18.7.09

Bom, depois que comecei a dirigir carro, achei que saberia conduzir a minha vida pelas estradas certas. Naquela época, ainda não sabia que algumas delas possuem buracos, crateras mesmo.
Quando era do primeiro do segundo grau, resolvi fazer vestibular, por experiência, e passei para o curso de Psicologia. Meu colégio fez muita propaganda disso e meu professores nem imaginavam como este fato me afastava ainda mais de minhas amigas, pois desde criança aprendi que minha inteligência era a forma mais certeira de viver sozinha. Todas queriam minha ajuda nos trabalhos de equipe, nos estudos para as provas, mas mangavam de mim pelas costas, riam do meu jeito certinho e me isolavam de suas farras. Sentia-me apenas usada e completamente descartável. Resolvi que faria vestibular no segundo ano para um curso bem concorrido: Engenharia. Passei de novo e aí não agüentei os olhares de raiva e inveja e mudei de colégio, indo para um que ninguém me conhecia, ficando numa sala com mais de cem alunos. O anonimato durou até as primeiras provas, pois os resultados positivos, muito além da média da turma, fizeram com que os professores começassem a caça às bruxas das boas notas. Fui convidada, junto com outra amiga que tinha vindo comigo do colégio anterior, para participar de uma turma especial, só para cdf. Fui uma vez, achei aquilo tudo uma baboseira e abandonei o meu caminho de destaque, pois o que mais queria era ser apenas medíocre, aceita e feliz.
Estava certa que faria vestibular para a área de saúde – Psicologia ou Psiquiatria. O mundo da loucura sempre me fascinou, pois intui que há uma linha muito tênue para separar os loucos dos sãos, como nos conta o maravilhoso Machado, em seu O Alienista. Minha mãe era contra essa minha opção, alegando que se eu já não tinha sossego com as amigas me procurando para contar seus problemas, ‘imagine quando você for trabalhar com isso’. Recuei numa visita ao mundo dos computadores da IBM, pois vi aquele espaço lógico, organizado, sem problemas, onde a razão reinava absoluta e achei que essa seria a melhor saída para fugir do mundo submerso das emoções.
Hoje sei que o virtual, ou seja, o universo dos possíveis, tem muito em comum com o inconsciente, e, talvez, tenha utilizado dessas semelhanças para me aproximar do invisível, sem escancarar muito meu fascínio pelo mistério.
Mas o destino não nos deixa fugir do nosso caminho. Apesar de estar muito bem na profissão, já trabalhando como chefe numa instituição federal, fazendo mestrado e tudo o mais, sentia-me no vazio: “o dia de hoje não voltará e o que fiz da minha vida?”.
Grávida de minha primeira filha, fiz novo vestibular para Psicologia e compreendi que a realidade não existia. Adorava as aulas, adorava os temas discutidos e, mais uma vez, achei que tinha encontrado a estrada certa. E a vida nos deixa num mar de tranqüilidade?
Chegou a dor da separação, o fim dos sonhos de um casamento perfeito, com uma filha linda, um marido gostoso, terrenos na praia e no campo, carros, apartamento novo com banheira de hidromassagem. Quase surtei. Para completar o tsunami, engravidei de um amigo, abortei e me violentei, como mais nunca ocorreria em minhas estradas cheias de buraco.
Então a vida não é um conto de fadas?

13.7.09




As primeiras lembranças que tenho de minha infância são na Praça Osvaldo Cruz, nos passeios com minha babá e minha irmã mais nova. Não é uma coisa contínua, mas uma cena parada, como numa fotografia. Nós três, andando pela praça, de mãos dadas.
Depois me lembro, também numa cena apenas, de eu e minha irmã brincando no quarto de nosso apartamento da Madalena e de nossa babá querendo arrumar tudo. Chamou, chamou, nós não saímos. Meu pai veio e mandou a gente passar já e levamos uma tapinha na bunda. Ele também contava que quando eu era uma recém-nascida, ele estava estudando e eu não parava de chorar. Perdeu a paciência e deu uma palmada na minha bunda; engulhei e parei o choro na hora. Isso é o que ele diz. Pronto, foram as duas vezes em que apanhei. Todos os outros momentos foram de carinho, brincadeiras e colo.
Uma vez eu tinha estudado muito e estava aperreada porque achava que não sabia do assunto da prova no dia seguinte. Ele chegou do trabalho, viu minha agonia, colocou minha cabeça em seu colo e começou a alisar meus cabelos dizendo:
- Não precisa se preocupar. Se amanhã ainda não estiver pronta, não vai fazer prova. Se todos os problemas da vida fossem esse.
Naquela época eu não tinha idade para compreender exatamente o que ele dissera, mas me senti segura e protegida por sua figura forte e amorosa, naquele momento e durante toda a minha vida.
Também lembro os nossos passeios de domingo para a casa da família de minha mãe. Todo mundo junto, as crianças brincando, os adultos jogando buraco. Na volta, já com sono, eu deitava no banco lá de trás do nosso Fusca e ele vinha cantando:
- Estamos perto ou estamos longe? – na tentativa de evitar que caíssemos em sono profundo.
Ainda cantava ‘na minha fazenda tem um boi e esse boi se chama barnabé...’ ou ‘tava a mosca em seu lugar e veio a barata lhe atentar...’ou ‘e a Kodak não tinha capacidade, só tirou uma metade da bochecha de ...’. Tantas canções recheadas de alegria.
Minha mãe estava sempre presente, orientando nossos estudos, dirigindo pra lá e pra cá. Apesar de sua formação em matemática, era do lar. Depois, quando já estávamos adultos, foi fazer Direito para se proteger dos advogados – ‘todo advogado é ladrão’, dizia ela – e foi a laureada de sua turma com sessenta anos de idade.
Nas festas de São João ganhávamos lindos vestidos, todos desenhados por ela, soltávamos fogos com meu pai e comíamos as comidas típicas da época. Eu tinha uma vizinha muito rica, filha de político, que usava vestidos maravilhosos, comprados nas boutiques mais chiques, com sua governanta e seu motorista. Eu tinha uma pena dela, sempre tão sozinha. Dormíamos com mamãe contando histórias e eu adorava a do príncipe que reencontrava seu amor, depois de muito tempo separados.
Nada de muito luxo. Tudo muito simples. Uma vez, no Natal, ganhamos a boneca Amiguinha. Mal podíamos com ela. No ano seguinte, minha mãe Noel comprou uma boneca bem pequena, que eu adorei, para que nos acostumássemos com o simples também.
Tive assim, uma infância tranqüila e muito feliz.
Na adolescência, mudamos para o Espinheiro devido às inúmeras cheias que sofremos. Só vim entender o drama das enchentes quando cresci porque lá em casa era sempre uma festa: sobe tudo lá pro primeiro andar, vamos ver como está o rio. E assim, enfrentávamos o vai-e-vem das águas do rio e a limpeza de nossa casa que sempre aguardava nosso retorno.
Vivi momentos mágicos no P2 do meu prédio novo. A turma toda descia depois do jantar e ficava conversando até as 22h, pois as luzes se apagavam e precisávamos subir. Comecei a namorar e fui muito amada por meu príncipe encantado. Eu achava que a vida era perfeita e que nada de mal poderia acontecer em meu conto de fadas. Estudava, namorava, passeava, saía com minha família, curtia meu irmão jogando bola. Fiz vestibular, entrei na faculdade, tirei carteira de motorista. E aí, acabou-se o meu período da vida de ser guiada. A partir deste momento, quem dirigiu a minha vida fui eu.
E o que fiz dela?

12.7.09

Continuo me encantando com o Sagrado que se expressa na natureza. Talvez, não consiga abandonar o meu olhar de criança descobrindo o mundo.
Estava deitada na cama, ouvindo a música do balanço das palhas dos coqueiros que circundam minha casa. De repente, o sol foi mudando seu caminho e percebi um dourado lindo iluminando as folhas verdes que dançavam ao vento. Pensei:
- É tudo perfeito, mesmo!
Hoje, já em minha outra cama, vi o sol acordar e me deslumbrei com o azul do céu e suas nuvens brancas que refletiam uma luz fluorescente. Os pássaros saudavam o novo dia com uma sinfonia maravilhosa. Mais uma vez:
- É tudo perfeito, mesmo!
E esse espetáculo se renova a cada dia. Por que não o observamos? Por que não aproveitamos o dia de hoje para ser feliz?
Só temos o presente como presente da vida. Meu pai estava bonzinho e, de repente, teve um AVC. Mais nunca foi o mesmo. Minha mãe jantou com a gente, foi dormir e não acordou jamais. Minha tia foi ao banheiro, sentou-se no sofá e permaneceu em coma por dois anos, deitada em uma cama.
Quase sempre, pela nossa dificuldade em lidar com a morte e com a finitude, jogamos o que queremos fazer de verdade embaixo do tapete e fingimos que vamos ter todo o tempo do mundo para, um dia, quem sabe, realizarmos nossos sonhos.
Quando é que vamos dizer ‘te amo’ ou ‘me perdoe’, ou ainda, ‘senti tanto sua falta’?
Às vezes, deixamos a dor e o rancor tomarem conta de nossas vidas e perdemos pelo caminho pessoas e coisas que nos são importantes. O tempo é agora. Não sabemos quando nossa amiga, a Morte, vai passar e nos arrematar para seu rio de águas profundas.
Costumo dizer que São Pedro, na hora de nossa passagem pela porta do céu, vai perdoar tudo: gaia, assassinato, roubo, preguiça. Só uma coisa ele não vai admitir: não termos desenvolvido, aqui na Terra, o Dom que nos foi confiado pelo Sagrado. Poxa, é um pedaço do Universo que vem com cada um que nasce para que esse taco evolua e, com isso, o Todo também fique mais harmonioso. A responsabilidade é grande. Ficamos arrumando desculpas para esconder de nós mesmos essa grandeza e dizemos:
- Amanhã eu começo, o novo projeto, o novo amor, o novo trabalho, a nova alimentação, a nova vida.
E se não houver amanhã?
O Mistério nos rodeia o tempo todo e nos cobra a Entrega completa à vida. Precisamos confiar e deixar que a Energia Cósmica faça através de nós o seu trabalho no mundo, como diz Sandra Celano, expressando uma idéia que adoro repetir.
Se não aprendemos pelo amor, com certeza, vamos aprender pela dor. Quando a dor chega e nos derruba, no lugar de procurar entendê-la e descobrir qual lição nos está dando, jogamo-nos na cama, enfiando a cabeça nos travesseiros, como a avestruz enfia a cabeça na areia, e tomamos mil remédios para fugir da realidade que nós mesmas construímos em nossas vidas. Mas o efeito das drogas não dura para sempre e, quando passa, temos que encarar novamente nossa droga de vida.
Cada novo dia é um convite para que nos entreguemos à vida e nos deslumbremos com a beleza de cada detalhe que foi planejado para que tudo no Universo flua em harmonia.
Eu, com meus limites, tenho tentado me jogar na vida com a confiança de uma criança: se Ela me chama, eu vou. Nem sempre é fácil. Às vezes, estou sentada em minha zona de conforto e Ela me tira dessa posição, empurrando-me para novos começos. E lá vou eu, de novo, enfrentar novos desafios, aprender coisas diferentes e perceber detalhes lindo que ainda se mantinham escondidos para mim.
Quando for o momento de minha passagem para o lado de lá, irei tranqüila. Vivi a vida que quis, não vou carregar na bagagem o remorso por não ter seguido minha Alma. Mas, confesso, levarei em meu coração uma enorme saudade desse planeta maravilhoso que me acolheu em sua plenitude, revelando-me seus segredos mais secretos. Lembrarei para sempre do calor do sol sobre meu corpo, da delícia que é um banho de mar em águas mornas, da paciência das árvores seculares de ouvirem nossos sonhos, do canto dos pássaros e da beleza de seus vôos de liberdade, do doce sabor da jabuticaba em minha boca, da meladeira ao chupar um caroço de manga sentada em um banco de madeira.
Também sentirei saudade das minhas coisas. Como é delicioso aguar o jardim e sentir a grama verde sob meus pés! Como é fantástico descobrir o mundo invisível dos insetos, escondidos por entre as flores e os frutos que enchem de cor e perfume aquele pedaço sagrado de terra. Não irei mais tomar suco de laranja, café com pão, leite com sustagem. Não sentirei mais a água bem quente na hora do banho. Não ouvirei mais música, nem poderei cantar para meus filhos dormirem. Não tomarei chá com meu pai. Não lerei meus livros mágicos. Não farei mais amor com minha outra metade. Tudo isso ficará por aqui. Levarei comigo, aí, sim, as lembranças de todos esses momentos amados que seguirão para sempre marcados em minha Alma.
Partirei sem medo, pois fui inteira, sem excluir nada de mim. E, de verdade, se alguém contasse para mim a história da vida que vivi, eu iria querer experimentar a vida contada, cheia de altos e baixos, de fins e começos, mas cheia de amor, alegria e coragem.
Será este texto apenas uma reflexão ou será uma despedida?
Acredito tanto em sinais...