7.12.08

Percurso

Há quase um mês tivemos uma festa de reencontro da família de minha mãe numa cidadezinha do agreste pernambucano. Fazia tempo que não íamos ao sítio para tomar banho de bica e cantarolar músicas, tendo como acompanhamento o assobio na boca da garrafa de cerveja.
Uma prima minha, bastante emocionada pela alegria do reencontro, comentou:
- O mais impressionante é que quem articulou tudo isso foi Patrícia, a pessoa que eu menos esperava, porque sempre foi muito afastada de nossa família.
E repetiu isso muitas vezes, com várias pessoas, sempre me agradecendo pela iniciativa.
Fiquei com aquilo na cabeça, e, claro que no coração, tentando compreender a verdade do que ela estava dizendo. De repente, o filminho da minha vida foi passando e percebi o porquê de poder estar me juntando à família de minha mãe só naquele momento.
Sou a filha mais velha. Havia o desejo de que o primeiro filho dos meus pais fosse um menino. Nasci muito inteligente para o português e a matemática. Isso já seria suficiente para ter um grande destaque na vida escolar e, para a época, fugir do estereótipo de que mulher não dava para cálculos. Fui sendo excluída pelos grupos de amigas que não gostavam dos números e, como tinha e tenho um grande poder de ação, aos poucos caminhei sozinha para o mundo masculino. Identificava-me com a família do meu pai e era lá que passava os finais de semana, entre livros e dormidas em camas de lona. Minha irmã ficou com o papel de menina da família e compartilhou sua infância com os primos e primas do lado materno. Meu irmão conseguiu ter uma vida mais independente. Claro que aqui tem muito mais coisa de Freud para explicar, como diria uma psicanalista que conheço e que sempre fala em castração.
Ia fazer Psicologia, mas mudei para Computação na semana de inscrição do vestibular. Casei-me e tive uma filha. Aí, a força da mulher falou mais forte e comecei a fazer as pazes com a minha energia feminina. Quis ir ao seu encontro, meu marido não deu conta e nos separamos. Voltei para a Psicologia. Casei novamente e tive dois filhos homens. A vida espiritual foi retornando bem devagarzinho e comecei a conhecer o mundo transpessoal, as vidas passadas, a mitologia e o xamanismo. Cheguei ao ápice no papel que desempenhava sendo regida pela lógica e pela razão e resolvi que não queria mais usar aquela máscara. Agora queria ficar quietinha e deixar que a energia feminina tomasse conta da minha alma, usando aqui tomar conta tanto no sentido de se apoderar como no de cuidar. Sentia-me como a semente que está sob a terra durante o inverno, apenas esperando a chegada da primavera para florir. Foram momentos muito especiais, onde pude me olhar e ver o que queria realmente para mim. O entorno não me entendia direito e cobrava meu posicionamento na vida profissional. Eu ainda não sabia o que a vida estava reservando para mim, mas tinha uma profunda confiança na energia amorosa do Universo e que apenas precisava me lembrar do meu Dom, do propósito de minha vida aqui neste planeta lindo. A solidão se fez presente e só em sua companhia pude escutar o meu verdadeiro canto. Sem ainda saber o que deveria fazer, resolvi que poderia ir tirando o que eu não queria mais em contato com minha Alma.
Realizei muitos trabalhos com mulheres, tanto em grupo como no consultório, e pude ir sentindo que dentro de mim suas vozes tinham eco. Escutei dores, angústias e sonhos de muitas mulheres e compartilhei todos esses sentimentos com elas. Vivenciei a energia das Deusas e percebi que no meu Todo sou muitas, concomitantemente. Fui reverenciando todas as Deusas em mim e, de repente, descobri-me Deusa.
Separei-me, casei-me de novo. Porém, dessa vez de uma forma diferente, pois sinto que estou inteira e ofereço o Sagrado Feminino para a relação a dois que construo com o meu amado. Estou feliz e em paz.
Por toda essa história, prima, é que só agora pude me aproximar da linhagem de minha mãe e celebrar a energia dela em mim e transmito essa alegria para a minha filha para que ela possa passar para suas filhas um feminino sem feridas.
E é esse feminino vibrante que me fez soltar uma gargalhada ao observar uma mulher numa loja exclamar:
- Meu Deus! Que coisa mais linnnnnnnnnnnnnnnnnnda! – referindo-se a um conjunto de panelas em teflon, expostas em uma caixa.
Só uma mulher para entender outra mulher num momento de êxtase como esse. Sim, agora achei a minha tribo e encontrei o meu lugar no mundo.

27.11.08

Depende de nós







É verdade que quase não se lê no nosso país. É verdade que não há livrarias e bibliotecas nas cidades do interior nordestino. É verdade que o poder público precisa fazer muita coisa para que se alcancem índices mínimos para uma educação de qualidade.
O que cada um de nós pode fazer para ajudar a mudar essa realidade?
Acredito que não podemos ficar só na queixa. Precisamos fazer a nossa parte.
Solidariedade se ensina, e desde pequenininhos, assim como se ensina a escovar os dentes e a tomar banho todos os dias.
Se fizermos a parte que nos cabe nesse latifúndio, construiremos um mundo melhor.



E é mentira?!

Tive a oportunidade de conhecer a cidade de Triunfo mais de perto e, devo confessar, apaixonei-me. Ela é linda. Casarios preservados, ruas, casas e estradas de pedra, açude com teleférico, povo hospitaleiro, bons hotéis e pousadas, tudo para você ir e não querer sair de lá.
Fiquei hospedada na Pousada da Baixa Verde. Um verdadeiro charme. Os funcionários atendem muito bem e a comida é uma delícia. Tudo lá é feito com capricho e carinho. O proprietário foi o grande incentivador do turismo local. Há ainda o engenho, com sua cachaça característica, seus licores e as famosas rapaduras de tudo que é jeito. Foi inaugurado o Parque das Águas com piscinas para adultos e crianças, sendo mais um local de lazer para triunfenses e turistas.
Tive a oportunidade de ir conhecer alguns lugares pitorescos com Antônio, o Barruada, uma figura maravilhosa e grande contador de causos. Quase morri de rir com suas histórias sobre Seu Lunga, personagem real que vive em Juazeiro do Norte. Contou Barruada:
“Seu Lunga queria entrar em casa e sua mulher estava sentada à porta, terminando de separar o arroz do almoço.
- Espera só um pouquinho, Lunga, que eu já tô terminando aqui.
Logo depois surge Seu Lunga com uma marreta e começa a derrubar a parede ao lado da porta.
- Que é isso, homem? – pergunta-lhe um vizinho.
- É que tô fazendo outra porta para poder entrar em casa. Aquela porta ali é só para a mulher separar arroz.”
E foi falando sobre mais histórias, virando a cabeça para trás sem olhar para a estrada íngreme e estreita, onde mal cabia sua veraneio azul. Bem que Pedro, da Baixa Verde, me avisou.
Visitei o Bico do Papagaio, o lugar mais alto de Pernambuco, ouvindo histórias sobre a época que Lampião esteve por essas bandas. Barruada diz que o cangaceiro foi o primeiro turista de Triunfo porque só ia lá para passear. Hoje a cidade o homenageia com o Museu do Cangaço. Conheci também as Furnas Holandesas e vi feijão cozinhando em panela de barro num fogão a lenha. A visita mais fantástica foi à Cacimba construída por Seu Neco há muito tempo atrás. Ele achou o local exato da água com uma varinha de madeira e começou a cavar o buraco sozinho. Fez a estrutura de pedra com mais dois ajudantes e um túnel incrível, também de pedra, para se chegar até a base da cacimba. Não usou cimento para encaixar as pedras uma na outra. A obra é tão bem feita que deixa muito engenheiro formado de água na boca.
O filho de Seu Neco estava na antiga casa de seu pai, ajeitando seu fogão de lenha, com cimento, areia e, por mais inacreditável que pareça, açúcar. Quando o provoquei dizendo que aquilo não iria prestar, ele sorriu e respondeu do alto de sua sabedoria, nada escolar, mas da vida, que o que tinha ali era muita química.
Na viagem de volta à cidade, Barruada ainda cantou músicas de Luiz Gonzaga e recitou um verso que ouviu num encontro de repentistas:
“O sol, a lua e as estrela têm um brilho muito fino. Mas os olho da mãe brilha mais, olhando o seu filho dormindo”.
Fiquei emocionada e quase fui às lágrimas. Mas logo depois soltei uma gargalhada, pois o nosso contador de histórias soltou essa, ao olhar para um casario em ruínas: “Isso aqui é tudo tombado. Tombou tanto que caiu.”
Imperdível Triunfo com Antônio Barruada como guia e a hospitalidade aconchegante da Pousada Baixa Verde. Quero voltar em breve.

17.11.08

O inferno é aqui

Ontem estive em São Severino dos Ramos e fiquei chocada com a ausência da administração pública.
O trânsito estava o caos. Ônibus por toda parte, paus-de-arara lotados. Alguns guardas municipais, ou algo assim, tentavam pôr ordem na confusão estabelecida. A sujeira se espalhava por todos os cantos. Copos descartáveis, restos de comida, sacos plásticos se misturavam aos romeiros que se amontoavam pelo chão em esteiras ou panos estendidos. Vendia-se de tudo. Lembrei-me do trecho da Bíblia que fala sobre os mercadores no templo. Aí não há nada de Sagrado. A fé é apenas uma mercadoria habilmente manipulada e vendida para um povo carente de esperança. Bares, restaurantes e barracas vendiam bebidas e comidas sem condição alguma de higiene. Havia ainda crianças vendendo água e outras coisas mais. Flores, cofrinhos, espelhos e o que mais se possa imaginar estavam nas bancas espalhadas pelas ruas, pelas calçadas, pela ponte. O rio, se é que se pode chamar aquelas poças de água de rio, estava cheio, mas era de gente fazendo piquenique. A música profana invadia o lugar e a cachaça reinava absoluta. Se o inferno existisse, deveria ser semelhante ao cenário que eu via.
Consegui entrar na igreja lotada de gente. Alguns rezavam, outros, sem camisa, fotografavam as imagens dos santos com câmeras de celular. Uma verdadeira zona, inclusive no templo. Percebi que um homem tomava conta daquilo ali. As pessoas colocavam aos pés de uma imagem do Senhor Morto peças que representavam pés, braços, como forma de agradecer pela graça alcançada. Este homem pegava as peças e as colocava depois para trás da imagem. Acredito que deveriam voltar para o local de onde saíram: a lojinha que vende peças para os pagadores de promessas. Há uma caixinha para que se coloque dinheiro. Os romeiros se arrastam, apóiam-se uns nos outros e vão até este local dar sua contribuição para o Santo. Porém, descobri, para minha surpresa, que a igreja, assim como todo o resto, é uma propriedade privada e todo esse dinheiro vai para os proprietários da mesma para 'a manutenção da igreja e para o pagamento dos funcionários'.
Não sou contra o desenvolvimento turístico estruturado pelo privado, mas aquilo lá é uma completa bagunça do público com o privado. Não importa quem seja o responsável, mas precisa da presença dos órgãos governamentais competentes para sua organização: trânsito, higiene e limpeza urbana, trabalho infantil e possibilidade de prostituição de crianças, menores consumindo bebida alcoólica, completa desorganização do comércio, gerência do meio ambiente e tantos outros problemas que um projeto para o desenvolvimento turístico dessa área daria uma tese de doutorado.
Desde que o mundo é mundo que as igrejas comercializam a fé. Vá lá que cada um e cada uma vai ter que arcar com as conseqüências energéticas dessa postura. Mas o dinheiro arrecadado lá está indo para o privado e o povo sabe disso? As igrejas comercializam a fé e investem algo em obras sociais. O que é feito em São Severino dos Ramos? O poder público pode custear essa estrutura com o dinheiro do meu imposto, do seu imposto, para os louros não voltarem para o povo? Cadê o orçamento participativo?Acho que precisamos refletir sobre isso. O local é lindo, há muitas pessoas trabalhando e tirando o seu sustento dessas romarias, há a fé. O que fazer?

10.11.08

Era uma vez...


Hoje deixei livros que escrevi com meus textos da fase acadêmica numa livraria. Confesso que, apesar de ainda não me considerar escritora porque estes não vieram de minha imaginação, fiquei emocionada. Não é que, aos pouquinhos, meu sonho de ser escritora vai se tornando realidade?! Já publiquei textos em duas coletâneas. Agora me organizo para publicar meu primeiro livro de verdade, uma história para crianças, ricamente ilustrada por uma mulher fantástica que se apaixonou pelo enredo e criou cenários belíssimos. Essa história eu contava para meus filhos quando eram crianças e vinham se deitar na minha cama com fraldas e mamadeiras. Era uma das nossas muitas histórias de boca, assim chamávamos as histórias inventadas. Quero compartilhá-la com outras crianças pequenas, pois meus filhos já estão grandes e não querem mais esses momentos mágicos.
É mágico, também, o passar do tempo. Ontem, eles eram bebês e eu os guiava pelos caminhos da vida segurando suas mãozinhas. Agora, muitas vezes, são meus filhos que me guiam para novas descobertas. Estive ontem à noite no Recife Antigo para assistir à apresentação de teatro de bonecos – sou fascinada por eles e tenho até um Benedito. Fui com minha filha, freqüentadora dos bares da região. De repente, segurou em minha mão e saiu me puxando e me orientando para chegarmos ao melhor lugar. Olhei para ela cheia de orgulho. Minha filhota cresceu e hoje é uma mulher linda que sabe o que quer. Agradeci ao Universo por mais um momento de magia.
E ainda dizem que fadas não existem. Pode?

4.11.08

Encontrei com uma amiga que não via há muito tempo. Fomos colegas de colégio e de faculdade. Fiquei em estado de choque ao descobrir que ela ainda estava casada com o seu primeiro marido, que também era seu primeiro namorado, que ainda trabalhava no local de seu primeiro estágio e primeiro emprego, que seu marido ainda trabalhava no mesmo setor do seu primeiro emprego e que ainda mantinham a mesma rotina de mais de 20 anos atrás.
Se isso tivesse acontecido comigo ou teria morrido de tédio ou teria enlouquecido. Percebi que a beleza da vida está nas diferenças. Que bom que podemos ser felizes percorrendo caminhos tão diversos! O mito do herói nos mostra que não adianta seguirmos fórmulas prontas, pois a jornada de cada herói é única. Enfrentamos os desafios que precisamos para evoluir.
Essa minha amiga viu meus filhos, conheceu meu terceiro marido, que por sinal havia morado no prédio dela com sua terceira esposa – eu sou a quarta -, soube que eu havia mudado de profissão pela terceira vez – já trabalhei com informática, com psicologia e agora quero ser escritora -, e comentou:
- Você sempre foi assim, revolucionária.
Foi o nome que ela encontrou para o que alguns e algumas chamam de loucura. Mas a verdade é que nunca me conformei com o morno. Adoro a intensidade e juro que até que tentei a mediocridade, mas algo sempre me impele para o novo. Começo projetos, estabilizo-os e já me lanço em outros desafios. Antigamente isso me angustiava, mas hoje entendo que é o meu dom, o meu jeito de ser no mundo. Então, aproveitemos esse talento.
Mais para bruxa que para fada, compreendi que ajudo outras pessoas a realizarem seus sonhos aqui na Terra. É a minha forma de apoiar cada uma delas a manifestar o Sagrado por aqui.
Tive um sonho, sonho mesmo, desses que a gente tem quando dorme, em que uma pessoa me perguntou na presença de outra:
- Doida?, dirigindo-se a mim.
- Feliz!, respondi eu.
Sinto-me livre para ousar e procuro seguir sempre o meu coração, pois acho que o Grande Espírito fala comigo através dele. Confio na vida e nela me jogo sem medo.
Deus proverá.

25.10.08

Quanto custa?



1 l de leite gelado

3 col (sopa) de Nescau

2 col (sopa) de Sustagen Kids

2 col (sopa) de leite Ninho

15.10.08

Sandálias

Estava eu numa cidade do interior pernambucano quando vi um grupo de meninos brincando pelos muros. Falei com um deles sobre o perigo de se machucar. Viram que eu estava com um broche brilhante e me pediram de presente. Começamos a conversar.
- Por que você está sem sandália? – perguntei.
- Porque a mãe dele morreu. – respondeu um amigo.
Ele, simplesmente, baixou o olhar.
- Como assim, porque a mãe dele morreu? Sua mãe morreu como?
- Morreu afogada no açude.
- Ah!
De novo, outro amigo fez uma intervenção.
- Ela morreu porque quis.
Aquele silêncio no grupo e meu coração cada vez mais apertado.
Continuou, então, a história.
- Era doente dos nervos.
- E você vai à escola descalço? – perguntei perplexa.
- A professora deixa, respondeu outro.
Dirigi-me ao menino, que continuava cabisbaixo e perguntei:
- E seu pai?
- Ele tá preso porque brigou com um homem de arma e matou ele.
Outro silêncio. Comecei a perguntar o que ele pediria a uma fada se ela aparecesse ali, naquele momento.
- Uma sandália, um sapato e uma roupa. Ah! Se pudesse, um carrinho vermelho.
Nessa hora os outros meninos começaram a fazer pedidos também. Argumentei que quem mais precisava ali era aquele que não tinha mãe, como eles mesmos haviam me dito. Então, meu novo amigo levantou o olhar e disse com coragem:
- A mãe dele também é doente dos nervos. E a dele também.
Sentimento de pertencer a uma tribo, ainda que dos excluídos. Não estava mais só.
Comecei a brincar perguntando que história era aquela de tantas mães doentes dos nervos. Contei que tinha filhos e que brigava com os meus, que perdia a paciência algumas vezes e que isso não significava que fosse doente dos nervos. Responderam que não era assim que as deles agiam e que eram doentes dos nervos mesmo. Conversamos mais um pouco, abraçamo-nos na despedida e fui embora sem fala.
Quanta coisa dita numa única frase:
- Porque a mãe dele morreu.
Aqui estão caracterizados o abandono, a falta de cuidado, a ausência de um ninho. Mora com a avó em um distrito dessa cidadezinha, em condições mínimas de sobrevivência, com o auxílio do bolsa-escola.
Visitei sua casa no outro dia e levei uma sandália para colocar quando fosse à escola. Conheci sua família, vi sua realidade, dura realidade. Sorriu quando nos encontramos.
No Dia das Crianças levei o que havia pedido à fada. Fui com meus filhos, meu marido. Apresentei-lhe minha família. Quis que ali fosse um encontro de duas pessoas, com histórias diferentes, mas duas pessoas, marcadas pela singularidade característica dos humanos. Não quis uma estatística, não quis um projeto governamental, não quis explicações sócio-econômicas, antropológicas, psicológicas. Não quis análise de dados sobre a violência ou sobre a exclusão social, menino negro, pobre, órfão de mãe, analfabeto, nordestino, pai preso, apelidos pejorativos, dificuldades de aprendizagem. Não quis pensar no futuro. Prendi-me ao instante, ao encontro dos nossos olhares que diziam muito mais que as palavras. Conectei-me ao enorme sentimento amoroso que emanava de meu peito. Não era um amor meu, era algo do Sagrado e eu apenas estava sendo canal.
De verdade, acredito em fadas, duendes, gnomos, príncipes encantados. Acredito em magia, acredito que o belo transforma e que o encantamento é o caminho para a esperança e para a fé na Vida.
Sonho com um mundo em que as crianças também acreditem em magia e que os adultos acreditem em milagres.

13.10.08

Se Maomé não vai à montanha...























Neste final de semana levamos livros para a feira de Lagoa dos Gatos. Foi uma experiência e tanto. O trabalho começou bem antes, com a separação dos livros, o transporte para a barraca logo cedinho, as bolhas de sabão. As pessoas se aproximavam um pouco desconfiadas, pegavam os livros, perguntavam se tinham que pagar alguma coisa. Quando descobriam que poderiam levar quanto livros quisessem e de graça, o entusiasmo se revelava no brilho do olhar. Apareceram crianças, idosos, jovens, professoras. “Tem livro de poesia? Eu queria um que me mostrasse todos os países do mundo. Tem Paulo Coelho? Quero de Cinderela. Tem de Psicologia? Adoro Paulo Freire. Posso levar muitos para trabalhar com meus alunos em sala de aula? Queria um de Matemática. Tem de Biologia? Adoro romances. Já li Machado de Assis, tem aí?”
De repente, nossa barraca estava lotada e mal conseguíamos atender todo mundo. Anotávamos nomes e livros e só.
Deu certo, muito certo, pois emprestamos mais de 200 livros. Uma criança que estava ajudando o pai na banca da feira veio um montão de vezes e pegava mais livros e lia lá mesmo e pegava mais. Algumas mães vieram devolver os livros com medo que seus filhos os rasgassem. Insistimos que levassem os livros e que não teria problema se isso acontecesse, pois as crianças precisariam entrar em contato com o mundo da leitura.
Saímos exaustos e felizes, comprometendo-nos a voltar dentro de um mês.
À tarde, mais cultura. Exibimos filmes da Turma da Mônica numa escola pública de uma comunidade carente. Conversamos sobre a vida na cidade grande e a vida no campo e descobrimos que as crianças preferiam a tranqüilidade da vida numa cidade do interior. Distribuímos bombons, pipoca e refrigerante. Brinquedos e dudus na saída.
Organizamos também a exposição de fotografias Então, é Primavera noutra escola pública do município, oportunizando o contato de jovens com o mundo da fotografia.
O ritmo das atividades foi intenso, trabalhamos muito, mas voltamos realizados e conscientes de que apenas começamos a caminhar, pois a jornada é longa e há muito ainda por ser feito.
Valeu!

8.10.08

Com a força do povo















Participei, pela primeira vez, mais de perto de diversas campanhas eleitorais no estado de Pernambuco. Algumas para prefeito, outras para vereador. Adorei todo o processo e, confesso, surpreendi-me com o que ocorre nos bastidores. Nós, meros eleitores, não temos idéia do trabalho que existe na construção de um projeto eleitoral. Inúmeras discussões para a elaboração de planos de governo, visitas às comunidades para conversas e levantamento das necessidades, novas visitas para a apresentação das soluções propostas pelo candidato. Para os que disputavam a reeleição havia o balanço do que já foi realizado e o planejamento do que ainda precisava ser feito.
A experiência que tive não combina com as idéias do senso comum de que tudo o que os políticos apresentam é para enganar o povo e só conseguir o voto. Foram horas e horas de discussões buscando a melhor solução para cada problema levantado.
Vermelha há muito tempo, aprendi a tirar o chapéu para um candidato amarelo, Galego, prefeito de Jurema. Menino pobre, saiu como retirante para tentar a vida em São Paulo. Ele conta que quando estava indo embora, com o coração cheio de saudade, olhou para trás e viu a igreja matriz e duas colinas que cercam a cidade. Guardou essa imagem no coração e prometeu voltar e ajudar seus conterrâneos a terem uma vida decente para que não tivessem que passar pelo que estava passando. Cumpriu a promessa. Voltou, tornou-se prefeito da cidade e trabalhou quase que 24h/dia pelo seu povo. Acordava cedinho, ia para os postos de saúde, checava as escolas, visitava os sítios e por aí vai. Contam que, em segredo, sem alardear para ninguém, ajudou muito sem-teto a ter sua casa, contribuindo com o dinheiro de seu próprio salário. Isso não sei se é lenda ou se é verdade. Se fosse para apostar, eu ficaria com a segunda opção. Seu gabinete vive lotado de gente. Ouve todo mundo e procura ajudar da forma que consegue. Seus assessores enlouquecem com tanto trabalho. Lembro-me de uma frase de Miguel Arraes que era mais ou menos assim “o possível a gente faz e o impossível o povo ensina a gente a fazer”. Galego é assim, um administrador público que honra seu cargo, ‘estou aqui para servir ao povo; foi para isso que fui eleito’. Encontrou a cidade desfalcada após 20 anos de administração pública familiar, onde uma família entendia que a cidade era seu curral. Contas atrasadas, município sem crédito. Trabalhou muito e hoje a situação já permite uma administração mais tranqüila. Campanha difícil e bonita, muito bonita. Seu último comício foi emocionante. O povo tomando todas as ruas, carreata, caminhada, homenagens e, ao final, um pedido de paz. Lindo!
Nas viagens que tenho feito pelo interior do estado pude conhecer uma Secretária de Trabalho e Ação Social que é um escândalo de boa. Chamam-na de Mili e é de Lagoa dos Gatos, terra de minha mãe, um município com um dos piores índices de desenvolvimento do estado. Acho que nunca cheguei lá num final de semana para não encontrá-la trabalhando, com a secretaria aberta e o povo resolvendo seus problemas. Pense numa mulher que pensa no povo.
Também participei ativamente da campanha de Arlindo Siqueira para prefeito de Olinda. Ele não foi eleito, mas jamais esquecerei as reuniões que varavam a madrugada para discutirmos o que poderíamos fazer pelo povo de sua amada cidade. De verdade, Arlindo é um autêntico olindense e ama sua terra e sua gente. Ainda não foi dessa vez.
Viajei ao lado de Roberto Arrais, um dos homens mais íntegros que tive a oportunidade de conhecer. Ele acredita na construção de um mundo mais justo e mais belo, sendo o caminho a transformação social. Alguns acham que é ingênuo, que as coisas mudaram e que militante é coisa do passado. Age com a convicção de que um dia os sonhos de Gregório Bezerra, Prestes, Dom Hélder Câmara, Paulo Freire, Patativa do Assaré e tantos outros se tornarão realidade. E faz a sua parte. Tenho aprendido com ele e tentado fazer a minha. Compartilho com ele a vida e a esperança na beleza da vida e na justiça para todos os povos.
Vejo meus filhos conversando sobre política, sobre problemas sociais, sobre possíveis soluções e fico encantada com as posições que assumem. Lembro-me do sangue derramado por tantos que sonharam e acreditaram que um dia, no nosso país, novamente a liberdade seria possível. Se hoje nos reunimos em praça pública e defendemos nossas posições é porque alguém construiu há algum tempo esse caminho para a nossa geração e para a geração dos meus filhos. Novamente a esperança me alenta.
Uma imagem, quase sempre, revela a mensagem de algumas muitas palavras. Acho que a foto da casa de um agricultor num acampamento de sem-terras traduz o que sinto e penso. Desistir, jamais.

3.10.08

Então, é Primavera













Organizamos uma exposição de fotografias com flores do nordeste brasileiro, do Japão e do Canadá, registradas por dois fotógrafos: uma mulher bem jovem e um homem maduro.
Percebi que a sensibilidade não é algo que se adquire com a idade. Jovens podem ser bem sensíveis e, com suas atitudes, interferir no mundo para que esse seja melhor e mais bonito. Apesar da diferença de idade dos artistas, não se conseguia distinguir quando a foto era de um e quando era de outro. Essa descoberta me encantou e me encheu de esperança por dias melhores: os jovens de hoje serão os maduros do amanhã e eles estão muito mais preparados que nossa geração para a construção da harmonia entre os povos e para uma postura de respeito à natureza.
Enquanto arrumávamos o local da exposição, várias pessoas que estavam participando de outras atividades no espaço colheram flores pelo jardim e vieram nos ajudar na decoração. Mais um momento de encantamento e aprendi que o belo realmente transforma lugares e pessoas.
Ambiente acolhedor, boa música, flores nas fotos e nos vasos, sucos, saladas e tortas, incensos, velas, e, principalmente, convidados sensíveis à estação das flores. Não importa a idade, não importa o lugar, com sua exuberância de cores e cheiros, a Primavera sempre nos convida para um novo recomeço, lembrando-nos que a vida e sua magia devem ser celebradas.

1.10.08

Autoria

Reunião da escola. Pais aflitos porque seus filhos não estão atingindo todas as metas pedagógicas. Educadores angustiados orientam os pais para que vasculhem escondido as bagagens de seus rebentos procurando bebida.
Saio perplexa. Que mundo é esse? Qual a relação construída por pais e filhos na contemporaneidade? Pensava eu que seria algo baseado na confiança, na liberdade e no amor. Pais são amigos, são confidentes, são o porto seguro e não, agentes do serviço secreto.
Outra reunião de pais. Professores das diversas disciplinas apresentam os objetivos trabalhados e o quanto as turmas estão aquém do que foi planejado. Só querem amar, diz um; estão indisciplinados, diz outro; vocês precisam obrigá-los a estudar, tem o vestibular, o mercado exige.
Mais estupefata estou. Em que mundo vivo? Será eu a única alienada ali? Tento provocar uma reflexão sobre a não importância das notas, sobre o quanto é importante estarmos focados na formação da cidadania, no espírito críticos desses jovens que daqui a pouco tempo serão adultos exercendo o seu papel no mundo. Por que ninguém se pergunta se esses alunos, nossos filhos amados, estão felizes? Por que o foco é o sucesso? Por que ninguém ali se lembra da época maravilhosa dos nossos 15 anos?
Estou lendo um livro que fala sobre os conceitos freudianos: complexo de Édipo, castração, o grande Outro, o filho como falo da mãe. Essas reuniões de pais e mestres na escola comprovaram a teoria. O êxito do filho, nos moldes estabelecidos pela sociedade capitalista, significa que a família foi competente na educação. Ninguém está vendo o estudante como Sujeito, como autor de sua história. Ele continua preso na posição de objeto com a função de atender os desejos do Outro. Será preciso uma longa jornada, cheia de dores, doenças, depressões e lexotan, para que a pergunta primordial se instale: qual é o meu desejo?
Conheço jovens que estão na contramão da onda. Um deles lê muito, muito mesmo, tem postura crítica, é solidário, criativo, inteligente e carinhoso. Apresenta muitas dificuldades ortográficas e questiona o sistema educacional vigente. A escola sugere aulas de reforço e um acompanhamento mais de perto dos pais para que faça as fichas de leitura dos livros trabalhados em sala de aula. Outro jovem só tira notas boas, questiona o mundo, é sensível e carinhoso, usa calças lá embaixo, deixando a cueca aparecer e tem tranças no cabelo. A família da namorada não o quer como genro, pois parece um garoto irresponsável e drogado. Uma jovem é estudiosa, passou no vestibular, é alegre, cheia de vida e tira suas máscaras assumindo suas escolhas. As amigas a acusam de só pensar em si e se sentem ameaçadas com sua liberdade. Imagino o quanto deve ser difícil para esses três assumirem os seus desejos e não se submeterem ao que foi determinado por uma sociedade hipócrita, cujos membros fogem de suas verdades como o diabo foge da cruz.
Até quando vamos continuar privilegiando nossos medos? Até quando vamos carregar conosco nosso maior inimigo que é a liberdade que temos de escrevermos nossa própria história?

30.9.08

Fragmentos

Andava pelo centro do Recife quando vi um homem de meia-idade escrevendo com pedra numa lousa o valor de algum produto que iria vender. De repente, virou-se para uma senhora que estava perto e gritou:
- Ô, Creuza, 4trocentos tem quanto Os?
Na hora que escutei a pergunta, sorri maravilhada com sua inteligência e encantada com a riqueza da língua. Mesmos signos e inúmeros significados. Lembrei-me do inconsciente freudiano. Resolvi que escreveria um texto sobre o que tinha presenciado e fiquei matutando como grafaria o falado sem perder a originalidade. Pensei, pensei e, nas minhas limitações, não descobrir recurso lingüístico que me socorresse. Por isso, reproduzo a sabedoria popular:
- Ô, Creuza, 4trocentos tem quanto Os?

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Campanha eleitoral pegando fogo em Recife. O prefeito, muito popular nas classes menos favorecidas economicamente, está sendo acusado de uso da máquina administrativa. Li no jornal uma nota que relatava a conversa entre dois homens do povo.
- Você viu a confusão que o prefeito se meteu?
- Vi. Tão dizendo que ele usou a máquina.
- Que máquina?
- Não sei direito. Parece que foi a máquina Xerox.

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Saiu no jornal uma pesquisa que afirma que mais de 80% das crianças que não sabem nem ler nem escrever freqüentam a escola. Uau! Surge a pergunta: as escolas fazem o quê?
Várias respostas. A culpa é dos alunos. A culpa é das famílias. A culpa é do governo. A culpa é dos professores que não se empenham para ensinar direito. Esta última foi dada por um especialista em educação. Penso, cá com meus botões, que esse cara é um babaca, que fica sentado atrás do seu birô, numa sala com ar-condicionado, sem andar quilômetros para ir até a escola que leciona, enfrentando sol, chuva e lama. Nunca enfrentou uma turma superlotada e quente, com bancas quebradas, alunos famintos e violentados. Nunca ficou imaginando, enquanto aluno, o que danado seria a tal da uva que todo vovô vê nas cartilhas e que ele não consegue decifrar “Vovô viu a uva”. Os desenhos do papel, que lhe dizem serem letras, não contam histórias com algum significado para ele. Será que a uva é parecida com a jaca? Ou será com a manga? Será algo como a vaca?
Imagino que para intelectuais que habitam apenas os livros o discurso para culpabilizar a precária formação dos professores brasileiros é confortável. A minha pergunta é: se todos os professores fossem capacitados num programa organizado pelo tal especialista esses dados mudariam? Acho que Paulo Freire é um dos que pode dar a resposta.

8.9.08

Lagoa dos Gatos
















“Se algum dia, à minha terra eu voltar...”
Foi assim, emocionada como na música, que voltei a Lagoa dos Gatos, terra de minha mãe, junto com meus filhos, meu marido, minha babá, a babá de meus filhos e nosso motorista. Os meninos estiveram lá quando crianças e não lembravam nada.
Adoraram a surpresa da casa. Tudo pronto e arrumado para eles. Bombons, escovas de dente, DVDs preferidos, todos os detalhes para que se sentissem em nosso lar. O marido ainda não tinha visto tudo pronto e ficou encantado com a transformação de cômodos vazios num ninho de amor. Eu estava em êxtase. Não dava nem vontade de sair. Perdemos o teatro, perdemos o show, perdemos o desfile. Aproveitamos cada minuto, só nós, juntinhos. Comemos camarão, founde de queijo, churrasco, morangos, sorvete de chocolate. Vimos dvs e ouvimos muitos lps.
Nos passeios pela lagoa, brincamos com o gato. Contei o que fazia quando ia para lá quando a criança era eu. Fomos visitar nosso terreno. Adoraram as árvores, a vista, as pedras, a cacimba, os cupins, as formigas e as abelhas. A dor da picada do maribondo não me abateu. Escolhemos o local da casa num lugar alto, com vento e uma paisagem de tirar o fôlego.
Seguimos em frente e, depois de muitas ladeiras, chegamos ao sítio que foi de meu avô materno. Os pavões faziam um alvoroço enorme. Descemos para a bica e lá relembramos as famosas farras da família Souza Lira, com músicas, cachaça e alegria. Tomamos banho de bica, de açude e de piscina. Brincamos muito e até ouvimos vozes do além.
O tempo nos cobrava a volta. Saímos de lá com a certeza de que isso foi apenas o começo e que nunca mais iremos ficar tanto tempo longe.
“Eu vou partir, não aceito desacato, adeus terrinha santa, adeus nossa Lagoa dos Gatos.”