30.12.09















Este foi um ano de fortes experiências e muitas dificuldades, financeiras, principalmente. Mas estas me aperreiam e não me doem, não tocam meus sentimentos, não chegam perto do que é importante para mim. O que me deixa triste, murcha mesmo, é quando percebo os monstros que habitam nas pessoas que amei, que amo, ou que poderia amar. Aí, sim, dói, e, muitas vezes, prefiro abrir mão dos meus ideais de justiça e de verdade para não encarar esta realidade. Vivi algumas situações assim. Chorei, me enrolei no lençol, fiquei quietinha, tomei banho quente. Aos poucos, recuperei minhas forças e segui em frente, pronta para novas decepções. É bom quando coisas assim acontecem porque temos a oportunidade de ver as pessoas como realmente são, sem máscaras ou jogos teatrais. Lembro-me de Darci Ribeiro dizendo que não gostaria de estar do lado dos inimigos que o venceram. Comigo funciona do mesmo jeito. E é preciso lembrar que a gente colhe o que planta e que tudo que a gente faz tem que aguentar as consequências. Ninguém fere pessoas e fica impune. A justiça humana pode até falhar, mas a Divina jamais falhará.
Não posso colocar na balança e dizer que estes momentos terríveis tornaram o meu ano ruim. Tive muito mais momentos fantásticos, cheios de amor, alegria, saúde, cumplicidade, companheirismo, tesão, solidariedade, prazer, aconchego, dengo, e tudo o mais que fadas e duendes nos trazem quando temos o coração aberto para estas surpresas simples da vida. Aprendi muito com meus filhos, meus tesouros, sobre a vida e a liberdade. Serei eternamente grata a eles pela forma carinhosa com que acolheram o amor da minha vida e, juntos, formamos uma família de verdade. Estou sofrendo, noites e noites ao lado do celular, para encarar que cresceram e que estão no mundo para o que der e vier. Dá uma saudade do beijinho que curava o dodói! Com meu marido, grande camarada e companheiro, tenho aprendido a beleza das pequenas coisas e o valor da paciência para as lutas sociais. Não tem sido fácil dividi-lo com o povo, mas ele não seria feliz se não pudesse realizar sua missão de vida. Meu pai me ensina a dor dos limites que a idade impõe e a sabedoria que se constrói na velhice. Gostaria de poder deitar a cabeça em seu colo e ouvir seus conselhos, como também, ouvi-lo cantar ‘que saudades de professorinha que me ensinou o be-a-ba’. Não dá mais e a lembrança desses momentos se mistura às lágrimas de saudade da época em que éramos uma família feliz e eu era apenas a filha. Também vivi momentos mágicos com meus irmãos, sobrinhos e sobrinhas, e familiares queridos, incluindo agora todos que pertencem à grande família do meu marido. Distanciei-me fisicamente de amigos amados, por vários motivos, e sinto muito a falta deles, principalmente delas, mas a dor que nunca vai calar é a saudade do meu amigo-irmão que se deixou capturar pelos espíritos africanos. Deu-me uma raiva de Deus. Trabalho com pessoas maravilhosas que estão sempre me ajudando e me apoiando nos desafios do cotidiano. Sou muito, muito, muito grata a todos que compartilham sua intimidade em meu consultório, pois me ensinam coisas que só poderia aprender ali. Lancei meu primeiro livro infantil e isso foi muito importante para mim porque agora começo a me ver como escritora.
E, claro, os instantes vividos em Maria Farinha superaram todas as expectativas que tinha sobre o que/quem é Deus. Este foi um capítulo especial do que vivi neste ano que termina.
Gosto de saber que estou sempre me reinventando. Com quase cinquenta anos, ainda namoro e adoro beijar na boca, beijo de língua mesmo, como adolescente enamorada. Durmo abraçadinha, pé-com-pé, com meu marido e fazemos muitas coisas juntos, além daqueles momentos só delícia, claro. É bom perceber que a vida, com suas dores, não me deixou amarga e sem esperança no que virá. Tenho muitos sonhos a realizar.
Não sei o que o novo ano trará de surpresas, de desafios, mas li outro dia uma frase que dizia assim: o homem pensa e Deus ri. Creio de verdade nisso. Tudo está interligado e vivemos experiências que precisamos para completar nosso processo de individuação. Quero viver pensando menos e deixando a intuição me guiar. Ela sempre acerta. E que Deus possa rir cada vez mais da minha ingenuidade e da minha alegria na entrega ao Sagrado.

28.12.09












Passou a agonia da festa de Natal e pude curtir, junto com meu núcleo familiar, o nosso Natal. Fomos para a casa de praia e realizamos o famoso ritual de renascimento. A mesa já estava preparada com os símbolos que representam nossos valores: água, vinho e o pão repartido, para que, em nosso lar, sempre haja o que compartilhar. Banho de mar, jogar fora e deixar o fogo transformar o que não queremos mais, agradecer o que sonhamos realizar no novo ano que se aproxima. Bruxarias que realizo há quase dez anos e faço questão de compartilhar com os que moram mais dentro do meu coração, como leite com sustagen e suco de vampiro. Além do ritual, ficamos felizes com as coisas simples que realizamos juntos. Sob as bênçãos de São Francisco e Jesus, cozinhamos um camarão delicioso, temperado com ervas de nossa horta, jantamos à luz de velas numa varanda de frente para o mar, reverenciamos os duendes do jardim, conversamos com maria-farinha, ouvimos o canto dos pássaros, ficamos preguiçando na rede, lendo bons livros e ouvindo boa música, tomamos suco de laranja num café da manhã banhado pela luz do sol, gozamos da liberdade de um passeio de barco na travessia para o Colina 77, barzinho que frequentei na adolescência e que tive o prazer de voltar ao lado do meu marido e dos meus filhos. Nada de extraordinário fizemos e gozamos da essência da Vida. Na volta, de havaianas, as legítimas, fomos às compras de bermudas, camisas e cuecas. Para completar o final de semana perfeito, a tradicional limpeza do lustre de cristal da sala de jantar. Agora, sim, depois da ceia de Natal com as grandes famílias, do almoço no dia 25 com meu pai, da limpeza do lustre e do ritual na praia, concluí mais um ciclo e estou pronta para o que virá.

27.12.09

Adoro cheiro de livro. Adoro folhear páginas e sentir em meus dedos a textura macia. Encanto-me com o fato de desenhos, as letras, quando arrumados de uma forma padrão, traduzirem os sentimentos do mundo. Tenho tanta coisa para contar. Estou sempre com livros perto de mim. Na cama, de pijama de algodão macio, cheio de desenhos de flores, durmo embalada pelos sons das palavras escritas naquelas páginas mágicas. Descobri um lugar especial para guardá-los quando adormeço: uma fresta entre o colchão e um pedaço da cama. Durmo e eles ficam ali, bem juntinho, embalando meus sonhos e velando meu sono. Apaixonei-me pela poesia de Manoel de Barros. Comecei a ler aquela liberdade toda e fui fisgada pela força da natureza e pela ousadia de sua escrita, com suas próprias regras gramaticais. Deu-me uma inveja. Eu, preocupada com as vírgulas e os pontos, e ele, lá, escrevendo do jeito que lhe dá na telha. Seus anos de vida fortaleceram suas palavras: Poesia é voar fora da asa. Lindo!
Também ando em companhia de Clarice, a Lispector, e me impressiono, cada vez mais, com sua enorme capacidade de revelar a complexidade do feminino escondida no cotidiano das mulheres. Quanta sede de viver está sufocada na água que lava a louça! Louca? Basta um cecidilha, um tracinho besta embaixo do cê, e tudo muda. Claro que sempre dá vontade de sair por aí, bebendo da vida em sua essência. Livre, louca, fazendo cada dia uma coisa diferente, descobrindo o que existe por trás do escuro, por trás da claridade que cega quando o sol nasce. Mas tem a louça na pia, as fraldas dos meninos, a gravata do marido, a água nas plantas, a comida do passarinho. Não se pode ser borboleta. Na maioria das vezes, ficamos periquitas em gaiolas abertas sem coragem de voar. Temos casa, comida, roupa lavada, ainda que tudo isso seja feito por nós mesmas, e a segurança de uma aliança no dedo. O desconhecido nos assusta e a rotina familiar nos dá a ilusão do útero para sempre perdido. E aí, a vida vai passando, o coração vai amornando, a alma vai adormecendo, devagarinho, sem que se perceba direito. Até que um dia, por um motivo qualquer, a vida vem e estoura tudo, num pedido desesperado de socorro. O que fazer? Ficar quietinha, esperando a vida adormecer de novo. E se as baratas chegarem antes de uma outra chance?