15.10.08

Sandálias

Estava eu numa cidade do interior pernambucano quando vi um grupo de meninos brincando pelos muros. Falei com um deles sobre o perigo de se machucar. Viram que eu estava com um broche brilhante e me pediram de presente. Começamos a conversar.
- Por que você está sem sandália? – perguntei.
- Porque a mãe dele morreu. – respondeu um amigo.
Ele, simplesmente, baixou o olhar.
- Como assim, porque a mãe dele morreu? Sua mãe morreu como?
- Morreu afogada no açude.
- Ah!
De novo, outro amigo fez uma intervenção.
- Ela morreu porque quis.
Aquele silêncio no grupo e meu coração cada vez mais apertado.
Continuou, então, a história.
- Era doente dos nervos.
- E você vai à escola descalço? – perguntei perplexa.
- A professora deixa, respondeu outro.
Dirigi-me ao menino, que continuava cabisbaixo e perguntei:
- E seu pai?
- Ele tá preso porque brigou com um homem de arma e matou ele.
Outro silêncio. Comecei a perguntar o que ele pediria a uma fada se ela aparecesse ali, naquele momento.
- Uma sandália, um sapato e uma roupa. Ah! Se pudesse, um carrinho vermelho.
Nessa hora os outros meninos começaram a fazer pedidos também. Argumentei que quem mais precisava ali era aquele que não tinha mãe, como eles mesmos haviam me dito. Então, meu novo amigo levantou o olhar e disse com coragem:
- A mãe dele também é doente dos nervos. E a dele também.
Sentimento de pertencer a uma tribo, ainda que dos excluídos. Não estava mais só.
Comecei a brincar perguntando que história era aquela de tantas mães doentes dos nervos. Contei que tinha filhos e que brigava com os meus, que perdia a paciência algumas vezes e que isso não significava que fosse doente dos nervos. Responderam que não era assim que as deles agiam e que eram doentes dos nervos mesmo. Conversamos mais um pouco, abraçamo-nos na despedida e fui embora sem fala.
Quanta coisa dita numa única frase:
- Porque a mãe dele morreu.
Aqui estão caracterizados o abandono, a falta de cuidado, a ausência de um ninho. Mora com a avó em um distrito dessa cidadezinha, em condições mínimas de sobrevivência, com o auxílio do bolsa-escola.
Visitei sua casa no outro dia e levei uma sandália para colocar quando fosse à escola. Conheci sua família, vi sua realidade, dura realidade. Sorriu quando nos encontramos.
No Dia das Crianças levei o que havia pedido à fada. Fui com meus filhos, meu marido. Apresentei-lhe minha família. Quis que ali fosse um encontro de duas pessoas, com histórias diferentes, mas duas pessoas, marcadas pela singularidade característica dos humanos. Não quis uma estatística, não quis um projeto governamental, não quis explicações sócio-econômicas, antropológicas, psicológicas. Não quis análise de dados sobre a violência ou sobre a exclusão social, menino negro, pobre, órfão de mãe, analfabeto, nordestino, pai preso, apelidos pejorativos, dificuldades de aprendizagem. Não quis pensar no futuro. Prendi-me ao instante, ao encontro dos nossos olhares que diziam muito mais que as palavras. Conectei-me ao enorme sentimento amoroso que emanava de meu peito. Não era um amor meu, era algo do Sagrado e eu apenas estava sendo canal.
De verdade, acredito em fadas, duendes, gnomos, príncipes encantados. Acredito em magia, acredito que o belo transforma e que o encantamento é o caminho para a esperança e para a fé na Vida.
Sonho com um mundo em que as crianças também acreditem em magia e que os adultos acreditem em milagres.

13.10.08

Se Maomé não vai à montanha...























Neste final de semana levamos livros para a feira de Lagoa dos Gatos. Foi uma experiência e tanto. O trabalho começou bem antes, com a separação dos livros, o transporte para a barraca logo cedinho, as bolhas de sabão. As pessoas se aproximavam um pouco desconfiadas, pegavam os livros, perguntavam se tinham que pagar alguma coisa. Quando descobriam que poderiam levar quanto livros quisessem e de graça, o entusiasmo se revelava no brilho do olhar. Apareceram crianças, idosos, jovens, professoras. “Tem livro de poesia? Eu queria um que me mostrasse todos os países do mundo. Tem Paulo Coelho? Quero de Cinderela. Tem de Psicologia? Adoro Paulo Freire. Posso levar muitos para trabalhar com meus alunos em sala de aula? Queria um de Matemática. Tem de Biologia? Adoro romances. Já li Machado de Assis, tem aí?”
De repente, nossa barraca estava lotada e mal conseguíamos atender todo mundo. Anotávamos nomes e livros e só.
Deu certo, muito certo, pois emprestamos mais de 200 livros. Uma criança que estava ajudando o pai na banca da feira veio um montão de vezes e pegava mais livros e lia lá mesmo e pegava mais. Algumas mães vieram devolver os livros com medo que seus filhos os rasgassem. Insistimos que levassem os livros e que não teria problema se isso acontecesse, pois as crianças precisariam entrar em contato com o mundo da leitura.
Saímos exaustos e felizes, comprometendo-nos a voltar dentro de um mês.
À tarde, mais cultura. Exibimos filmes da Turma da Mônica numa escola pública de uma comunidade carente. Conversamos sobre a vida na cidade grande e a vida no campo e descobrimos que as crianças preferiam a tranqüilidade da vida numa cidade do interior. Distribuímos bombons, pipoca e refrigerante. Brinquedos e dudus na saída.
Organizamos também a exposição de fotografias Então, é Primavera noutra escola pública do município, oportunizando o contato de jovens com o mundo da fotografia.
O ritmo das atividades foi intenso, trabalhamos muito, mas voltamos realizados e conscientes de que apenas começamos a caminhar, pois a jornada é longa e há muito ainda por ser feito.
Valeu!