que aprender”. Para sua sorte, ele tinha um coração de ouro. Com paciência foi ensinando tudo a ela. Era um mundo novo que descobria. O que antes lhe causava ansiedade começou a lhe dar prazer. Recebeu seu salário, comprou roupas novas, começou a se conhecer de verdade e a gostar de si mesma. A cada dia ficava mais bonita. O trabalho envolvia viagens e foi descobrindo que o mundo era bem maior que sua casa.
Tudo corria bem. Mas a vida não deixa as coisas ficarem calmas por muito tempo e provocou nessa amiga da amiga da minha amiga uma grande confusão: apaixonou-se pelo chefe, um homem casado, sério, que nem imaginava o que se passava em seu coração. Bastava ele chegar que ela começava a se tremer toda. Dormia pensando nele, acordava pensando nele. Adorava quando ficava explicando para ela as tarefas do trabalho ou ensinando-lhe as coisas do mundo. Perguntava-se onde estava enquanto tudo aquilo tinha acontecido e, alienada, não tinha percebido. Começou a trabalhar até mais tarde, nos finais de semana, feriados, não media esforços para ficar um pouquinho mais de tempo ao lado dele. Sonhava com ele a tomando em seus braços, beijando-lhe o pescoço, fazendo amor em lugares lindos. Acordava toda derretida. O pessoal da repartição começou a notar que alguma coisa estava estranha, as fofocas passaram de boca em boca e chegaram aos ouvidos dele. Notou que ele se afastou, ficou mais na dele. E ela sofreu, sofreu, por fazer papel de ridícula, por amar e não ser correspondida, pois sabia que ele jamais olharia duas vezes para uma mulher tão boba como ela.
Não suportando mais aquela dor, pediu demissão, sem nem se explicar ao bondoso chefe os seus reais motivos, e viajou para bem longe de todos e, principalmente, para longe dele. Descobriu que longe é um lugar que não existe para quem ama, pois estar perto não é estar junto, é estar dentro. Pensou, pensou, agradeceu à Deusa a oportunidade de amar tão intensamente e voltou disposta a recomeçar num novo trabalho e a tocar sua vida para frente.
Mal chegou a casa, soube logo da novidade. O impossível, pelo menos para o que imaginava, aconteceu. Seu chefe havia se separado e os boatos diziam que havia se apaixonado por alguém do trabalho. A campainha tocou. Deu de cara com ele. Seu coração disparou e entendeu que a paixão dele era ela. Desmaiou.
Bom, o resto eu não vou contar, por dois motivos: o primeiro, é para deixar que vocês imaginem o que aconteceu; o segundo, é que como essa história é verdadeira e aconteceu com a amiga da amiga da minha amiga, preciso preservar a privacidade do casal. Vai que vocês o conhecem!

2.7.07

Eram os deuses astronautas?


Estive participando neste final de semana de um Simpósio cujo tema era a vida extraterrestre e suas ligações com a vida no planeta Terra. A princípio, pode parecer coisa de gente maluca, de quem não tem o que fazer, mas o negócio não é bem assim. Os palestrantes vieram de vários locais do Brasil e têm trabalhos de pesquisa na área. Além do grupo que vive em Recife e que contribuiu com visões diferentes sobre o tema. Apesar das áreas serem diversas, impressionou-me o fato de apontarem para os mesmos aspectos (inclusive trazendo o ano de 2012 como um marco na história de nossa evolução).
Outra coisa que permeou todo o encontro foi a mensagem de que o Amor é a única saída que temos neste momento. Todos, todos, falaram sobre a importância de trabalharmos nossa evolução espiritual. Interessante observar que cientistas, pesquisadores sérios, não trazem mais a objetividade como paradigma único da ciência. A física quântica possibilitou uma expansão da compreensão dos fenômenos. Tudo no Universo é energia e esta energia está interligada num grande campo, ou seja, tudo o que acontecer a qualquer uma das partes vai ressoar para todas as outras. “O que você fizer a uma borboleta afetará as estrelas”. Gente, isso é o verdadeiro milagre!!. A Divindade, o Mistério está em cada uma das coisas que compõem o Universo. Então, como ser humano, parte desta rede, desta teia, tenho a responsabilidade de vibrar energeticamente num nível que favoreça a harmonia deste sistema. Somos todos deuses, como dizem os budistas, no sentido de que temos a centelha divina em nós – Cristo também nos ensinou isto.
Lembrei-me da viagem que fiz ao Parque Nacional de Sete Cidades, no Piauí, e de que vi lá, uma inscrição rupestre de um desenho que era idêntico a um avião (imagem acima). Meu raciocínio lógico me disse que isso seria impossível porque naquela época o avião ainda não havia sido inventado. Mas, lembrei-me de outra coisa, de uma famosa pergunta: eram os deuses astronautas? Desde sempre, quando o homem não compreende um fato, um fenômeno, dá-lhe a conotação de sobrenatural. Os indígenas brasileiros se referiam aos relâmpagos e trovões como deuses – dentro da visão da física quântica, de certa forma isso é verdade, já que toda manifestação da natureza carrega em si a mesma estrutura primordial que compõe o restante do Universo -, e outros povos, de outras culturas, também expressavam o incompreensível para aquele tempo e aquele espaço físico na forma de divindades.
Seguindo essa linha de raciocínio, se naves de extraterrestres tivessem chegado há tempos lá no Parque do Piauí é possível que os habitantes do lugar tenham interpretado os visitantes como deuses, ou, sendo mais sábios do que os humanos de agora, tenham interagido naturalmente com eles e registrado em suas pinturas a presença deles, como registraram outras coisas do seu cotidiano.
Ainda dentro dessa forma de pensamento, os extraterrestres fazem parte do Universo, assim como nós, as plantas, as pedras, os rios, os oceanos, os animais, nosso sistema solar. Nada poderia estar fora deste conjunto. Então, em pleno século XXI, quando temos informações precisas advindas de uma tecnologia nunca tão desenvolvida, por que desenvolvemos o mito, expresso em filmes e livros, dos extraterrestres como algo que vem nos destruir e nos dominar?
Freud disse que nos trouxe a peste ao nos mostrar que não temos domínio sobre nós mesmos, pois o inconsciente pessoal é que nos controla. Falou-nos ele, das dores que sentimos ao percebermos que o Universo não girava em torno da Terra e que o ser humano era apenas mais uma forma de vida no nosso planeta, não sendo superior a todas as outras formas. Não reinamos no Universo, não reinamos na Terra, não reinamos em nós mesmos. Grande lição de humildade e de co-dependência que nos arremessa na necessidade de cooperação, de conexão.
Conexão. Esta é a palavra chave. Agora não dá mais para fingir que não sabemos. Explodem livros, filmes e todas as outras formas de comunicação que traduzem máximas tão antigas, expressas nas mais diversas épocas, pelos mais diferentes sistemas de sabedoria:
· Tudo o que fizeres a teu próximo é a ti mesmo que fazes.
· Ama a teu próximo como a ti mesmo.
· Tua fé te salvou.
· A toda ação segue-se uma reação de mesma força e em sentido contrário.
· Somos deuses vivendo a experiência de seres humanos.
Quando é que vamos aprender?

28.6.07

Comichão

Mexer com as palavras é um jogo complicado. Nele você pode revelar tudo, disfarçar, camuflar, mentir, esconder. Será que se consegue esconder-se de todo? Acredito que algo sempre escorre por entre as linhas, algo da verdade do autor, dos seus segredos, das suas dores e dos seus amores.
Lendo Clarice fico extasiado. Foi uma maestrina nesse jogo. Livre, solta, sofrida e, acima de tudo, verdadeira. Talvez, por isso, escrever seja tão difícil. A verdade do autor se apresenta para ele mesmo nua e crua. E aí dói. O encontro consigo, com a vida íntima, aquela dos sonhos, aquela sabida como a não vivida, a desejada secretamente, o faz ficar em carne viva.
A sua alma se expressa através de personagens e do narrador, no caso das ficções. Desnuda-se na força da poesia. Viaja para o mundo das reflexões nas crônicas e nos artigos.
Noutro dia li Clarice dizendo que estava sem muita paciência para ler ficção, pois estava mais voltada para o que os fatos da vida provocavam dentro das pessoas. Simpatizei com ela. Jung também disse que sua vida não fora rica em fatos, mas em jornadas para seu mundo interior.
Tenho sentido, nesse início de carreira como escritor, que a solidão é condição primeira para que palavras brotem no teclado e na tela do computador – pouco romântico isso; mais bonito seria brotar da caneta para o papel, ou ainda, da pena para o pergaminho; apenas saudosismo.
Djanira, minha escritora gurua, diz que escrevemos a partir do mergulho que fazemos dentro de nossa alma, de nossas lembranças. Numa forma mais chula, o escritor só bota para fora o que já tem dentro. A inspiração vem de textos lidos, de situações vividas, de fatos observados, de causos ouvidos. Pode ser qualquer coisa que toque a alma do escritor e que provoque o comichão do escrever. Então, nesse momento, começam as dores do parto do texto. Primeiro, deixa-se fluir; depois acontecem inúmeras releituras, troca-se uma palavra por outra – não fica bem comer a mãe -, eliminam-se artigos desnecessários, observa-se a clareza das idéias. Enfim, pronto. Vem o gozo, a calma, a falta... e começa tudo de novo.
Fala-se no sofrimento necessário para se produzir um texto de qualidade. Porém, todos os autores sabem que muito além da dor está o indescritível prazer que a escrita proporciona. Inventamos realidades. Como autores, somos deuses.

27.6.07

mais um texto que não é meu, mas que me revela

Mas tu já sabes
a cor do meu silêncio,
as palavras que não escrevo,
aquelas que não digo,
e que, clandestinas,
vão pousar suavemente
nos teus lábios...

Foi sonho ou pesadelo?

Hoje não poderia escrever algo que viesse do meu coração, da minha alma. O Universo insiste em brincar comigo. Eu, cega, não enxergo o que me mostra.


O Amor, quando se revela...
O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

Fernando Pessoa

18.6.07

Domada

Sentia tanta pena dela. Ali, na primeira fila da sala de aula, pequena, míope. Com grandes óculos que a ajudavam a enxergar o mundo. Sempre ouvia com atenção o que os professores diziam. Anotava tudo. Aprendia demais. No recreio ficava sozinha. As colegas só a procuravam para tirar dúvidas dos assuntos das provas. Não ia ao cinema, não passeava, não fazia trela. Era toda certinha. Era toda boazinha. Eca! Não conhecia o prazer de uma aventura, não sentia o frio na barriga por uma mentira. Nunca ficou com o maior pedaço do bolo. Suas roupas novas eram estreadas pela irmã. Rezava, rezava, rezava. Será que pedia perdão? Como poderia fazer algo errado se não fazia coisa alguma? Sua vida era vazia. Não havia conflito porque não havia ação. Era o próprio contra-exemplo do pecado.
Mal se olhava no espelho e, por isso, não tinha consciência de sua beleza. Havia nela uma sensualidade sempre esmagada pela culpa. E, o pior, ou melhor, é que seu corpo era um verdadeiro violão. Mas não explorava estes atributos. Escondia-os.
Ouvia sempre as histórias vividas pelos outros. Ninguém nunca perguntava sobre as suas. Também, como poderia ter histórias para contar se não vivia a vida, se apenas a deixava passar?!
Reprimida, dócil, domada.
Gostaria de saber que rumo tomou sua vida. Faz mais de trinta anos que não tenho notícias dela. Será que virou freira? Deve estar gorda, com os óculos mais grossos. Ainda deve rezar muito o terço. Beijou alguém na boca? Sentiu tesão pelo menos uma vez? Pode também ter se tornado uma grande cientista. Lia muito, era muito estudiosa. Pode até ter ido para a Nasa. Doutora? Quem sabe? Com certeza trabalhou muito pelos pobres, pelas minorias. Tinha mania de justiça. Maconha? Nunca. Gozar? Jamais.
Saudades dela. Ajudou-me muito a cair na vida de corpo inteiro. Não queria ser como ela. Não queria contemplar a vida apenas. Queria ser a autora de minha história. Se a encontrasse hoje não a chocaria com a intensidade de minha vida vivida. Procuraria ser suave. Quase carregá-la-ia nos braços, pintando a vida em tons de aquarela.

17.6.07

Finitude

De repente, senti aquela coceira no braço. Olhei e tomei o maior susto, pois nunca tinha visto uma criaturinha daquela. Era um fio de linha verde, de um verde vivo e alegre. Só isso que era. E se mexia! Juntava-se todinha e arremessava para frente, em linha reta, a parte da frente – onde seria atrás? – de seu corpo – corpo?. E assim, encolhendo-se e expandindo-se, movimentava-se.
Fiquei estupefata. Como um ser tão pequeno, tão fino, poderia agir no mundo? Como fazia isso? Obedecia a ordens de onde? Se existia um cérebro, onde se localizava? Não sei seu nome, de onde veio. Ínfima, insignificante e tão toda. Seu mistério me capturou. Lembrou-me da aranha de meu banheiro. Pequena, frágil, com suas patas que parecem que vão se partir a qualquer instante, e poderosa quando constrói sua belíssima teia. Uma verdadeira obra de arte. O todo no nada.
Talvez, ser grande é simples assim. É só cumprir seu destino.

15.6.07

Confraria dos Sem-Teto

Uma praça é um microcosmo. Impressionante como nela coabitam diversos ecossistemas.
Gosto sempre de caminhar por uma perto de minha casa. Sinto o cheiro das árvores, observo o sol, ouço o canto variado dos pássaros. Os diferentes tons de verde me encantam. Quem será que criou algo tão maravilhoso? Tudo ali, na mais perfeita harmonia.
Alguns cachorros são da praça. Ali dormem, descansam, brincam, têm filhotes. Uma delícia ouvir seus latidos de bom-dia.
Tem um componente deste lugar que faz toda a diferença: o ser humano. São crianças em seus carrinhos ou correndo pelos lagos para dar comida aos peixes. São idosos e idosas, caminhando de mãos entrelaçadas e apreciando as vitórias-régias. São homens e mulheres que fazem seu exercício matinal antes de mais um dia de corre-corre. Para chegar mesmo aonde? Há ainda os jovens estudantes que passam em algazarra para as aulas. Tenho a impressão de que não estão muito preocupados com o que vão aprender na escola. A alegria vem dos amigos e da própria idade que possibilita um leque de possibilidades de futuros. Existem os motoristas dos carros que passam apressados e nem conseguem perceber a beleza que os envolve. Outros saem em busca de trabalho e são fisgados pelas árvores, pássaros e bancos e se deitam preguiçosamente com o jornal Empregos cobrindo-lhes o rosto adormecido.
Um grupo muito diferente dos que comumente passam pelos bancos da praça estava em reunião hoje. Homens e mulheres, vestidos com roupas velhas, tomavam seu café da manhã, bem modesto, é verdade, lavavam suas roupas e as estendiam na grama para secar ao sol. E conversavam e conversavam e conversavam. Até parecia que estavam decidindo o futuro da humanidade. O cachorrinho de um deles aguardava pacientemente, preso por um simples barbante, que seu dono voltasse para ele novamente sua atenção. Não havia dinheiro na vida daquelas pessoas. Todas tinham um ar de dignidade. Percebi que estavam felizes, tranqüilos, serenos. A cada volta que dava, mais esticava a orelha, na tentativa de captar a conversa. Não consegui pegar muita coisa. Não consegui desvendar o segredo de tanta harmonia.
A vida é mesmo um mistério.

7.6.07

Reverenciando Afrodite

Existe algo de mágico na forma que a mulher tem de se fazer bela. Não importa a cultura, mas existe um ritual, um momento em que a mulher entra em contato com sua sagrada energia feminina e a Deusa Afrodite se expressa nas mais diversas formas. Talvez, a questão da sedução das fêmeas para acasalarem com machos mais fortes esteja na origem primitiva desse ritual. As índias se pintam, as negras africanas colocam suas argolas, as orientais pintam os olhos, as ocidentais seguem a moda e vão às compras.
É bonito ver amigas fazendo compras. Pode ser uma camisola nova, aquele sapato da cor da tirinha do vestido, uma bolsa poderosa, o vestido que realçou o colo e escondeu a barriguinha. E na hora da escolha do colar que combine com a bolsa, com o detalhe da saia e que não seja muito caro, a opinião de uma amiga é fundamental. Há também as que preferem comprar tecidos e costurarem as roupas nos modelos mais fascinantes. O momento do creme no corpo, daquele produto que faz as rugas ficarem no lugar delas, do batom que é tudo que há, também promovem o encontro com a Deusa da beleza. Se o dinheiro não existe, um bom banho, uma arrumada no cabelo, bastam para fazer a mulher se sentir feminina.
Noutro dia, uma quase cinqüentona tinha se produzido e ido a um shopping para comprar cadernos para os filhos. Ao passar por uma mesa, dessas que ficam em cafés no meio do corredor, um homem olhou para ela de cima abaixo, fixou o olhar no seu decote, não conseguiu se conter e exclamou admirado “Valha-me Deus!”. Ela apenas sorriu.
Não importa a época nem o lugar: reverência à beleza feminina.

30.5.07

Terrinha santa

Depois de 15 anos voltei à terra natal de minha mãe. Foi estranho percorrer os lugares que conheci e com ela aprendi a amar. A casa onde nasceu, a ladeira onde brincava de barra-bandeira, a igreja e a praça, marcos do centro da cidade. Lá estava ela, imponente, tranqüila, linda como sempre, proporcionando os banhos regados a água, cachaça, caju e cantoria.
Bem devagar, como se estivesse pisando em solo sagrado, subi a ladeira que levava à casa das festas de São João, dos carnavais e das procissões de São Sebastião. Doeu vê-la em ruínas, decompondo-se como o corpo de minha mãe. Existe, não existindo mais. Onde outrora fora o banheiro que testemunhou minha transformação de menina para mulher está a árvore favorita da preguiça. Vai ver que por isso estou mais lenta, fazendo tudo mais devagar. A parede que separou meu corpo do corpo do meu primeiro namorado dando-nos uma noite de tortura e tesão ruiu, tal qual desmoronou nossa relação. Já não há mais parede para impedir o desejo, mas os corações já estão feridos.
A terra continua fértil, teimando em continuar viva. O coentro continua verde, o milharal cheio de bonecas cor de rosa, o agricultor ainda está apaixonado pela natureza. Vacas, porcos, galinha vivem a vida de sempre. As enormes pedras da região são as únicas coisas que aparentam perenidade. Todo o resto aponta para a impermanência e para os ciclos do tempo.
Assim, ...indo, ...endo, ...ando, para que o que já foi continue a ser, agora, sempre. Uma tentativa de segurar a saudade.

Foto: Roberto Arrais

23.5.07

Comadres

Freud tinha razão quando disse que não saberia precisar o que quer a mulher. Não existe A mulher; existem mulheres que desejam coisas diferentes.
Não consigo enxergar uma massa de mulheres, todas iguais. Às vezes tenho a impressão de que estou à frente de uma tuia delas. Operárias de fábricas com a mesma farda, mães em reunião de escola, executivas fantasiadas de terninho, donas de casa trocando receitas e tantas outras situações que são apenas simulacros da essência feminina. No caso das operárias de fardas cinzas, com o olhar mais detalhado haverá a revelação de um batom, um brinco, um rabo de cavalo, algo que faça cada uma delas existir na sua singularidade.
Poderá uma mulher ser capturada em sua totalidade? Ou haverá sempre o mistério? Entre amigas, ao redor do fogo da cozinha ou de uma mesa de bar, um pouco dos seus segredos podem ser revelados. São momentos mágicos em que as mulheres compartilham sua divindade.
Lembro-me agora de um encontro de amigas numa fazenda. Estavam lá com suas famílias para um final de semana. Maridos no terraço tomavam cervejinha; filhos corriam pelo quintal. E elas na cozinha, jogavam conversa fora. Uma falava como a outra era dormente de tão demente que era; outra contava que seu filhinho de nove anos estava de namoradinha, uma verdadeira serial killer; a baixinha dizia que nunca iria querer ser uma Pepsi, pois as pessoas sempre diziam ‘me passa a Coca aí’ e ela queria era ser chamada pelo seu nome de verdade; a bem bonita e enérgica era a Pinho Sol, tinha mania de limpeza. O filho de uma delas estava febril; a mãe na maior calma; a amiga disse logo que se fosse o seu, ela UHH-UHH- UHH, imitando o barulho se uma sirene. E assim, entre risos e lágrimas, compartilhavam sua intimidade. Claro que também falavam dos maridos, dos seus e dos das amigas ausentes. Um deles, coitado, era tão destrambelhado que colocou o computador quente no freezer. Pode? E aquele outro fulano que estava botando a maior gaia na mulher com uma amiga de infância. Ingênuo, deixou às vistas uma foto dele de cabelo molhado, com um fundo típico de motel. A mulher saiu pelos motéis da cidade, acompanhada pela comadre, achou o tal da foto e registrou-se no mesmo lugar, levando a imagem para ele. Pense no susto. Ele até hoje não sabe se a gaia também foi retribuída. Quando se fala em motel, as histórias brotam. A amiga de uma delas organizou a festa de 15 anos de casada no motel; foi antes, com outra comadre, levou velas, incensos, cremes, pétalas de rosas, champanhe; combinou com o marido que ligaria à noite para avisá-lo sobre o local da comemoração; quando a amiga foi deixá-la no motel à noite, houve o maior engarrafamento porque um dos apartamentos estava em chamas; o romantismo cedeu lugar ao desespero e ainda ficaram ouvindo gracinhas na enorme fila de carros sobre as opções homossexuais das duas. Só sendo mulher para passar por isso. E acompanhada por uma outra mulher,claro.

20.5.07

Amigas

Sabe quando você vive um dia mágico? Pois foi assim comigo ontem. Tenho uma amiga muito especial que me ligou e me chamou para um passeio pela Jaqueira. Topei na hora. Coloquei a roupinha básica de ginástica e dez reais enrolados na calcinha.
Ela chegou, desci toda faceira e ao entrar no carro ela me fez o convite “Topas ir para Aldeia? Preciso comprar uns bambus.”. Claro que concordei e fomos ladeira acima curtindo a paisagem, o clima e, principalmente, o papo. Aprendo tanto com ela. Escolhemos o bambu e bastou ela pôr as mãos na direção do carro e já surgiu outro convite “E se a gente fosse almoçar em Gravatá?”. Mais uma vez, pegamos a estrada. Convidamos outra amiga para a aventura. Ela estava fazendo as unhas e colocou bacias e esmaltes de lado para se juntar a nós. Parecíamos três jovens adolescentes com enorme sede de vida. O verde, as montanhas, o friozinho e as conversas ininterruptas marcaram a subida da serra. Tudo sem pressa. À medida que subíamos deixávamos para trás todos os outros papéis que desempenhamos, o de mãe, o de esposa, o de filha, o de profissional, o de dona de casa, o de avó; carregávamos apenas nós mesmas. Visitamos condomínios, passeamos e fomos almoçar numa charmosa cantina italiana. Boa comida, bom vinho, boa subremesa, boa conversa. Não aquelas conversas superficiais de mesa de bar ou de restaurante. Muita, muita intimidade. Estávamos ali compartilhando nossas almas. Um privilégio. Depois a volta, com olhos brilhando, coração leve e completamente reabastecidas. Um presente. Das Deusas, é claro.

15.5.07

Levanta

- Levanta, filho! Já tá na hora da escola.
Mais um dia, mais uma tortura na escola. Fica difícil sair da cama desse jeito. Não é que eu não goste de escola. Até que gosto. Tem umas aulas bem legais, educação física, teatro; tem o recreio. Nem lancho para não perder tempo de brincar. Agora as aulas de matemática e os textos de português são um saco. Meus olhos querem ficar fechadinhos, minha cama tá tão gostosa.
- Ainda não levantou?!!! Quer chegar atrasado? Você está bem grandinho para eu precisar ficar pegando no seu pé com a hora da escola. Pode assumir suas responsabilidades. Na minha época eu não tinha quem ficasse me pajeando. Era o cinturão logo.
Lá vem o mesmo blá-blá-blá. Será que ela não vê que eu prefiro ficar aqui, dormir mais, ver tv, jogar no computador, falar com a galera. Não é possível que a vida seja só isso. E ainda vou ter que decorar as capitanias hereditárias, todos os nomes dos ossos do corpo humano e o sistema digestivo da minhoca. É mole? Desse jeito meu cérebro vai ficar esgotado logo. Não tem jeito, ela não vai me deixar em paz.
Leite com Nescau, pão com queijo, suco de vampiro. Criança tem que ficar forte. Banheiro, escovar dente, banho, pentear cabelo. Vida de robô. Para a direita, para a esquerda, pegue a bolsa, siga em frente, marche para aula.
- E aí, pirralho. Hoje no recreio tem ralação.
Ainda essa, ter que enfrentar esses tabacudos grandalhões que querem torturar os menores só pra ver se ficam mais poderosos.
- Acorda, pessoal. Até parece que vocês não gostam de vir assistir aula. Na minha época eu adorava ir para a escola. Aprendia tudo, entendia o mundo. Não tinha nenhum outro lugar com mais informações. Os professores eram verdadeiros mestres. Hoje os alunos não respeitam mais a gente.
Será que tinha internet? E tv a cabo? Discovery? Eles locavam filmes? E livrarias, cds, mp3? Ouvi falar que já existiam gibis. Fica difícil acreditar que meus pais e meus professores foram crianças, melaram-se de lama, tomaram banho de chuva, comeram brigadeiro de colher. Do jeito que falam parece que adoravam fazer tarefa de casa e que só viviam para estudar. Ai, hoje tenho aula de inglês, judô e futsal. Amanhã, alemão, psicóloga. Quando é que vou ter um tempinho para mim?
- Não está prestando atenção ao que falo. Mais uma vez no mundo da lua. Assim nunca será alguém quando crescer. Para a diretoria. Não sei mais o que fazer com você. É uma falta de respeito comigo. Fico aqui me esforçando, dando o meu sangue para você aprender e você não quer nada com a vida. Temos que chamar seus pais para que saibam que estão jogando dinheiro fora. Se continuar assim, não vai nem passar de ano.
Bem que eu podia me clonar. Um eu ia para a diretoria. Outro eu ficava decorando essas baboseiras e só tirando dez. Um ia para as aulas do turno da manhã, as chatas, e uma cópia para as da tarde. O que euzinho mesmo ia escolher para fazer? Esse negócio de clonagem não é tão simples assim, véio. Não ia querer um outro eu dando beijo na boca de ....
- Vou convocar seus pais para uma reunião. Acho que teremos que fazer alguns exames em você. Isso não é normal. Provavelmente tem défict de atenção. Também não pára quieto. Claro que vamos ver que você é hiperativo. Não precisa nem fazer teste, pois tá na cara. Não consegue ficar quieto. Muitos exames, muita medicação. Quero só ver se não vamos dar um jeito nessa situação. Vá, vá, que é hora do recreio e tenho que falar com seus professores.
Ufa! Ainda bem que acabou o sermão. Será que vai dar tempo de pegar a bola? Depois um refresco na aula de educação física. Professor legal, o cara. Sabe respeitar o ritmo da gente. Não fica me dando bronca porque corro muito. Até me elogia porque tô sempre ligado em todas as jogadas. Gooooooooooooooooooool. Valeu. Alguém pode ter, como é mesmo o nome, déficit de atenção, só para algumas coisas?
- O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Tão vendo aqui?
- Professor, para que é que eu preciso aprender isso? Onde vou usar na minha vida?
- Ah! Você não está vendo agora a utilidade, mas quando você estiver na faculdade você vai ver como foi importante ter aprendido isso bem direitinho. E na sua vida profissional, então?
- Mas, professor, quero trabalhar com mergulho no fundo do mar. Vou precisar disso para quê?
Que bom que perguntaram sobre para que aprender tanta baboseira! E foi o aluno mais cdf da turma. Se fosse eu, tava ferrado. Também fico querendo saber para que todo esse volume de informação sem sentido nenhum. Tá acontecendo uma invasão de um país por outro e a gente nem fala aqui. Minha mãe vive comentando sobre a importância de uma alimentação natural, sem transgênicos – que droga é isso? -, sem agrotóxicos e nem aprendemos como comprar comida. E deixar um pedaço da gente nas tais de células-tronco? Será que vou poder ficar bem jovem quando estiver velho e chato? Vai dar para curar a chatice?
- Prestem bem atenção porque esse assunto vai cair na prova. Anotem tudo nos cadernos. O nosso clima é ..., nossa população tem ... habitantes. Depois não digam que não avisei e errem um numerozinho sequer que boto zero. A gente já dá tudo mastigado e vocês não querem nada com a vida.
Será que o mundo vai acabar mesmo? Moro bem junto da praia e basta uma ondinha para deixar todo mundo afogado e morto. Tenho medo da morte; não faço idéia do que vem lá. Também não gosto de pensar sobre como nasci e onde estava antes de vir para a Terra. E os extraterrestres existem mesmo? Para que gastar tanto dinheiro com pesquisas sobre alienígenas com tanta gente morrendo de fome? Não era melhor comprar comida para os pobres?
- No feudalismo tinha o senhor feudal que era o dono das terras, do feudo...
Os usineiros eram senhores feudais? E os latifundiários? Por que ainda existem sem-terra no país da gente se ele é um dos maiores do mundo e tem tanta terra abandonada? Depois minha mãe quer que eu divida meu saco de pipoca com meu irmão pequeno. Tá ruim, hein? Os adultos não dividem nada e ficam querendo forçar a gente a dividir o pouquinho que a gente tem.
- Nosso sistema reprodutor é bem complexo. No homem ... Na mulher ... O espermatozóide se encontra com o óvulo...
Como é que se transa? Como é que vou tirar a calcinha dela? E se meu pau não ficar duro? Se na hora eu falhar? Por que não conversam sobre isso com a gente? Já fiquei com tanto medo que minha mão caísse por causa de mulher pelada em revista.
- Agora vamos fazer uma análise morfo-sintática nesta frase: “Eu francamente já não quero nem saber, de quem não vai porque tem medo de sofrer”. Quantos períodos temos aqui?
Pô! E aquela música que fala sobre o medo? Do caralho! Quem será que disse isso, medo de sofrer?! Também tenho, porra. Medo de não conquistar ..., medo que meus pais se separem depois de tantas brigas, medo de pagar mico, medo de falar pra turma toda e ficar fazendo papel de ‘não sei’. É medo que só.
- Não se esqueçam de fazer a tarefa de casa, da página ... até a página ..., letras de (a) a (j), na questão 9. Anotaram tudo na agenda? Cuidado com as bancas! Vocês já saem derrubando tudo. Estes meninos não têm educação. Sobra pra gente dar até educação doméstica. Também, com mãe trabalhando o dia todo e pai só pensando em ganhar dinheiro!!! Não sei onde esse mundo vai parar.
Fim por hoje. Graças a Deus. Tem hora que penso que vou endoidar. A cada tempinho, trim-trim, troca de caderno, troca de livro, troca de assunto, troca de professor, só falta trocar de cabeça. O juízo já se perdeu. Por que minhas pernas, meus braços, meu corpo todo não pode seguir meus pensamentos e, se é para falar de parte do corpo também, meu coração? Quando é que vou ser livre? Quando é que vou ser dono de mim?

13.5.07

Não é minha

Foi assim desde pequenininha. A vida me ensinou que ela não me pertencia. Até tinha sido gerada em meu ventre, eu havia acompanhado suas primeiras cambalhotas, recebido suas primeiras joelhadas. Mas era apenas minha filha. Não me pertencia.
Doía fazer suas malas, arrumar suas roupas, mamadeiras e fraldas para os períodos que teria que ficar afastada de mim. Como me pareciam longos esses tempos. Os dias não tinham mais o mesmo colorido. A natureza se solidarizava com a minha saudade e determinava que sol brilhasse mais discretamente. Quando adoecia longe de mim uma angústia no peito perguntava se estava tomando o remédio direitinho. Quando ia visitá-la e seus olhinhos disfarçavam sua insegurança, eu arrumava forças não sei de onde para sorrir de volta e transmitir uma coragem que não tinha. Assim fui aprendendo que ela era muito maior do que eu, que o seu mundo seria o Mundo e não apenas o meu colo.
Hoje, ainda dói muito não tê-la aqui. Já começou a trilhar seus próprios caminhos e admiro sua ousadia.
Vai, filha, o Mundo é seu.

12.5.07

Anonimato

“Os evangélicos são todos divididos. Eles têm duas genitálias. Uma genitália feminina, outra genitália masculina”.
E, assim, saiu ele andando e filosofando pela praça.
Outro colega de praça completou “tem gente de todo tipo no mundo, engraçado, né?”.
Dois homens comuns, compartilhando o mesmo espaço, o mesmo tempo e em dimensões tão diferentes. O último, um trabalhador preparando-se para começar a reforma de um restaurante. Limpo, alimentado. Lúcido? O primeiro, um homem mais velho, todo sujo, com roupas imundas, barba por fazer e um enorme saco nas costas. O que haveria ali? Que peso carregaria? Que dores o levaram a fugir do aqui e do agora?
No resto da praça tudo continuava do mesmo jeito. Fantástica é a vida do anonimato.

7.5.07

Invenção de Loucos

Deslizando o carro pela estrada,
Encantada com a paisagem verde,
Cheia de pontinhos brancos:
Vacas pastando, ruminando lentamente.
Mooooom. Mooooom. Devagar.

Tanto a aprender.
Ainda ouve o apelo do louco relógio,
Apontando para a pressa.
Invenção de loucos.
Tic-tac. Tic-tac. Acelerar.

Corra. Vá devagar. Respire.
Tanto a experienciar.

5.5.07

Aliança quadrada

No curso que faço para aprender a ser uma escritora das boas, tive uma aula sobre poesia. Falamos lá sobre as coisas que às vezes são semelhantes a formas quadradas e que nos limitam e nos enrijecem. O quadrado da cama, da janela, do elevador, do carro. Tudo certinho, exato. Relacionamos a espiral com a poesia e com a liberdade de expressão.
Aí fiquei pensando que a aliança de ouro dos casamentos não deveria ser redonda; deveria ser quadrada, bem quadradinha. Ela é o símbolo de muitos aprisionamentos. Alguns e algumas a retiram do dedo quando querem seguir seus desejos e agir como se fossem livres. Muito triste esse ‘como se fossem livres’. Muito triste.

2.5.07

As Três Marias

Três Marias no céu,
Três marias na barriga
Percorridas por dedos e língua.
Saudades dos desejos, dos corpos trêmulos de paixão.
Quisera sentir novamente o sangue traduzindo o fogo e o medo da revelação do segredo.
Depois me perdi de mim.
Hoje, apenas solidão.
Três Marias no céu.
Três Marias na barriga.

ARROGÂNCIA

Não posso deixar de pensar nos políticos quando falo ‘arrogante’.
Na hora do pega, colocam a máscara do bonzinho e saem pelas casas e pelas ruas suplicando votos. Depois de eleitos, passam álcool nas mãos a cada contato com o eleitor.
Também me lembro dos preconceituosos que se acham melhor que os outros por causa da cor. Ouvi noutro dia uma discussão sobre como os negros são feios e menos inteligentes que os brancos. Fiquei com o estômago embrulhado. E olha que eram pessoas educadas, bem sucedidas profissionalmente. Claro que brancas. Lembrei-lhes que geneticamente somos quase iguais às moscas e praticamente idênticos aos macacos. As raças não levam a superioridades. Arrepio-me só de pensar em Hitler com a raça ariana. E isso ainda acontece no século XXI. Acho que o cara lá de cima não deve estar muito satisfeito com o que a gente anda fazendo por aqui. Está na hora de uma faxina geral mesmo. Que venha o Apocalipse!

25.4.07

Ficando nua

Esse negócio de ser escritora é bem mais complicado do que parece. Resolvi assumir este caminho e achei que estava pronta para me revelar. Na hora que acontece uma olhada lá dentro de sua alma por uma pessoa que você nunca viu, o bicho pega. Um texto meu que fala sobre o feminino está publicado na internet e, claro, com a possibilidade de comentários.
Li, outro dia, a observação de um leitor que elogiava o tal texto ‘é lindo, lindo mesmo’, pontuava que havia ficado incomodado com a trajetória profissional da autora que buscou tantas coisas fora de si mesma e se perguntava se o mergulho para dentro dela não daria mais resultados.
No momento em que li a sugestão fiquei chateada e pensei ‘esse cara não sabe nada de mim, da minha inquietação intelectual, das dificuldades e desafios que tive que vencer para hoje conseguir escrever sobre o feminino do jeito que escrevi’. Senti-me invadida. Depois, refletindo com calma, vi que havia muito de verdade no que ele havia escrito. Mas, caro leitor, tive que ralar muito para descobrir isso, que para você foi tão óbvio.
Diante dessa situação, percebi que o texto não revela tudo do autor e que vai diretinho dentro da alma de quem o lê e que o completa.
É difícil ser vista por inteiro através de um texto que é sempre um recorte do que penso e sinto. É difícil desnudar-me para estranhos. Estou experimentando, bem devagar, bem devagar, bem devagar.

27.3.07

O Feminino vive aqui.

Há algum tempo trabalhamos com grupos de mulheres e também aprendemos com nosso próprio caminhar sobre a construção do feminino. Nascemos fêmeas, mas nos tornamos mulheres a partir das interações com nossos grupos culturais. E podemos garantir que as fêmeas do ocidente neste início do século XXI estão feridas.
No princípio dos tempos, as mulheres estavam em contato com sua natureza, viviam de acordo com seus ciclos e eram respeitadas na comunidade, pois sangravam, geravam novas vidas e nutriam os filhos. A natureza fornecia as metáforas para significação do papel das mulheres: geravam e nutriam, tal qual a Mãe Terra; sangravam de tempos em tempos, da mesma forma que a Lua. Também guardavam a memória de seu povo e transmitiam sabedoria através das histórias contadas ao redor das fogueiras.
Com a caça, a criação de animais em cativeiro, as guerras, os machos puderem contribuir mais para a sobrevivência dos grupos e colocaram as fêmeas no lugar de ‘receptoras’ da vida que era gerada por eles. As mulheres, desvalorizadas, voltaram-se para a escuridão, assim como toda a sociedade.
De deusas a escravas. Esta foi a trajetória que as mulheres realizaram e na qual viveram durante muito tempo. Nos anos 1960, depois que o mundo precisou de sua mão-de-obra devido às guerras, as mulheres fizeram-se ouvir novamente: queimaram sutiãs, tomaram pílulas, disseram sim ao sexo livre, foram para o mercado de trabalho, conquistaram os direitos que só os homens tinham.
Para transitar no mundo masculino, as mulheres saíram de casa, vestiram terninhos, investiram com toda força na formação profissional e conquistaram o sucesso. Para isso, desconectaram-se de sua natureza primitiva, pois não poderiam disputar em pé de igualdade os espaços de trabalho com os homens se fossem respeitar o ciclo menstrual – as variações hormonais são enormes - e a necessidade de cuidar e alimentar as crias – como toda fêmea, têm os sentidos aguçados na fase que precisam cuidar dos bebês. Para não se sentirem inferiores aos homens, assumiram a forma masculina de ver o mundo, traíram sua essência e renunciaram à energia feminina. Pagaram um preço alto, muito alto.
Os homens ficaram assustados com as transformações. Exigiram que além do sucesso na vida pública, assumissem as tarefas da vida familiar e, assim, as mulheres tiveram que dar conta do trabalho, da casa, dos filhos, do marido. Claro que não conseguiram segurar a onda e surgiu a sensação de fracasso. Mulheres que investiram na vida profissional, sentiram-se fracassadas no lar. Mulheres que ficaram em casa, sentiram-se envergonhadas por não terem um diploma, um emprego, um salário. Todas se sentiram inadequadas.
Surgiram anúncios de absorventes que dissimulavam a menstruação, de celulares que permitiam uma conexão integral com os filhos em casa, de escolas que possuíam câmeras para que mães acompanhassem o dia a dia dos filhos. Surgiram o microondas, o fast food, o instantâneo.
Passamos a viver no mundo do artificial. Fugimos do natural. Vivemos mais felizes? Pesquisas indicam que crianças que ficam mais tempo longe das mães se tornam adultos mais violentos. Os consultórios de Psicologia estão abarrotados de crianças que se identificam com motoristas e babás, pois os pais estão ausentes, numa luta incessante para conquistas de novos bens materiais. Governos ampliam o período da licença maternidade para garantir uma vida mais saudável para seus membros, tanto psíquica quanto emocionalmente, na tentativa de diminuição dos custos com a saúde pública.
Percebemos que tomamos o caminho errado. Destruímos o planeta e a natureza nos ensinou que não somos superiores a outras formas de vida que compartilham conosco a Terra. Estamos, sim, todos interligados: árvores, rios, animais, rochas e seres humanos. O mito dos deuses humanos ruiu. É preciso que nos reconectemos com a natureza, que escutemos seus sinais. Não podemos experienciar um novo tsunami, onde só animais –os elefantes, por exemplo – percebem a eminência da catástrofe; precisamos reaprender a ler o mundo.
Acreditamos que um novo tempo já está sendo construído e o feminino renascerá em cada mulher, em cada homem, levando-nos de volta para casa, para a natureza. Como no princípio dos tempos, teremos como guias neste novo caminhar, as fêmeas reverenciando, sem vergonha e sem culpa, o Sagrado Feminino. As mulheres não mais imitarão os homens. Ensinarão com alegria que todo o Universo pulsa sempre no ritmo da vida. O feminino renascerá aqui.

“Viver é pulsar. É ser canal para que a Energia Cósmica faça – através de nós – o seu trabalho no mundo”. Sandra Celano

21.3.07

Filme

Olhava pela janela do quarto e já sentia saudades daquela paisagem tão familiar. Não esqueceria as árvores, o céu azul, o canto do bem-te-vi, o barulho do mar, o cheiro de maresia. Onde encontraria de novo o colorido do jardim? Onde o vento sopraria com tanta suavidade? Onde o sol aqueceria seu corpo?
Suas forças já se esvaíam. Chegara a hora de ir embora. Não queria mais ficar. As dores estavam insuportáveis e sabia que o fim, qualquer que fosse ele, aliviaria o sofrimento. Entregou-se. Fechou os olhos, respirou e partiu.
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Descobriu-se numa grande sala. De repente, à sua frente, uma enorme tela de cinema. Sem conseguir compreender o que estava acontecendo, viu sua vida começar a ser projetada, com direito a sons, imagens, cheiros, sabores e sensações. Tudo se repetindo, só que muito rápido. Percebeu como deixou de aproveitar momentos preciosos, como se descabelou por tão pouco. Viu-se pequena, encantando-se com o mundo que descobria. Ouviu seus sonhos da juventude. Experimentou o cheiro de café vindo da cozinha e sentiu o gosto da sopa de feijão preparada para seus filhos. Reviu todas as pessoas que foram importantes em sua vida. Família, amigos, amores. Também viu quanto os magoou com palavras duras. Passeou pela casa da infância, tomou banho de cachoeira, mergulhou no fundo do mar. Aos poucos foi compreendendo como endurecera, como deixara que as dificuldades tirassem o brilho que tinha nos olhos. Como fora boba. Olhando-se assim, de fora, sentiu uma enorme compaixão pela mulher que fora. Prometeu para ela que numa próxima oportunidade não repetiria os mesmos erros e, principalmente, não teria medo da vida.

6.3.07

Mulher comum

Interessante o que senti vendo as mulheres na reunião da empresa que vende produtos de beleza. Mulheres comuns, sem tanta intelectualidade, sem tanta elocubração. Mas senti, ali, a essência da energia feminina: força, garra, esperança, alegria. Quantos sonhos enchiam aquela sala! Ao mesmo tempo havia tantas feridas no feminino! A líder do grupo estava longe de ser uma deusa.
Deve ser difícil coordenar mulheres, vender para mulheres e não estar em paz com a mulher que se reflete em sua face. Estou feliz por me tornar uma mulher comum. Que fantasias faço a esse respeito? Quero ser amada, desejada, protegida como uma mulher qualquer (não seria melhor, comum?).

27.2.07

Minha mangueira

Moro em um apartamento que tem como vista da varanda a copa de uma mangueira. Sempre me encantei com o presente que esta árvore maravilhosa me dá. Sinto-me privilegiada por viver um pouco numa árvore. Participo da sua floração; vejo os pássaros namorando e fazendo seus ninhos; ouço o zumbido dos insetos; aprecio o voltar para casa das aves nos finais de tarde. E, chupo suas doces mangas. Realizo o sonho de criança de ter uma casa na árvore.
Essa minha amiga também é testemunha de minha vida. Esperou comigo o meu primeiro bebê. Deu-me sombra para que pudesse dar leite para meus filhos. Fez-me companhia nas madrugadas enquanto ficava acordada embalando-os na cadeira de balanço. Também me colocou em transe quando deitada na rede devaneava para mundos só meus.
O canto do vento em suas folhas já foi canção de amor e também já levou beijos de saudades. Como conhece minhas lágrimas, meus segredos, meus sonhos e esperanças, esta minha amiga.
Quando me sinto em labirintos sem saída, contemplo suas raízes, firmes, fortes, e, tal qual as inúmeras trepadeiras que compartilham sua seiva vital, sugo um pouco da solidez, da firmeza e da paz que ela emana e minha esperança por dias melhores retorna.

22.2.07

Coração na ponta do lápis

Noutro dia ouvi uma moça jovem, recepcionista de uma clínica mixuruca que realiza exames de sanidade mental para quem quer ter uma carteira de motorista, dizer que adorava escrever, pois escrever era para ela como colocar o coração na ponta do lápis. Fiquei encantada com a expressão - colocar o coração na ponta do lápis - e com a ingenuidade e força de sua autora. Deu-me uma inveja danada. Será que eu teria coragem de colocar meu coração numa ponta de lápis? Poderia o meu coração tornar público seus segredos? Um simples lápis poderia retirar todas as máscaras que uso para ir levando a vida e revelar-me para mim mesma? Lembrei-me de Vinicius de Moraes. O lápis dele tinha o seu coração na ponta. O coração do poeta não tinha medo. Exercia plenamente sua função e amava, e amava e amava, sempre, infinitamente, enquanto durasse o amor. Já o meu, cheio de medos, anda meio envergonhado, preso, sem liberdade de expressão. Nem chorar ele tem conseguido. Pode um coração amar e não sofrer? Será que vale a pena não sofrer e não amar? viver a vida morninha, sem o calor de um grande amor e quando a morte chegar, olhar para trás e perceber que a vida de verdade não foi vivida e sim, perdida?

12.2.07

Apocalipse?

Meu filho veio fazer uma entrevista para a escola e me perguntou qual tinha sido a notícia que mais havia saído na mídia durante a semana. Lembrei-me do caso do menino que foi arrastado por bandidos. Minha filha lembrou-se dos 100 anos do Frevo. Meu outro filho lembrou-se do relatório sobre o caos que a humanidade instalou no meio ambiente.
À noite um programa de televisão trouxe o caso do menino, mais uma vez, exibindo entrevista com seus pais.
Fiquei pensando que estamos prestes a assistir a morte de milhões de pessoas por fome, sede, inundações, terremotos, furacões e tsunamis e quase não refletimos sobre isso. O que nos afasta deste fato? Medo, negação, alienação, descompromisso? Por que a morte de uma única pessoa nos comove mais do que a morte de milhões? Não pude deixar de perceber a importância da mídia na manipulação de nossas percepções de mundo. Mas acredito que há o fato de nos perdermos na massa e nos identificarmos com a singularidade. Também fica mais fácil culpar o bandido pela morte da criança do que nos responsabilizarmos pela destruição do planeta e pela morte de seres vivos.
O Apocalipse chegou não porque estamos sendo castigados pelos deuses mas porque não respeitamos a natureza. Triste, não?

9.2.07

Chegara a hora

Parecia que estava voltando de um transe. Sempre acontecia assim quando lia algum texto que sua alma ouvia. Depois da leitura, sentia um sono irresistível e seu corpo adormecia para sua alma sair e aprender em outros mundos. A leitura era apenas a forma de iniciar a aprendizagem.
Lembrou-se de uma época em que vivia com sacerdotisas no alto de uma colina, perto do mar e da floresta. As mulheres eram verdadeiras deusas e sabiam muitos segredos como a cura com ervas ou ainda como prever o futuro olhando a água numa bacia. Era uma delas.
Agora, todo esse conhecimento estava sendo relembrado e, assustada com as implicações que essa descoberta teria em sua vida, desejou esquecer o que via e acordou.
Mas o sonho tinha sido nítido demais e seu coração batia descompassado.
Sabia que teria que reassumir suas funções de sacerdotisa, guiando, curando, orientando e protegendo as mulheres do seu tempo para que a energia da Deusa pudesse fluir livre novamente.
Pensou em sua família. O que diriam seu marido, seus filhos quando lhes dissesse que teria que partir, que não pertencia apenas àquela família, mas que servia à Deusa e Ela a havia chamado para realizar o trabalho que se comprometera antes de vir para Gaia desta vez?
Fazendo uma retrospectiva, percebeu que sua caminhada sempre havia sido conduzida por uma energia maior. Estava livre das obrigações e fardos mundanos, pronta para cuidar de si e de sua tarefa. Havia encerrado suas atividades profissionais anteriores para começar um novo ciclo. Seus pais, que dependiam dela devido às doenças que apresentavam, já tinham morrido. Seus filhos estavam crescidos e já não cobravam uma assistência contínua. E seu marido, como reagiria?
Viajou no tempo e viu-se criança na escola liderando um grupo de meninas. Sua primeira profissão foi numa área reservada aos homens. Mas, a Deusa necessitava que tivesse sucesso no universo masculino para que fosse respeitada por eles e que não tivesse medo da força dos homens, já que havia sido agredida outras vezes em outras vidas. Depois veio a exuberância da sexualidade e a maternidade a fez olhar o mundo de outra forma. Voltou-se para o universo feminino e mudou seu enfoque profissional. Aos poucos, a Deusa foi se aproximando e quando Se revelou completamente sabia que não poderia mais negar suas origens.
Como faria isso em pleno século XXI? Como realizar rituais que não assustassem as mulheres que ainda estavam adormecidas? Fez suas perguntas e pediu-Lhe orientação.
A resposta veio nítida: seus dons de sacerdotisa seriam manifestados através da arte, a arte seria a ponte que ligaria seu mundo ao Sagrado.
Seria escritora, claro. Era por isso que desde pequena adorava ler, escrever e passava horas em bibliotecas. A Deusa a havia conduzido até ali. Havia chegado a hora.

OBS: Imagem do Tarô da Deusa Tríplice.

8.2.07

Parabéns pra você!

Estávamos na Sibéria, numa noite fria, com temperatura de quase quarenta graus abaixo de zero. Éramos portugueses, italianos, chilenos, russos e brasileiros. Nosso encontro tinha como objetivo a aprendizagem dos conhecimentos dos xamãs siberianos. Não entendíamos as línguas dos outros e nos comunicávamos pela linguagem corporal e pela energia. Descobrimos que era o aniversário de um dos participantes e começamos a bater palmas no ritmo de “Parabéns pra você”; depois começamos a cantar a mesma música entoando lá-lá-lá; em seguida, cada um em sua língua nativa, continuamos cantando essa melodia que se tornou universal. Havia muitos sorrisos, abraços e alegria.
Emocionei-me quando percebi a conexão que existia entre todas as pessoas que estavam ali. Vínhamos de lugares tão diferentes, com culturas diversas, mas respeitávamos uns aos outros. Sonhei, então, com um mundo em paz.

Os russos dizem que o mantra oficial dos brasileiros é ALEGRIA. Dizem que não entramos em contato com a morte, pois não temos o inverno rigoroso que eles têm e que nossa natureza é abundante em cores, cheiros e diversidade. Ficam impressionados com a liberdade que temos para vivenciarmos nossas crenças e se encantam com nosso ecletismo religioso. Freqüentamos a missa, passamos por um terreiro de macumba, vamos a um centro espírita e praticamos a meditação budista, sem problema algum.
Lembrei-me de nossa história, da constituição do povo brasileiro na miscigenação das raças. Lembrei-me da imensidão de nosso território com características geográficas tão contrastantes. Lembrei-me de nossos sotaques, de nossa culinária, de nossa música. Lembrei-me do mar, do cheiro de terra molhada, das cores e dos cantos dos pássaros. Lembrei-me das cachoeiras, das árvores, das onças. Lembrei-me do fundo do mar cheio de corais e de peixes coloridos, numa outra dimensão. Lembrei-me da saudade do Cruzeiro do Sul, sentida por Vinicius de Moraes quando estava no exílio. E, aí, lembrei-me do povo brasileiro, cheio de coragem, de fé e de esperança e, principalmente, cheio de alegria. Então, como Vinicius, chorei de saudade.
Ao descer do avião, todo o grupo de brasileiros cantava “moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza... e que beleza!”.
ALEGRIA!

7.2.07

Mulher macho?

Tenho lido muito sobre mulheres. Estou começando meu trabalho de pesquisa sobre as mulheres pernambucanas. Quero saber o que sentem e o que pensam sobre o fato de terem nascido fêmeas e terem aprendido o que é ser uma mulher, em diferentes locais e em tempos de vida também diferentes.
Fiquei pensando sobre o que teria me motivado a buscar essas respostas e me lembrei de uma história contada pela minha mãe (Freud explica, claro).
Tive uma tataravó, moradora do interior pernambucano, que descobriu que seu marido estava tendo um caso amoroso com uma moça da região. Mandou seus capangas pegarem a tal amante, fez uma mistura com ervas, sal e pimenta e colocou tudo isso na periquita da mulher. Depois cortou os cabelos dela para que todos soubessem que era uma mulher sem-vergonha.
Foi denunciada na delegacia e quando chegou a intimação mandou meu tataravô ir até lá resolver a questão.
Durante muito tempo essa história foi contada com orgulho, pois demonstrava a força e a coragem das mulheres de nossa família. Será?

22.1.07

Jogo de palavras

Trabalhar com as palavras é fascinante. Lembro-me do filme Caramuru quando a índia fica brincando com o português sobre a nossa gostosa manga e a manga da camisa dele.
Também me lembro da época que, vinda da informática, iniciei o meu contato com a área educacional. Para mim, rede era de computadores, ou, no máximo, rede de balançar. Concordava quando diziam que a rede não prestava, mas só descobri depois de algum tempo que se referiam à rede pública de ensino e que eu estava falando da rede de computadores. O tempo passou, mas as redes continuam sem funcionar direito.
Tive outra experiência dessas quando minha professora de pintura em madeira me pediu para levar guardanapos e levei um pacote desses comuns. Que mico! Era para levar guardanapo pintado, desenhado, pois seria colocado na tampa de uma caixa. A mesma palavra, o mesmo objeto, só que com significados diferentes para mundos diferentes.
E se pensarmos nas cadeias de associação de palavras quando ouvimos, por exemplo, a palavra amor, ou saudade, ou desejo, ou tesão. Cada um de nós vai pensar e sentir de uma forma diferente, única, singular. Por isso, um texto sempre dependerá da posse de seu leitor.

12.1.07

Sonho realizado

Às vezes achamos que os nossos sonhos não podem virar realidade. Mas na verdade o que não temos é coragem para realizá-los.
Há algum tempo escrevi um texto sobre como seria um dia mágico para mim. Todo mundo que leu, adorou e ficou sonhando com um dia igual também. Parecia impossível, acordar numa praia, ir meditar logo cedo, vendo o sol brilhando nas águas mornas do mar, tomar suco e caminhar, com bichinhos lindos na areia; depois, um banho de mar cercada por peixes. Café quente, rede, bons livros, boas companhias. Mais banho de mar, com a lua nascendo e o sol se pondo; noite cheia de estrelas, uma boa música no ar e um bom vinho.
Pois este tem sido o meu cotidiano agora. Sonhei, acreditei, arrisquei, ousei, realizei.
Seu desejo é uma ordem, diz-nos o Universo.
Estou feliz.