7.11.09

Nada do que foi, será, do jeito que já foi um dia






Faz algum tempo que não escrevo. Acho que andei calada porque ainda não havia conseguido colocar em palavras a dor que estava e ainda estou sentindo. Perdi um amigo muito querido, num estúpido acidente de carro, em Angola. Fecho os olhos e ainda o vejo adolescente me chamando para ver a lua na varanda. Consigo ouvir sua risada, olhar seu corpo remechendo por trás da cadeira de sua esposa, numa tentativa de dançar quieto num lugar. Adorava as estradas, adorava a reunião com a peãozada. Viveu do jeito que quis.
Conhecemo-nos há mais de trinta anos. Gostava de aperrear minha mãe, suspende suas pernas na garagem do prédio toda vez que ela entrava com o carro, insinuando que ela era munheca de pau. Também adorava vir de carona com ela e começar a falar coisas desconexas no carro. Não foram poucas as vezes em que viemos junto, a pé, do colégio, coonversando coisas sobre a transformação do mundo. Acompanhei de perto seu namoro com uma das minhas melhores amigas. Segurei várias barras de suas cachaças e farras. Lembro-me do seu vestibular, de sua formatura, do seu casamento, do filho. Ouço sua voz no meu quarto, quando enchia bolas para o aniversário de minha filha, dizendo que não acreditava que estava fazendo aquilo. Era a alegria em pessoa. E olha que tinha motivo para se derramar em lágrimas, pois havia perdido três dos seus irmãos por conta de uma doença genética. Detestava construir coisas pequenas, não suportava arquitetos brigando porque uma parede estava deslocada 10cm. Fez muitas estradas, aeroportos, tudo grande.
Assumiu o lugar de meu irmão mais velho e sempre puxou minhas orelhas quando não concordava com as loucuras que fazia. Se eu o tivesse escutado há alguns anos, não teria feito uma das maiores besteiras de minha vida:
- Ele não é homem para você.
Teimei, segui em frente, sofri. Com as voltas que a vida dá, afastamo-nos por causa dessa história que não teve um final feliz. Ficamos mais de dois anos distantes e senti uma tristeza enorme quando, nos mails que trocamos nos seus últimos dias de vida, percebi que parecia que ele não me conhecia mais. Apesar da distância, meu coração sempre nutriu muito, muito, muito, amor por ele. Não deu tempo de retomarmos nosso abraço, nosso colo amigo, nossas risadas. Não pôde conversar com meus filhos e aprender com eles o que ainda não sabia e também ensinar coisas que eles pensam que já sabem. A morte o roubou de mim. Queria envelhecer com sua amizade, contando-lhe minhas descobertas, ouvindo suas histórias. Fiquei com raiva de Deus.
Agora, não tenho mais meu Rico rio, rio que minha alma aprendeu a escutar. Meu rio foi em direção ao oceano e já se tornou água salgada. Deve estar feliz, pois adorava os mergulhos no fundo do mar. Quando mergulhou a primeira vez, ligou para mim e disse emocionado:
- Eu vi Deus.
Tenho certeza, Rico, que você O está vendo agora. Manda para Ele o recado de que nós, que ficamos aqui, estamos cheios de saudade e que exigimos que Ele o trate muito bem, pois não é todo dia que chega no céu gente com suas qualidades. Aliás, as lágrimas que escorrem pelo meu rosto se misturam a um sorriso maroto, pois já imagino a zona que você está fazendo por aí, agitando com sua alegria este lugar.
Daí você verá toda as verdades que as máscaras escondem. Conhecerá todas as situações. Protegerá seu filho, meus filhos, sua mulher, sua família, seus amigos. E, Rico, não deu tempo de espalhar que você morreu de aids para que sua viúva não tivesse mais companheiro algum. Lembra que você contava essa história e depois soltava aquela sua gargalhada? Nela, você não está gravado apenas em todas as células de seu corpo, mas está em cada pedacinho do seu coração e de sua alma, e, isso, ninguém, nem nada, é capaz de apagar. Fica tranquilo.
Não consegui chegar no seu enterro. Fiquei na maior dúvida se iria, pois tive medo de não suportar a dor. Fui com Gabi. Pegamos engarrafamento, demos voltas e mais voltas, não conseguimos achar o cemitério. Voltamos arrasadas. Dizia a ela que tinha que existir um motivo para não ter chegado até lá. Descobri depois e, quando nos encontrarmos, contarei. Boba, eu. Esqueci-me de que você agora tudo vê, tudo sabe.
Tem um pensamento de um autor, que me tirou da religião católica, que diz mais ou menos assim:
- Longe é um lugar que não existe, pois o encontro, depois de momentos ou de vidas, é certo para aqueles que são amigos.
Para você, meu irmão amado, meu abraço, minha saudade, minhas lágrimas. Prometo que, em sua homenagem, viverei, mais ainda, uma vida seguindo meus desejos.
Fica com Deus. Que pleonasmo triste! Fica em Paz.