26.12.06

Caduquices?

Venho notando que ando meio esquisita de uns tempos pra cá. Comecei a fazer faxina na casa, na casa de praia, no consultório, nos livros, nas pastas – até nas de mails. Reorganizei os altares que tenho e que agora são três, já que tenho três espaços sagrados (casa, praia e consultório). Revi agendas antigas, cadernos de anotações. Até que fiquei satisfeita, pois não encontrei muita coisa que deixei de fazer e, sim, muita coisa que gostei de ter realizado.
Notei também que os aparelhos eletrônicos com os quais me relaciono começaram a demonstrar vida própria, pois não desligavam quando eu repetidamente apertava o OFF e só ligavam quando queriam, por mais que eu apertasse o ON.
E, como a Emília de Lobato, danei-me a pensar umas coisas malucas a partir do que venho lendo, vendo, ouvindo e experienciando.
Descobri, por exemplo, que a medicina ocidental trata do meu corpo físico, justamente aquele que vai ser comido pelas baratas quando eu morrer e que não vai mais me ser necessário com saúde do lado de lá! Acredito que a doença é uma linguagem da alma e que quando alguma coisa não vai bem na harmonização de tudo que somos nós, essa desarmonia se manifesta no corpo biológico. Para que o fluxo de energia siga seu rumo natural, faz-se necessária uma intervenção na causa deste 'entupimento do fluxo' que pode estar em qualquer um dos nossos corpos energéticos. Então, resolvi que se adoecer gravemente irei tratar de cuidar dos corpos que levarei quando da minha passagem para uma outra dimensão. Aliás, acho que já comecei a cuidar, pois tenho vivenciado muita coisa boa e saudável, como yoga, meditação, caminhadas, banhos de mar, dengo, carinho, sopas e chás, além de boa música e boa leitura.
Outra coisa que me peguei pensando foi sobre o processo de individuação de Jung, a harmonização dos chakras e o caminho das Deusas de Roger Woolger. Quando chegamos à Terra, precisamos da energia do corpo físico e a sobrevivência é o nosso objetivo. Ártemis é a nossa aliada. Passamos para a adolescência e Afrodite nos rege, pois a sexualidade vai ser a energia predominante, já que precisamos garantir a espécie. Sentimos a necessidade de conquistar o mundo, pois a nossa casa e o nosso corpo já não nos cabem. Hera nos ajuda a conquistar o poder, reinando absoluta na casa e fora dela. Aprendemos que precisamos colocar amor no que fazemos, pois só com os planos da razão ficamos no vazio e nesse difícil processo temos as bênçãos de Deméter. Ficamos tão sabidas que sentimos vontade de sair pelo mundo compartilhando tudo que aprendemos e Atena nos ajuda a enfrentar o mundo, mostrando-nos inteira. A maturidade vai dando lugar à velhice e aprendemos que não adianta conquistarmos o mundo senão conquistarmos o nosso interior e começamos um profundo mergulho na nossa alma. Ninguém melhor que Perséfone para nos guiar nesta viagem ao mundo das trevas. Para as que conseguem a iluminação, a Grande Deusa, Gaia, manifesta-se plenamente e temos a possibilidade de conexão direta com o Sagrado e podemos partir para outras moradas.
Por último, ouvi uma palestra em que falava que o número 666 seria o padrão energético da Terra e que o 999 seria o do 'Céu'. Pensei no 69 que conhecemos como uma posição do jogo sexual e me dei conta que é exatamente o símbolo do TAO, que é o Todo, o yin-yang, o encontro do feminino com o masculino. Fiquei encantada! Lembrei-me que quando nascemos o céu nos dá o mapa, as dicas, as orientações do que iremos viver aqui e que devem existir muitos outros sistemas simbólicos que nos acompanham e nos guiam na nossa jornada. Pena que não temos olhos para vê-los.
Claro que não canalizei tudo isso. Tenho aprendido com pessoas especiais, com autores maravilhosos, com poetas, com artistas, com mestres disfarçados de gente comum e, principalmente, com a vida.
Acho que sabem que estou fazendo um curso para liberar a criatividade na minha produção escrita. Então, fica a pergunta: ficção ou realidade?

Revendo

Fim de ano, comemorações de Natal, época de rever amigos. Fui a uma festa na casa de um primo que é casado com uma amiga minha. Festa só para casais, quatro, ao todo. A casa estava linda e o menu impecável. Recebem muito bem. Homens na varanda, bebendo. Mulheres na sala, conversando. Essa turma tem mais de vinte anos de relacionamento, então dá para entender os clubes do Bolinha e da Luluzinha. Algumas piadas machistas. Risos. Dvds com show dos Titãs, Marisa Monte e Zeca Pagodinho. Vinho, champanhe, cerveja, uísque. Claro que dá para dançar um pouco depois disso tudo. Uma viagem ao passado é inevitável. As mulheres relembram amores antigos e se perguntam como estarão. Fala-se em xamãs, na kudaline (‘cú de quem?’, pergunta um menos entendido no assunto). Brinca-se com a história do xamã ensinar a subir a cobra por trás, pela coluna. Está todo mundo feliz, afinal a amizade que os une é antiga e sobrevive aos atropelos da vida.
Sou deste mundo?

20.12.06

Sem saída

Becos, ruelas, esgoto a céu aberto, cheiro de merda no ar. Lá vou eu entrando, junto com mais duas profissionais, num mundo que não conheço. Não sinto medo. Talvez tenha dissociado ou, talvez, tenha apenas me entregado a alguma força superior. O desejo de transformar aquela realidade me faz seguir adiante. Estou dentro do ......, um dos locais mais violentos de Recife. Um anjo da comunidade nos guia. Mostra-nos a beira da maré. O chão é coberto por cascalho de conchas de mariscos. É lindíssimo e penso como ficaria lindo na minha casa de praia. Ridículo! Palafitas, botes, homens e mulheres misturados com a lama. Cadê Josué? Caranguejo, unha-de-véio, sururu. Aquelas pessoas tiram da lama a vida e também na lama encontram a morte.
Um grupo de jovens diretamente ligados à violência chegam à casa onde estamos. Começamos a conversar e enquanto esperamos pelo resto da turma começam a fazer maracatu com o próprio corpo, batendo com as palmas das mãos nos joelhos e na ‘caixa dos peitos’. Fico em transe. Que cena surrealista! Jovens que roubam, matam, traficam, fazendo música com alegria, doçura e entrega! Lembro-me do Sagrado que afirma que sempre há luz nas trevas. Seus filhos, amigos e parentes circulam entre nós. Muitas pessoas se encontram sentadas nos becos, apenas conversando porque não têm o que fazer. E o poder público com isso? Dando aumento de quase 100% para os deputados. Porra! Puta que pariu! País de corno esse.
Os outros vão chegando, depois de ‘dar uma’, pois ficam ansiosos para conversar com a gente. Lanchamos juntos. Falamos sobre os próximos passos do trabalho. Comentam que é legal cada vez que a gente se encontra porque ‘pega mais intimidade’. Vamos ficando amigos.
Perguntamos o que poderíamos fazer - a gente e eles - para mudar aquilo ali. Respondem que têm o futebol e que precisam de coletes. No dia do jogo ninguém se droga, ninguém ‘trabalha’, todo mundo só curte a pelada. Topamos ajudá-los nisso.
O nosso anjo mostra seus poemas e diz que sonha com um carrinho de mão cheio de livros para circular pela comunidade. Topamos ajudar nisso também. Sugerimos filmes. Sugerem apenas conversar mais vezes com a gente.
Abraçamo-nos na despedida.
Saio de lá com o coração sangrando, a alma partida e os olhos cheinhos de lágrimas. Isso também sou eu, caralho!!! O que posso fazer? Continuar sentada na sala de meu apartamento, com a boca escancarada e cheia de dentes, esperando a morte chegar, como disse o sábio Raul Seixas? Fingir que não tenho nada a ver com essa guerra nojenta que ocorre todos os dias na minha cidade? Condenar quando assaltam e matam os filhos da burguesia?
E eles têm saída?

8.12.06

Estranha no Ninho

Era uma pessoa estranha naquele lugar. Sozinha à mesa, trazia nas mãos um livro. Lia, observava coisas e pessoas ao redor, voltava a ler alheia ao movimento e ao barulho.
Placas luminosas anunciavam nomes de lojas e lanchonetes. Crianças corriam de um lado para outro e soltavam gritos de satisfação. Mulheres, cheias de sacolas, iam às compras para preencher o vazio que sentiam. Homens tomavam chope e espantavam suas tristezas, usando a máscara do caçador – agora as presas eram as mulheres.
Nada disso tirava sua atenção da leitura. Devia sentir frio, pois usava um casaquinho por cima da roupa.
De repente, fechou o livro, puxou sua bolsa para perto de si, tirou os óculos, arriou a cabeça sobre os braços na mesa, fechou os olhos e adormeceu.
Fiquei ali, ainda sem acreditar no que estava vendo, observando a cena inédita: uma mulher dormindo numa praça de alimentação de um shopping center na época do Natal! Recuperei-me do susto e senti inveja da serenidade daquele rosto. Resolvi velar seu sono. Talvez fosse um anjo e anjos precisavam de paz.

4.12.06

Afrodite nos inspira

Preparou-se com afinco para ler o livro de sua amiga sobre mulheres comuns. O texto, porém, seria sobre a Deusa Afrodite. Então, banho gostoso, creme de mel, hidratante, perfume francês, batom vermelho, camisola de seda. Incensos e velas. Uma boa música também seria fundamental. Afinal, Afrodite merecia.
Deitou-se na cama macia e se deliciou com a sabedoria de sua Deusa. De verdade, ela entendia a Alma feminina. Lembrou-se das inúmeras confidências de suas amigas que falavam sobre amor, sobre fazer amor, sobre carinho e respeito.
Se os homens pudessem ouvir as palavras trocadas ao redor de uma mesa ou de uma fogueira, compreenderiam que as mulheres são tão diferentes deles em seus anseios mais secretos. E, aí, quem sabe, as diferenças não seriam vistas como ‘algo inferior’, mas seriam aceitas como a riqueza da diversidade.

3.12.06

Medo

Quero me convencer que tudo acabou. Meus sonhos me traem e minhas lágrimas teimam em sair por você, apenas por você.
Minha saudade é para você.
Meu melhor sorriso é para você.
Minha alegria é para você.
Se sinto que minha vida pulsa por você, por que não me mexo? O que me impede de sair pelo mundo gritando o meu amor? O que me impede de olhar para você cara a cara? Por que não luto pela chance de viver esta história de amor?
Percebo quando me chama. Meu coração começa a derreter bem devagar. Um calor gostoso vai tomando conta do meu corpo. Um risinho surge no canto da boca. Meus olhos brilham mais que a mais forte das estrelas.
Do que tenho medo?
Da vida.

Gaiolas de Ouro


Fazia tempo que não andava a pé pelas ruas. O dia estava lindo com o céu sem nuvens. O brilho do sol deixava douradas todas as plantas do parque. Pássaros embalavam com sua melodia as brincadeiras das crianças. O perfume das flores era tão forte que a deixava um pouco zonza.
Sentou-se num banco e começou a olhar o movimento. Adultos faziam exercícios físicos em busca da saúde perfeita, do corpo perfeito. Existiria corpo perfeito? Como se poderia ter um único modelo para o belo?
De repente, olhando para as varandas dos prédios luxuosos, viu uma cheia de gaiolas de passarinho. Ficou com um coração partido. Aquilo era uma tortura. Prender passarinhos e tirar-lhes a liberdade de voar, tendo como paisagem um parque cheio de árvores e de outras aves com o direito de ir e vir quando desejassem! Isso era uma tortura. Seu coração chorou e lágrimas caíram de seus olhos.
Lembrou, então, que muitas pessoas também vivem assim, presas em gaiolas de ouro – casamentos, empregos, profissões, modelos de beleza -, tendo como tentações a imensidão do mundo, as inúmeras possibilidades de serem livres e felizes. Só que existe uma diferença entre pessoas e passarinhos presos em gaiolas: aquelas podem abri-las.
Agora quem chorou foi sua Alma.

30.11.06

Tiremos a pele de asno

Ao completar oito anos, minha mãe me deu um livro de Contos de Perrault, traduzido por Monteiro Lobato. Tenho este livro até hoje e a história que li quando criança está transcrita nesta reflexão amorosa que trago agora. É amorosa mesmo, porque não posso falar de contos de fadas sem ser pela linguagem do amor, do amor de mãe-filha, do amor do adormecer ouvindo histórias através da voz amada, do amor que me confortava e me dava coragem para enfrentar os meus medos e sonhos ao acreditar que se tinha dado certo para as personagens daria certo para mim também. É o amor e a segurança de um ninho de amor e a crença de que a vida é bela e no final tudo termina bem.
Foi assim a minha relação inicial com os livros, com as histórias encantadas e esse amor me acompanhou a vida toda, fazendo com que eu adorasse ler, com uma paixão intensa, emocionando-me ao entrar numa livraria, deliciando-me ao folhear as páginas de um livro, libertando-me através das palavras mágicas de uma história ou de um poema.
Com esse mesmo amor, contei histórias para os meus filhos. Histórias de livros, histórias de boca, histórias ouvidas e repetidas no aconchego de minha cama, onde a plenitude se instalava ao vê-los de pijamas, mamadeiras e fraldas, e a minha voz repetia o mesmo ritual de amor que vivi quando a criança ainda era eu. Assim, eu estava dizendo a cada um deles um ‘eu amo você, a vida é bela, tudo vai dar certo e você vai ser feliz para sempre’. Ainda hoje, de vez em quando, repetimos esse mesmo ritual e, magicamente, ficamos completamente preenchidos de amor.
Quando criança, ganhei uma máquina de datilografia rosa-choque. Foi a glória. Ali iniciei a minha carreira de escritora, aprendendo a fazer casas de livros para outras pessoas morarem nelas e nelas sonharem, como conta Lygia Fagundes. Hoje, o notebook ocupou o lugar da minha máquina – que está num lugar de honra no quarto de minha filha – e as histórias não estão apenas nas folhas de papel, mas estão espalhadas pelo mundo através das páginas da internet. Os textos ainda são científicos, em sua maioria, mas, aos poucos, os dedos vão tomando vida própria e toda minha alma vai entrando em transe e a história começa... Era uma vez...
Escolhi Pele de Asno como o conto de fadas da minha vida. Além de representar um vínculo amoroso com minha mãe, uma viagem ao tempo seguro da infância, descobri, já adulta, que tive que colocar uma pele de asno para encobrir a minha beleza, o meu potencial criativo, a minha inteligência, a minha liderança, enfim, o meu modo singular de ser no mundo e de brilhar. Não é nada fácil para uma mulher, numa sociedade patriarcal, assumi a sua força. Enfrentei muita exclusão, solidão e isolamento porque era muito inteligente, porque só tirava dez, porque inventava formas incríveis de apresentar meus trabalhos, porque era sempre eleita representante de classe, porque era bem-feita, porque minha família era uma delícia (apesar das dores), porque meu namorado me amava, porque minha poodle era linda, porque me comunicava com o coração. A inveja foi um sentimento muito forte e destrutivo no meu caminhar e fiz o que pude para esconder do mundo e das pessoas que eu amava, que faziam parte do meu círculo pessoal de amizades, o meu brilho, com medo delas fazerem a mesma coisa que as colegas da escola e, depois, do trabalho, usando-me quando precisavam dos meus conhecimentos, do meu cérebro, e me ridicularizando e isolando, machucando o meu coração e a minha alma.
Foi tão forte esse sentimento de exclusão e de uso, de não ser vista e amada como uma pessoa inteira, que troquei de colégio só para não ser mais reconhecida apenas pela minha inteligência. Quantas vezes não fiquei calada para não dar a resposta certa e ser mais uma vez excluída do grupo, desejando com toda a minha essência ser apenas ‘medíocre’!! Quantas vezes não rebatia alguns elogios que surgiram mais tarde nas minhas relações profissionais, sempre apontando algum defeito, para que não fosse mais uma vez rejeitada!!
Depois de muito chão de vida – hoje, aos quarenta e poucos anos – e de muita terapia, pude tirar minha pele de asno, sem medos e sem precisar fugir, e comecei a assumir o meu potencial e as minhas dificuldades com muita tranqüilidade. Como me comunico muito bem, tenho arrasado em palestras, aulas, programas de televisão, artigos e até já consegui colocar na internet um site (www.caleidoscopio.psc.br), onde compartilho o meu caminhar.
Trabalhando com mulheres em oficinas que têm o objetivo de resgate do feminino, observo que muitas delas também usam suas peles de asnos para esconderem o seu potencial, pois se sentem ameaçadas pelos seus maridos, seus filhos e até pelas suas amigas. Que esse texto possa ajudar cada uma delas a tirar a pele de asno e assumir o seu destino de brilho e felicidade!!

Minha cidade

Como seria viver numa cidade que não fosse banhada pelas águas? Como seria viver longe do mar de águas mornas? Como seria viver longe dos rios e dos manguezais? Nada de caranguejo, guaiamum, agulha frita, sururu, camarão, moqueca de peixe. Nada de água de coco, de lama de coco. Nada de lama de gente. Pontes, morros, planícies. Frevo, maracatu. Bondes e casarões antigos. Cores - de casas, de frutas, de flores, de árvores. Pipoqueiro, quebra-queixo, algodão-doce, cuscuz na porta. Macaxeiiiiiiiiiiira, quem não come cheira. Corais, peixes, arraias, mergulhos no fundo do mar. O luar refletido nas águas.
Uma beleza que sempre me encanta. Pontes que unem ilhas e, principalmente, pessoas.

26.11.06

Meu encontro com o Recife Antigo

Esse negócio de ser escritora é bem mais complicado do que eu pensava. Na última quinta-feira, tivemos a aula da Oficina de Textos, coordenada por Antônio Guinho, no Recife Antigo. A ordem era andar pelas ruas, escrever o que quisesse e depois voltar para compartilhar tudo com a turma, numa mesa do bar que serve o melhor e mais tradicional maltado da cidade.
Lá fui eu, de prancheta na mão, sob sol escaldante, observar o Recife Antigo e torná-lo meu, através do meu encontro com ele.
Andei pelas ruas, parei em praças, entrei em museus. Registrei tudo com frases curtas, observações, anotações sobre sensações – como cheiro de xixi ou cheiro da água da fonte -, e divagações para outros tempos naquele mesmo espaço geográfico.
Viajei... Vi-me naqueles casarões, com vestidos longos e sombrinhas, passeando pelas ruas e indo tomar o bonde – ainda há trilhos!! – para encontrar-me com meu amado.
As pedras das ruas ainda cantam canções dos carnavais de outrora. O fiteiro ainda conhece as damas da vida que prestam seus serviços nos sobrados antigos para homens que não querem ser vistos na sua procura por um pouco de fantasia. Hoje, a cidade tenta esconder este segredo escondendo as janelas com tijolos. A modernidade tenta se impor àquele recanto de histórias com empresas de tecnologia. Mas a cidade resiste. Homens conversam na calçada e já planejam o próximo carnaval, como se fizessem um esforço para manter a época de alegria, beleza e liberdade dos bons tempos e lutassem contra a decadência que teima em se instalar.
Árvores antigas e enormes palmeiras têm muito que contar. Lembrei-me de meus tempos de crianças quando brincava saltando pelas raízes expostas das árvores. Os lampiões nas ruas me remetem à pergunta: será que já foram de gás?
O batuque do maracatu favorece um transe. De repente, uma mulher bate no meu braço e pergunta:
- Essa menina, você sabe me informar onde é que tira xerox aqui?
A voz me soa longe e me força a voltar para o aqui e o agora. Acho tão estranho. Onde estou?
- Não tenho a mínima idéia, respondo.
- Muito obrigada, diz ela e sai procurando por outra pessoa que possa lhe dar a informação.
Percebo que no Recife Antigo de ‘agora’, há pessoas que trabalham, que vivem o seu corre-corre e que já não se encantam com o cenário esplendoroso dos casarões e ruas antigos e com a suave brisa do mar que sopra para aliviar o calor. No entanto, há pessoas que viajam milhares de quilômetros para conhecer aquele pedaço de história e que ficam encantados com tamanha beleza, tentando fotografar cada detalhe para garantir a lembrança caso a memória não lhes seja fiel. Como antigamente, quando portugueses, holandeses, africanos e brasileiros conviviam juntos, a cidade ainda acolhe a diversidade. O sol brilha intensamente para todos.
Dentre todas essas pessoas, uma me chama a atenção. Como eu, ele também tem um bloco de papel e uma caneta nas mãos. Olha, olha e registra o seu olhar no papel, não com palavras ou desenhos, mas com rabiscos. Fico um tempo só olhando para aquele homem de chapéu, já idoso, com orelhas e bigodes grandes e um rosto cheio de rugas, marcas de sua história. Segura o lápis com leveza e arqueia a sobrancelha toda vez que vai colocar traços no papel. Encanto-me com sua doçura. Lembra um beija-flor. Não tenho coragem de invadir sua ingenuidade.
Vejo que já está na hora do maltado e da conversa com a turma no bar. Estou feliz. Sentamo-nos à calçada, na mesa do bar, sob a sombra das árvores, e começamos a leitura dos textos. Um menino negro, que toma conta dos carros, coloca as mãos na cintura e fica em pé ao nosso lado para ouvir nossas histórias. Cada uma das escritoras criou uma história, menos eu.
Fico me perguntando: serei eu realmente uma escritora?
Isso eu ainda não sei, mas sei que consigo encantar-me com a vida, pois foi vida, apenas vida, o que encontrei por lá.

23.11.06

Mudar? posso.

Há um mês dei uma guinada geral em minha vida. A princípio, pensei que fosse uma mudança apenas na minha vida profissional. Ledo engano. Mudei por dentro e, então, mudou tudo.
Tomei a decisão de deixar de ser psicóloga para me dedicar à vida de escritora. Percebi que tinha um longo caminho a percorrer como escritora e queria ter tempo para ler, escrever, navegar na internet, viver a vida em outro ritmo.
Com muita dor, fui avisando meus clientes, fui vivendo o luto com eles e encerrei as atividades de consultório. A psicologia me deu muito. Compartilhando dores e sonhos de outras pessoas, aprendi que bem/mal são duas faces da mesma moeda. Entendi que tudo tem um porquê e que o ser humano é maravilhoso em sua diversidade. Não existe uma única forma, um único modelo para a gente ser feliz.
Por que tomei esta decisão neste momento de minha vida? Num mergulho lá no fundo de minha alma descobri que durante minha vida fiquei sempre nos bastidores, sendo a boazinha, pensando nos outros antes de pensar em mim, priorizando a responsabilidade. Para desempenhar o papel de cuidadora, na sociedade pós-moderna, nada melhor do que ser psicóloga. Minha poltrona era meu grande útero e minha sala me escondia da vida.
Agora, depois de muita terapia, posso assumir meus desejos e, principalmente, meu discurso. Por isso, percebo hoje, permiti-me fazer a Oficina de Textos. Mas psicóloga não pode sair por aí contando seus segredos, pois funciona apenas como um espelho de seus clientes. Como eles se sentiriam ao lerem minhas dores, meus sonhos? Então, compreendi que precisava ter total liberdade para escrever sobre mim, para assumir a minha autoria. Veio a ruptura. Vida nova.
Tenho tido tempo para tudo que imaginei. Leio, escrevo, pesquiso, vou a livrarias. Caminho, tomo banho de mar, medito, ouço música, acendo incenso, bebo chá. Converso com amigas. Fico mais com minha família. Amo e amo e amo.
Quando deixei de ser analista de sistemas para ser psicóloga, pensei que nada poderia ser mais difícil que a psicologia. Encontrei algo mais difícil ainda: ser escritora. Estou apenas engatinhando e não tenho certeza se um dia serei boa escritora, como fui boa analista e boa psicóloga. Mas gosto da possibilidade de numa mesma vida poder viver várias vidas. E sem precisar morrer e reencarnar. Mágico, não?

Escritura


Lembro-me de que estava lendo meus mails e vi que tinha um de Guinho. Sempre gosto das coisas que ele envia e fiquei contente. Quando comecei a lê-lo não registrei todas as informações, mas guardei no meu coração que o Guinho-Zen iria dar uma oficina para incentivar a criatividade e a produção de textos. Pensei: a este eu confiaria a minha aprendizagem. Aprendemos por amor e respeito a alguém e eu coloco o Guinho-Zen no lugar de mestre. Enviei para todos da minha lista, mas não sabia se iria fazer: choque de horário? dinheiro? saco para mais um curso? Mas aquilo ficou lá no meu coração. Novos mails me lembrando, imprimi o texto para ver se dava conta do corpo da informação. Até que uma maiga mandou um mail me pedindo para reenviar o de Guinho, pois ela iria fazer o curso. Era o que eu precisava. Comprei caderno da Fada Sininho, lápis, caneta e vim toda feliz para minha primeira aula que me possibilitaria o meu encontro com a minha Alma, com a minha vocação. Adorei tudo. O espaço, a turma – eu tinha colegas de 80 e 70 anos! uau! que mulheres lindas! Saí em êxtase. Minha boca não fechava. Em casa, tomei vinho, fiz camarão e parecia uma menina pequena contando as histórias fantásticas de Djanira à mesa para toda minha família.
Fico esperando a chegada da quinta-feira. Ninguém me force a faltar aula pois viro uma fera!
Acho que o meu sonho de escrever como uma coisa sagrada está sendo construído a cada dia.
Espero que ao final da Oficina eu esteja escrevendo com a Alma, ou como nos ensinou o Guinho-Zen, sendo tomada pela escritura.

22.11.06

Marcando o passo


Meu nome é Carolina. Tenho 50 anos.
Gosto muito de aproveitar a vida e de vivê-la intensamente, pois tenho um problema de nascença no coração e desde pequenininha uso marcapasso – ele pode falhar a qualquer momento...
Devido aos problemas de saúde tive que ficar longos períodos hospitalizada. Hoje, procuro muito ficar em contato com a natureza. Nado, corro, dirijo barcos, faço trilhas, mergulho. Curto esportes radicais, com muita adrenalina. É onde disfarço o medo da morte e me conecto com a vida.
Experienciar sempre coisas diferentes, conhecer lugares e pessoas novas. Viajo sempre de moto, que é a minha paixão.
A alegria é meu carro-chefe e danço e canto muito bem.
Encontrei na arte uma forma de trabalhar e expressar minhas emoções: pinto, esculpo, talho. Também adoro bordar, costurar, fazer tricô e crochê.
Faço sempre o que tenho vontade. Sou uma mulher livre. Aproveito todas as minhas respirações, todo o meu pulsar. Não sei se verei o amanhecer do dia de amanhã. Tenho sede de viver.

20.11.06

Ilza, uma mulher verdadeira

Ilza é uma mulher de sessenta anos de idade (acha ela, pois não tem a data correta no seu registro de nascimento), negra, analfabeta, nascida sob o poder de Plutão (que agora foi rebaixado a planeta-anão) em Escorpião. Ilza é viúva, mãe de cinco filhos. O marido morreu afogado num piquenique. Um de seus filhos, Mala Véia, morreu bêbado em pleno carnaval. O filho que ficou, Negão, herdou a cachaça do pai e ainda quebra tudo quando bebe. Ilza é magra, baixa e tem todo tipo de doença – coração crescido pelos banhos de rio, pernas inchadas pelas varizes, dores nos rins, olho piticando, hanseníase (mas já ficou boa). Adora falar sobre elas, as doenças. Já comeu tijolo depois de virar uma garrafa de conhaque, mas hoje é evangélica e foi a religião que salvou sua vida. Cozinha muito bem e tem mãos de fadas para plantas. Quando criança, vivia na roça, cortando cana, mas queria mesmo era dançar. E sua alegria e sua paixão pela vida foram fortes o suficiente para levá-la a fugir de casa e ir trabalhar em casa de família, ainda criança. Seu maior talento é ser alcoviteira. Sabe ajeitar um cantinho de amor, criar um clima, aconselhar casais. Mulher batalhadora, grande cuidadora e curadora. Uma verdadeira xamoa! Mas não quer mais saber das coisas que sabia, pois, agora, é crente e essas coisas são coisas do diabo. Afinal, como ela mesma não se cansa de repetir, ‘só Jesus Cristo salva’.
A vida de Ilza é cheia de histórias interessantes. Quando era mais jovem, mas já com os cinco filhos, soube que seu companheiro, Caçula, tinha engravidado uma moça de menor e que seria obrigado a casa com ela de papel passado. Ele nada disse para Ilza e ela ficou só aguardando o que iria acontecer. Mas não ficou de braços cruzados.
No dia do casamento, organizou um ambiente de trabalhos espirituais, no momento em que ele foi para o cartório. Colocou velas espalhadas pelo chão de sua sala, jogou ervas, fumo e cachaça em cima da mesa. Pegou uma peixeira e também colocou em cima da mesa. Fez uma sacola com roupas para os meninos e ela. Separou uma bolsa com dinheiro. Deixou a porta da cozinha aberta e um táxi esperando. Os meninos ficaram arrumados e no quarto.
Então, começou as suas orações. Pediu, com fé, pelo seu casamento, pelo seu amor, pelos seus filhos. Fez seus pactos. E rezou e rezou e jurou que se ele se casasse, quando entrasse em casa ela o mataria com a peixeira, pegaria os meninos, as roupas e o dinheiro e sairia pela porta da cozinha, fugindo no táxi para umas terras lá na sua cidade do interior, onde ninguém iria achá-la.
Ilza ouviu o barulho de um carro chegando e seu coração quase parou. Foi até a calçada, com a peixeira nas costas, e viu quando Caçula chegou todo feliz e gritando “Ela desistiu na hora, meu amor. Ela desistiu na hora”. E a abraçou cheio de amor. Lágrimas de gratidão vieram-lhe aos olhos. Mandou-o embora para avisar a sua mãe – queria tempo para arrumar o que havia espalhado pela sala.
Entrou correndo, guardou a peixeira, mandou o táxi embora, limpou tudo e chorou.

18.11.06

Pobre menina


Era uma vez uma menina que morava numa casinha pequena no meio de uma floresta. Vivia com seu pai e seus dois irmãos. Sua mãe já tinha morrido. A menina, que era a mais velha dos três irmãos, acordava muito cedo e trabalhava o dia todo cuidando da comida e da limpeza da casa. Sua irmã era muito preguiçosa e gostava de passear pela floresta, indo sempre para o lago para poder se ver refletida nele. Seu irmão ainda era muito pequeno e não podia ajudar nos trabalhos da casa, mas a sua alegria deixava todos com um sorriso no rosto.
A menina também cuidava do pai, que era doente, das plantas e dos animais que moravam na casa – um cachorro e dois pássaros. Todos os dias, logo cedo, ia buscar água na fonte e lenha no meio da floresta. Preparava a comida, lavava as roupas, arrumava a casa. Mal tinha tempo para um banho e para descansar um pouco. Às vezes, quando estava muito cansada, chorava baixinho para que ninguém notasse. Sentia-se muito sozinha e sonhava com um colo, onde pudesse descansar e ter alguém para também cuidar dela.
Sua pele estava seca, seus cabelos sempre em desalinho. Suas roupas eram velhas e remendadas, pois o dinheiro era pouco e seu pai precisava de remédios, seu irmão precisava de livros para ir à escola e sua irmã gastava muito com roupas novas, já que vivia esperando por um belo príncipe que iria tirá-la daquela situação.
Existia, porém, um segredo que a menina não contava para ninguém: ela conseguia conversar com as plantas e com os animais, ouvia o que eles diziam e eles também ouviam e entendiam o que ela dizia e até adivinhavam o que não dizia, mas sentia.
Quando o sol ia baixando na linha do horizonte, preparando-se para descansar, e a lua surgia com todo o seu brilho, a menina corria para o seu local preferido na floresta, o galho de uma mangueira, e se sentava lá apreciando o espetáculo da natureza. As estrelas do céu brilhavam tanto e piscavam tanto que se transformavam numa linda sinfonia, música que só a menina ouvia. Depois deste momento só seu, a menina voltava para casa com novas forças para enfrentar a sua difícil vida.
Num certo dia, sua irmã a seguiu, pois sempre ficava curiosa para saber o porquê de a menina voltar para casa tão feliz quando ia para a floresta ver a lua nascer. Ficou escondida atrás das árvores e ouviu sua irmã conversando com os seres da natureza. Ficou morrendo de inveja e tramou um plano para acabar com aquela alegria toda.
Saiu correndo e disse que a menina estava ficando louca, que a tinha visto com demônios, falando sozinha no meio da floresta. A notícia logo se espalhou pela aldeia. Vizinhos vieram ver a menina louca que falava com os animais e com as plantas.
A pobre menina não conseguia compreender porque as pessoas a estavam chamando de louca e reafirmava que compreendia todos os seres da natureza.
O chefe da aldeia, com medo que a loucura se espalhasse por todas as outras mulheres, resolveu acabar com o poder dos demônios e queimou a menina numa enorme fogueira, clamando para que os deuses do bem vencessem os demônios do mal. Nessa hora, o espírito de sua mãe veio e a levou nos braços para o céu.O pai e o irmão da menina ficaram tão tristes e com tantas saudades que morreram logo depois. A irmã invejosa ficou feliz, esperando pelo seu belo príncipe.

17.11.06

Pode uma mulher de bob ser feliz?


Mulher feliz é aquela com bob na cabeça, calça de cotton, peitos grandes, bunda grande, barriga grande e um largo sorriso no rosto.
Sabe cozinhar uma cabidela como ninguém e adora ficar à beira do fogão preparando uma comidinha gostosa para o maridão, enquanto ele toma uma cerveja gelada sentado no sofá da sala, assistindo ao jogo do seu time na televisão.
Samba e enlouquece o marido de tesão quando sacode seu corpo para um lado e para outro no ritmo quente da música. Delicia-se ao ouvi-lo dizer ‘venha cá, minha gostosona’.
Nada de lipo, nada de plástica, nada de botox. Nada de discutir a relação.
Goza e goza e goza. E, isso tudo, sem ajuda do analista.

14.11.06

Namastê!

Entendo que o conhecimento xamânico é um conhecimento contemporâneo, pois como L. Strauss, acredito que a ciência ocidental não explica tudo: há a arte, a poesia e os mitos. O xamã reencanta a ciência quando faz ciência trabalhando com uma percepção ampliada da realidade.
Estou buscando essa forma de compreender o Universo. Não consegui ainda integrar na minha subjetividade tudo que vivenciei através do conhecimento xamânico.
Autores renomados fundamentam minhas experiências: Jung, L. Strauss, Morin e tantos outros. Meu cotidiano respalda o que me dizem os xamãs. A minha prática clínica buscando a cura espiritual traz-me uma nova forma de fazer terapia.
Como integrar tudo isso numa ciência que insiste num ideal inalcançável de restrita objetividade? O que fazer?
Talvez a resposta esteja na simplicidade e na sabedoria de Francisco de Assis:
Doce é sentir em meu coração
Humildemente vai nascendo o amor
Doce é saber, não estou sozinha
Sou uma parte de uma imensa vida
Que generosa reluz em torno a mim
Imenso Dom do teu amor sem fim
O céu nos deste e as estrelas claras
Nosso irmão sol, nossa irmã a lua
Nossa mãe terra com frutos, campos, flores
O fogo e o vento, o ar e a água pura
Fonte de vida de tua criatura
Imenso Dom do teu amor sem fim
Imenso Dom do teu amor sem fim!!!


Entender que o somos todos Uno, que “há muito mais coisas entre o céu e a terra do que possa imaginar nossa vã filosofia”, ou ainda, “que o essencial é invisível aos olhos” não é uma tarefa fácil.
Lembro-me que certa vez estava realizando um mergulho com cilindro e observei que a roupa de meu companheiro de mergulho tinha uma faixa vermelha. À medida que descíamos, o vermelho da faixa desapareceu e se tornou cinza. No momento da subida, a faixa voltou a ficar vermelha. Onde está a verdadeira realidade, objetiva e observável? Numa outra ocasião, estava numa praia distante dos centros urbanos e houve uma longa interrupção no fornecimento de energia elétrica. O céu ficou maravilhoso, completamente cheio de estrelas que me hipnotizavam e capturavam o meu olhar e a minha alma. Depois de certo tempo, o fornecimento da ‘luz’ foi normalizado e não vi mais as estrelas, mas elas ainda estavam lá. Mais uma vez, a pergunta, ‘o que é a realidade?’.
Às vezes as pessoas questionam se isso tudo que os xamãs falam e fazem não é balela, enganação, uma tentativa de ganhar dinheiro explorando a ignorância das pessoas, ou ainda, uma magia negra, onde buscam apenas poder. Talvez, a partir do paradigma que predomina na sociedade ocidental, esses argumentos encontrassem alguma ressonância. Porém, não é assim que sinto intuitivamente dentro do meu coração, nem foi dessa forma que percebi nos momentos de minhas experiências com os xamãs. Além disso, minha vida não é mais a mesma, a minha compreensão de mundo não é mais a mesma, eu não sou mais a mesma.
Namastê!

13.11.06

Trocando de Lugar

Era uma vez um peixinho muito lindo e brilhante que vivia no fundo de um mar de águas muito limpas e transparentes, tão transparentes que dava para ver o céu, a lua, o sol, as estrelas e os pássaros a voarem.
Então, o peixinho ficou com muita vontade de saber como era a vida lá no céu e todo dia dizia:
- Ah! Como eu queria ser um pássaro para poder ver a lua de perto, sentir o vento batendo no meu rosto e ser livre para conhecer outros lugares.
Perto da praia, vivia um lindo passarinho amarelo que voava de um lado para o outro do mar e ficava encantado com a vida que existia no fundo dele. Eram tantos peixinhos, plantas e animaizinhos diferentes que ele vivia dizendo:
- Ah! Como eu queria ser um peixinho para poder ver a vida do fundo do mar bem de perto e conhecer todas aquelas criaturinhas interessantes.
Numa noite de lua cheia, diante de pedidos tão insistentes, uma linda fada resolveu realizar os desejos dos dois animais. Chamou-os e disse:
- Vou atender os pedidos de vocês dois. Você, lindo peixinho brilhante, viverá por um dia no corpo do lindo passarinho amarelo. E você, lindo pássaro amarelo, viverá por um dia no corpo do lindo peixinho brilhante. Amanhã, nessa mesma hora, nesse mesmo lugar, estaremos aqui reunidos e cada um de vocês voltará a ser o que era.
Os dois ficaram radiantes de alegria. Finalmente iriam realizar os seus sonhos de conhecerem coisas novas e diferentes.
E, com a sua varinha mágica balançando suavemente no ar, a linda fadinha falou:
- Simssalabim!! Bim!! Bimm! Realizem-se seus desejos.
No mesmo instante os dois trocaram de lugar e começaram a realizar os seus sonhos.
O novo peixinho-que-era-passarinho começou a nadar para fundo do mar. Conheceu de perto os cavalos-marinho, ouviu o canto das baleias, brincou com os golfinhos, foi até as escuras cavernas do fundo do mar, alimentou-se de plantas, brincou de esconde-esconde nos corais. Encantou-se com tudo.
Já o passarinho-que-era-peixinho ficou encantado com a liberdade de voar. Voava para um lado, para o outro. Subia bem alto e mergulhava bem rápido num vôo só. Sentiu o cheiro das flores, comeu o fruto das árvores, sentiu o calor do sol a aquecer-lhe as asas, brincou com outros animais. Também encantou-se com tudo.
Quando começou a anoitecer, de repente, o peixinho-que-era-passarinho foi vendo de longe aquele clarão no céu. Ficou assustado e começou a pensar: “De onde vem aquela forte luz?”.
No mesmo instante, o passarinho-que-era-peixinho viu por trás das nuvens um brilho amarelo muito forte. Ficou com medo e pensou: “Será que o mar está pegando fogo?”.
Então, conforme haviam combinado, a fada os trouxe para a beira da praia para trocarem de novo de lugar. Quando chegaram lá descobriram que o brilho amarelo era a luz de uma velha conhecida de ambos: a lua. Só que nunca a haviam visto de onde a estavam vendo agora! O peixinho nunca havia visto a lua a partir do céu e o passarinho nunca havia visto a lua a partir do mar. Os dois riram muito com a descoberta.
A fada, antes de fazer sua mágica, perguntou aos seus amigos sonhadores o que haviam achado da experiência. Os dois concordaram que havia sido muito bom, que tinha aprendido muito, mas que gostavam mais de ser do seu próprio jeito, de viver no seu próprio local, pois assim já eram muito felizes. Então, a linda fadinha fez:
- Simssalabim!! Bim!! Bimm! Que cada coisa assuma seu lugar e seja feliz para sempre!!!

Escolhas


Às vezes, fico pensando
Na grande ilusão que é a realidade.

Quantos mundos paralelos
Continuam a existir,
A partir de cada escolha que fazemos.

Para onde vai a energia
Da opção que não se tornou realidade?

Sonho Real


Quando sonho acordada,
A minha alma sai
Em busca de liberdade,
Livrando-me das amarras da realidade.

Lá, na fantasia,
Tudo é possível.
Fico leve, inteira e feliz.
Um dia, quem sabe,
Esse meu sonho se tornará
Realidade.

O que de mim realmente é meu?


Ler a última carta de Olga ao seu amor é algo que não pode me deixar imune. Tanta força, tanta poesia, tanto sentido dado à vida, só podem provocar muitas lágrimas em meus olhos.
Lágrimas pela dor de Olga, de Carlos e de Anita. Lágrimas pelas minhas dores, hoje também já choradas. Lembrei-me de perdas tão significativas: Príncipe Encantado, meu eterno amor; o fim do meu casamento (dor física que me dilacerava o corpo); o sofrimento de minha filha com nossa separação; o derrame de papai e a dor constante por tê-lo e não o ter mais; a lembrança da rigidez e da fragilidade de mamãe; o som do seu último ronco, a sua ausência e a presença do cuscuz na mesa; a impotência de titia diante de tão difícil final de vida e, a mais transformadora de todas, a visão do esqueleto de mamãe. Ao olhar aquele conjunto impessoal de ossos, fiquei como que lhe procurando, procurando a sua inteligência, procurando onde estava o seu amor por mim, procurando o colo que tantas vezes me acolheu e me protegeu, procurando sua voz que me contava histórias. Conviver com papai sem poder compartilhar sua alegria, seu carinho, seus conselhos, suas idéias, vendo-lhe os olhos quase mortos, parados, sem brilho, num mutismo forçado pelas forças do cérebro. Onde estará sua vitalidade? Onde estará o espírito de titia, num corpo em coma há tanto tempo? Por onde andará a minha mãe?
Questões como essas me atormentam. Aos 40 e poucos anos a força da vida se impõe com crueldade. O que é a vida? O que é ser ‘humano’? Como funciona o universo? O que é Deus? Perguntas pessoais também surgem das vísceras. Momento de prestação de contas. Quem sou eu? O que vim fazer aqui? O que é ser mãe? O que é ser esposa? E a mais difícil de todas: como quero viver daqui pra frente?
As máscaras vão caindo. Já compreendo o poder da cultura na formação dos papéis que exerço e busco minha essência. O que de mim realmente é meu?
Busca por conhecer. Tesão por aprender. Vazio no sentir. Meu currículo profissional ficando cada vez mais amplo. Lendo-o, não me reconheço. Sinto-o como sendo de uma outra que não sou eu. Libriana, com a missão de construir o equilíbrio. Como, se vivo atormentada pelas polaridades?!
Lá, bem dentro de mim, uma força enorme, um desejo de liberdade, de conhecer o mundo, de viajar, de trocar experiências com pessoas diferentes. “Viver é pulsar, é ser canal para que a energia cósmica faça, através de nós, o seu trabalho no mundo”, já me ensinou Sandra Celano. Ser canal da energia cósmica... tanta responsabilidade. Inteligência brilhante, enorme poder espiritual, pessoas ao redor buscando pela energia cósmica. E eu? Cansada, solitária, procurando por um colo, por alguém que me diga “Deita aqui, descansa, que eu vou cuidar de você”. Príncipe... que saudades de sua alma, do seu olhar.
O mundo me chamando para o trabalho, a cabeça fervilhando com novos projetos, novas idéias – sempre ajudando muitas pessoas – e o coração querendo ficar quietinho, só curtindo a viagem para dentro de mim. Tantos livros na estante com diálogos a serem estabelecidos. Sinto que estou construindo uma nova forma de ver o mundo. O que devo fazer?
Meus filhos reclamam a minha presença, chegando a sugerir pagarem uma consulta para poderem conversar sozinhos comigo. As atividades profissionais me impedem de tomar chá com meu pai. Aulas à noite me tiram de casa e permitem que meus filhos fiquem horas no computador, simulando matanças em jogos virtuais. Apenas solidão. O que quero fazer? Para que trabalhar tanto? Notebook, roupa da moda, casa de campo, carro novo; boas escolas, inglês, violão e esportes. A que preço? Isso tudo realmente é essencial para viver?
Vejo a cena do meu cotidiano secreto. Levanto-me, tomo um copo de suco de laranja, vou cuidar do jardim e da horta, dou umas voltas, tomo café, leio os jornais, ouço o canto dos pássaros e o maravilhoso som do lar, posso até ouvir música e meditar um pouco; escrevo, converso com pessoas, entro na internet, leio; almoço, acompanho as tarefas da escola, leio junto com as crianças, brincamos, vemos um bom filme, comendo pipoca e brigadeiro. Um chá com papai. Um banho, uma rede, uma revista; talvez uma ida à cozinha, o jantar; contemplo o céu, descubro estrelas com luneta, espero pela visita de um disco voador, tomo um bom vinho, danço, converso, conto muitas histórias e ouço outras tantas. Antes de ir deitar, passo pelos quartos de meus filhos e sorrio com o sono de anjos, pedindo-lhes a proteção divina. Namoro com calma e durmo feliz, pé-com-pé, agradecendo a Deus pela felicidade da simplicidade. De vez em quando, visitas à livraria Cultura ou viagens para recarregar as energias. Jogo tarô, entendo de florais e astrologia. Sou doutora em sabedoria, encanto-me e encanto com os contos de fadas. Chegam os netos e percebo o ciclo da vida. Chega a hora da grande viagem e parto em paz, sabendo que vivi com consciência cada momento. Missão cumprida. Agora, novos desafios.
Essa é uma possibilidade de roteiro. Existem outras. Posso continuar vivendo essa farsa, desempenhando os papéis certinhos, trabalhando muito, ganhando dinheiro, sendo esquizofrênica. Posso, também, viajar pelo mundo fotografando tudo, entrevistando mulheres, tentando descobrir os mistérios do universo feminino. Há ainda a criação de espaços lúdicos para as crianças viverem mais felizes e construírem um mundo de paz e harmonia. O compromisso com a educação pode se expressar através de livros, sites, conferências e formação continuada. Vou para o ‘mundo’ ou fico em ‘casa’?
Como fazer? O que fazer? Só não posso trair minha alma.

“Vá aonde o seu corpo e a sua alma desejam ir. Quando você sentir que é por aí, mantenha-se firme no caminho, e não deixa ninguém desviá-lo dele.” (Campbell)

TOM-TOM-TOM-TUM


Mais uma vez o som ritmado: TOM-TOM-TOM-TUM. Meu coração bate acelerado, a boca fica seca. Seriam os extraterrestres tentando fazer contato? Por que comigo? O som surge em certos dias, sempre na mesma hora. Medo e mistério envolvem minha alma. O som vai ficando cada vez mais forte, TOM-TOM-TOM-TUM. Será agora? De repente:
- Olha o gás! Quem vai querer? TOM-TOM-TOM-TUM

Reverenciando uma história de amor


Tive uma experiência muito mágica nesta semana: ajudei uma amiga, de mais de setenta anos, a queimar, numa fogueira à beira do mar, papéis que registraram seus cinqüenta anos de vida com seu marido que acabara de falecer.
Caminhamos lentamente para a praia com a sacola cheia de cartas, cartões, livros, agendas, álbum de casamento. Ali tínhamos declarações de amor, pedidos de perdão, promessas não cumpridas, sonhos que se tornaram realidade.
Como boa bruxa, eu levava incenso, fósforo, querosene, pastilhas. Cavamos um enorme buraco na areia, como um grande útero na terra, e fomos colocando uma a uma das recordações amorosas. O mar cantava a sua canção, lembrando-nos a todo o momento da impermanência da vida, no ir e vir de suas ondas. O sol nos cercava com sua luz e seu calor, ajudando-nos a manter o fogo aceso. O vento soprava sua forte brisa e aliviava o nosso calor.
Minha amiga começou uma linda oração, pedindo paz para o seu amado. Acendemos o fogo e fomos ajudando, com pedaços de pau, para que todos os papéis fossem queimados. Esse ritual durou umas três horas. Queimamos nossos dedos no fogo, queimamos nossos corpos com o sol. O vento ficou mais forte e espalhou cinzas pela beira da praia. A maré subiu e foi chegando mais perto da nossa fogueira. Enquanto eu cobria o buraco com areia da praia, minha amiga fazia sua prece de agradecimento. Abraçamo-nos e voltamos em silêncio.

Somos amigas há quase trinta anos. Conheci-a como mãe de um grande amigo meu quando eu ainda era uma ingênua adolescente de quinze anos. Ela já era uma mulher casada, com cinco filhos, casa de praia, trabalho e um lar sempre cheio de amigos e alegria. Não imaginávamos o que a vida traria para nossas vidas nem que compartilharíamos este momento sagrado. Ela perdeu três dos seus filhos. Meu amigo, seu filho, e eu percorremos juntos estes trinta anos e sempre estivemos juntos nos nossos momentos difíceis. Perdi meu amor, separei-me, abortei, perdi minha mãe, meu pai teve um derrame. Ele quase se separa, sua mulher perdeu vários bebês, teve dificuldades financeiras. E a nossa amizade sempre viva. E agora, pude compartilhar com sua mãe, minha amiga, um dos momentos mais bonitos na vida de uma mulher: a reverência a seu amor. Aprendi muito e, lá no fundo da minha alma, senti uma certa inveja pela linda história de amor vivida por ela, pois, apesar de todas as barreiras, ela viveu sua vida ao lado de seu amor. Bonito, não?

Destino?


Resgatar a nossa essência, descobrir quem somos de verdade, não é uma coisa fácil. Ao mesmo tempo, fico pensando, como isso pode ser complicado se só pertencemos a nós mesmos!!
Noutro dia estava conversando com uma amiga e discutíamos sobre a possibilidade de existirem vidas passadas. Eu, por exemplo, lembro-me de ter encontrado há muito com uma das minhas amigas na época em que éramos donas de um puteiro (ou trabalhávamos lá?). Lembro-me, também, de ter sido bruxa e, provavelmente, queimada na fogueira. Esta vida de bruxa tem conseqüências que chegam até minha vida atual, pois não foi muito tranqüilo assumir o meu lado intuitivo e de curadora. Só para vocês terem uma idéia, mudei na semana da inscrição do vestibular o meu curso de Psicologia para Informática. Pode? Retomei o meu caminho depois de um tempo e com muito sofrimento, pois disfarcei ao máximo a minha loucura e os meus poderes ocultos, fazendo, inclusive, mestrado em Psicologia Cognitiva, numa tentativa frustrada de fazer valer a razão e o paradigma científico cartesiano.
Mas a Alma da gente fica sempre nos chamando para o nosso caminho, tentando fazer com que nos lembremos do que viemos fazer aqui neste planetinha azul chamado Terra. Então, conheci a Psicologia Transpessoal, o xamanismo, o budismo, os florais, a meditação, a yoga, e comecei, devargazinho, a me lembrar de coisas que eu achava que não sabia e fui ficando cada vez mais sabida nas coisas que tinham a ver com meus segredos. Já entendo que somos corpos energéticos, que existem centros de energia, os chakras, e que podemos trocar energia com o mundo. Posso influenciar a minha vida e o mundo. Isso dá medo porque nos alerta para nossa responsabilidade.
Escolhas. Possibilidades. Como vai ser o meu destino?

Mais uma, das muitas que sou


Hoje acordei feliz. O sol estava entrando pela janela do meu quarto, animando-me a enfrentar o dia com alegria.
Como todos os outros dias, hoje era um dia especial e eu faria tudo que estivesse com vontade de fazer. Levantei-me, tomei mel e água, voltei para o banheiro, fiz minha higiene pessoal, coloquei uma roupa confortável e fui para a beira da praia meditar. Nunca me acostumo com a beleza da natureza; sempre me encanto e me emociono. O vento no meu rosto, o canto dos pássaros, o barulho das ondas, o calor do sol. Qual a cor do mar? Fiquei lá, sentada, respirando apenas, por um tempo que não sei contar.
Hora do suco de vampiro!! Beterraba, cenoura, laranja, tomate. Pronta para a caminhada com Anuska e Hércules, meus fiéis companheiros de quatro patas. Um momento de encontro comigo. Os pés entrando na areia molhada, um tapete de águas-vivas brilhando ao sol. Aqui e ali, uma parada para pegar conchinhas ou para deixar as lavadeiras passarem.
Voltei para minha xícara de café e meu pão quentinho. Aguar o jardim. Colher flores e ervas cheirosas. E aí, começou o meu dia. Diante do computador, sentada na varanda, fechei os olhos, respirei e deixei fluir os movimentos dos dedos que foram construindo palavras, frases, textos e revelando a vida. Ausência de tempo e espaço. Só o sagrado.
Hora do almoço. Incensos, saladas, sucos e uma boa música. O balanço da rede embalou minha sesta, junto à Clarice. Acordei, fiz um pouco de ioga e, viva a disciplina, sentei-me ao computador outra vez. Internet, livrarias, blogs, livros e poemas inteiros num simples clicar. Um chá para acompanhar. Comecei a escrever novamente. De repente, a lua, saindo do mar, me disse que já era noite. Espriguicei-me, tomei um banho bem morninho e uma sopa quente. As notícias de um mundo distante chegaram-me pela tv. Escolhi um bom filme. Deitei-me ao relento e conversei com as estrelas, contando-lhes meus segredos, minhas saudades, meus amores. O sono chegou. A cama me chamou. Agora, estou aqui, tão feliz como acordei. No céu, não mais o sol; apenas a lua a embalar meus sonhos.

Louca, solta, fantasia


Saudade. Beijo. Tesão. Por quê? Como? Quando? Onde? O tempo não existe. Várias dimensões. Longe é um lugar que não existe. O espaço é aqui. O tempo é agora. Quero você. Não posso. Liberdade. Prisão. Onde estou? Quem sou? Cadê a morte que não chega?!! Quero a vida. Covardia. Um dia de chuva e o sol brilhando. O encontro do sol com a lua, fusão de opostos. Saudade dói. Sentir tão fortemente na carne algo que só acontece na imaginação, como?! Sua boca, seus olhos, sua respiração. É proibido. Socorro. Estou morrendo de desejo. Faz tanto tempo. Está tão adormecido. A serpente sempre acorda e só tem o caminho da subida. Velas, incensos, champanhe. Cetim, chocolate, morango. Que perfume! Que delícia! A música! O êxtase! A entrega! A morte! A vida! Sou.

Livros


Hoje li, de um fôlego só, um livro da Lígia Fagundes que fala sobra a sua relação com o livro. E aí fiquei pensando em como foi que a minha paixão por ele começou.
Nem lembro direito, mas sei que desde pequena ouvia minha mãe me contar histórias quando eu e minha irmã íamos dormir. Minha mãe também me contava as histórias da infância dela lá no interior e eu adorava imaginar aquela realidade tão distante de mim.
Meu pai também era um grande contador de causos e adorava ouvi-lo recontar as histórias do Pantaleão Pereira Peixoto – do Chico Anísio – e terminar a história perguntando ‘É mentira, Terta?’.
O primeiro livro que ganhei foi quando fiz oito anos e recebi um de Monteiro Lobato, com capa dura e o desenho do Gato de Botas na frente, cheio de contos de fadas. Adorei tudo. Abria-o e reabria-o não sei nem quantas vezes, deslizando meus dedos sobre suas páginas. Medo do Barba Azul, compaixão por Pele de Asno.
Mas eu sempre amei todo tipo de livro. Sentia uma alegria enorme quando ia comprar os livros do novo ano escolar. Aquele movimento nas livrarias – ah! que prazer entrar nelas, com aqueles livros, cadernos e lápis coloridos -, o cheiro bom de livro novo. Encapar com minha mãe os livros e cadernos com plástico de bolinhas vermelhas, aplicar um decalque de gatinhos – colocado num prato fundo com água e puxado delicadamente para não se partir. Depois eu consegui comprar uma maquininha que tinha uma fita dura e a gente marcava as letras nela fazendo os nomes que queria; aí tirava a tirinha de fita e, pronto, colava o nome no caderno, no livro. Ficava horas olhando as páginas dos livros que eu iria estudar naquele ano e amava esse ritual.
Fui crescendo e comecei a ir para casa de minha avó e de minha tia solteira e lia com uma avidez enorme o que achava por lá: José de Alencar, Machado de Assis (ela tinha as obras completas que hoje estão comigo), José Lins do Rego, Croni. Não gostei de José de Alencar; achei-o cansativo, monótono, complicado. Amei Machado de Assis e seu estilo direto, livre, sem muita complicação. Era louca para ler Mar Morto, de Jorge Amado, mas eu ainda era uma mocinha e não ficava bem para uma mocinha ler estas coisas.
Na escola eu chegava cedo e corria para a biblioteca. Lia fotonovela sobre vidas de santos – foi assim que me apaixonei por Francisco de Assis. Já no recreio, corria logo para lá e me encontrava com mundos maravilhosos. As amigas, porque naquela época o colégio de freiras só permitia a matrícula de mulheres – sempre me acharam estranha, solitária, mas, mal sabiam elas que solidão foi um sentimento que nunca me acompanhou quando estava com meus livros.
Ah! Momento mágico foi quando ganhei minha máquina de escrever laranja – ou rosa, segundo minha irmã. O barulho das teclas, a troca da fita, o vai-e-vem do papel. Estava me sentindo importante. Se tinha uma coisa que eu achava uma delícia era escrever com caneta Bic, azul, bem forte, em bloco de papel jornal (consegui comprar tudo isso novamente; será que agora me torno uma escritora?). Ousei escrever poemas num caderninho com caneta verde, estilo tinteiro, e enfeitar todas as folhas com folhas de parreiras de uva. Perdi tudo isso.
Eu lia de todo jeito, em todo canto. Programas preferidos: ir à livraria do aeroporto aos domingos – com os pais e irmãos -, ir a bancas de revista e comprar livros e revistas – com o namorado -, ou apenas olhar aquela maravilha toda.
Fui crescendo, o mundo foi mudando. Na primeira vez que entrei na Livro 7 quase enlouqueci de alegria. Perdi-me no tempo e no espaço e fiquei lá delirando com aquilo tudo. Depois surgiram os shoppings e as livrarias neles: Sodiler, Siciliano, Saraiva – que quase me arrebata de paixão com a sua última loja -. E o encanto da livraria para crianças, com livros e paredes de lobos, dragões, cavalos, príncipes e princesas, castelos, florestas, fadas e bruxas!!!!
Com a internet, qualquer livro que desejasse estava em minhas mãos. Foi uma fase de livros técnicos, com pouco espaço no coração para ler por ler. Num certo dia, recebi um mail avisando que a Livraria Cultura abriria uma filial em Recife. Quase morro de alegria! Preparei-me para a primeira visita com o mesmo sentimento que se sente quando se vai reencontrar um grande amor. Escolhi a roupa, desliguei o celular, coloquei um casaquinho para o caso de sentir frio, e fiquei sozinha para o meu encontro. Lembro-me que as lágrimas surgiram como uma cachoeira. Todos aqueles livros, revistas; toda aquela gente; eram adultos, crianças sentados por todo canto. Saí de lá cheia de livros e em êxtase. Depois levei os meus filhos e até hoje esta visita freqüente ainda é um dos meus momentos de gozo da vida, sozinha ou com minha família – mas devo confessar que prefiro ir sozinha, pois escolho um monte de livros, deixo alguns, tudo no meu ritmo. Quando estou triste ou precisando recarregar as energias, vou a uma livraria e volto, com sacolas cheias, toda feliz.
Quando terminei o meu mestrado fui lá na livraria e me dei de presente nada mais nada menos que Obra Poética de Fernando Pessoa. Que alegria! A partir daí, devargazinho, descobri alguns dos meus outros eus e venho voltando para os livros livremente. E agora, com medo e com prazer, mas completamente arrebatada – não é assim que ficamos quando estamos apaixonadas?! – voltei a escutar uma vozinha lá no coração que diz: “Vou começar a escrever. Vou ser escritora.”.

Ilusão


Noutro dia, um amigo meu me perguntou como era viver sem ler jornais, revistas, sem ver tv, sem acompanhar novelas, pois ele não via novelas e, às vezes, ficava sem papo nas rodas de conversas das noitadas.
Fiquei pensando nisso e me perguntando se o fato de não saber quem matou quem, quem roubou quem e outras ‘notícias’ que saem na mídia mudariam de forma significativa a minha vida. Aí, tomei um choque, pois experienciei Maya, o mundo das ilusões em que vivemos. Lembrei-me do meu primeiro dia de aula de Psicologia, quando voltei para casa achando o povo de lá todo doido, pois haviam dito que a realidade não existe. Imagine o susto que tomei, pois eu era Bacharel em Ciência da Computação e vivia cercada por zeros e uns, pela precisão dos computadores, pela lógica do se...então...
Hoje, quase vinte anos depois, acho engraçada a minha ingenuidade da época. Claro que a realidade, como fato determinado por si só, não existe!!! O que percebo é apenas a minha forma de entrar em contato com o fenômeno. Acredito que podemos criar a nossa ‘realidade’, acredito que a vida se apresenta como um mundo de possibilidades, de oportunidades de escolhas. Aprendi isso com os chamados místicos e, depois, com a física quântica e com a antropologia. Enfrento as escolhas que tenho que fazer todos os dias e, devo confessar, que às vezes tenho saudades da época em que a ignorância me deixava numa posição mais confortável e passiva perante a minha vida, já que no mundo das escolhas tenho que assumir a total responsabilidade pelos meus atos, pelos caminhos que percorro em minha vida. Compreendo a força dos pensamentos, das palavras e das atitudes.
Diante das encruzilhadas que a vida apresenta, qual o caminho a seguir? Consultemos o oráculo, pois tudo está interligado. A natureza é uma excelente fonte de sabedoria. A meditação possibilita um encontro consigo, a respiração coloca a divindade bem dentro da gente. São tantas as possibilidades de conexão com o sagrado da vida! Fica a pergunta: será que uma pessoa que vive no seio da floresta amazônica, onde só se chega de bote, sem luz, sem tv, sem jornais, tem uma vida mais limitada do que uma que viva em São Paulo, enfrentando os engarrafamentos, a poluição, as variações da bolsa, as filas nos shoppings centers?

Dia de bruxa


Hoje tive um dia de bruxa.
Levantei-me cedo, lavei minhas pedras com sal grosso e as coloquei para receber a energia do sol. Afinal, logo mais, faria minha iniciação no Tarô, oráculo sagrado que há tempo fascina a humanidade.
De repente, um amigo me avisou que estava ocorrendo um eclipse. Coisa que bruxa que se preze não pode perder. Desci correndo as escadas e olhei para o céu. Fiquei atabacada. Era verdade, a lua conseguiu ‘esconder’ o sol. Não sei por quanto tempo fiquei lá, só olhando para o céu. Depois fui dar uma volta na praça e procurei ficar sempre exposta à energia do sol e da lua para aproveitar bem o milagre que estava acontecendo. Sentei-me à beira de um laguinho e quase desmaiei emocionada, pois a lua e o sol estavam dentro da água, refletidos como que por pura magia. Fiquei com pena porque não estava com uma máquina fotográfica. Pensei: ‘não vou conseguir colocar em palavras a beleza deste momento’. Resolvi que iria apenas entregar-me à sacralidade do que estava vivendo.
A iniciação foi carregada de simbologia e de rituais. Isso tudo é tão distante dos cálculos e bits e bytes que estudei. O que pensariam meus colegas de faculdade sobre a minha forma atual de ver o mundo? Louca? Feliz!

Aiolá




Aiolá ouviu um barulho de água corrente e imaginou que ali perto existiria um rio. Saiu à sua procura e logo o achou. Parou encantada com a beleza do lugar: havia pássaros, flores, uma grama bem verde que se estendia até onde sua vista alcançava.
Tomou um susto quando percebeu, ao seu lado, um lobo branco com olhos penetrantes. O lobo puxou sua roupa com suavidade e Aiolá entendeu que estava tentando conduzi-la para algum ligar. Resolveu segui-lo.
O lobo, à sua frente, começou a caminhar em direção a uma estreita abertura que existia entre as árvores e que Aiolá não havia percebido antes. Para passar, teve que engatinhar já que o caminho ficava cada vez mais apertado. Estava ficando escuro e o coração de Aiolá começou a bater mais rápido.
De repente, o lobo parou diante da entrada de uma caverna e olhando bem dentro dos olhos de Aiolá, disse-lhe:
- Daqui para frente, você seguirá sozinha. – e saiu correndo por entre as árvores, sumindo num piscar de olhos.
Aiolá foi entrando com cuidado na caverna. Percebeu que era uma caverna muito grande. Havia pedras pendendo do teto e outras enormes saíam do chão. A luz entrava apenas pelas frestas e fazia um jogo de sombras que, algumas vezes, pareciam assustadoras.
Foi caminhando bem devagar, sentindo seu coração quase sair pela boca. Ouviu barulho de água caindo e pensou se não haveria uma cachoeira por ali. Procurou seguir o som e percebeu que a temperatura na caverna estava baixando, pois começou a sentir frio.
Aiolá parou extasiada diante de uma imensa cachoeira de águas cristalinas que caíam formando um lago tão tranqüilo que até parecia um espelho. Por um instante, sua respiração parou. Debruçou-se sobre o lago e ficou feliz por reconhecer-se na imagem refletida pelo espelho d’água do lago. Lá no topo da caverna havia uma pequena fresta, por onde a luz do sol conseguia entrar e os raios do sol deixavam o lago todo azul.
Aiolá ficou sentada, apreciando todo aquele espetáculo, por um longo tempo. Começou, então, a jogar pedrinhas para o centro do lago e notou que círculos iam se formando em sua superfície, como ondas. Fixou sua atenção neste movimento e, para usa surpresa, viu um campo verdejante no fundo do lago. Ficou tão intrigada com a imagem que resolveu mergulhar e descobrir o que havia lá embaixo. Quanto mais para o fundo ia, mais nítida a imagem ficava. Percebeu uma abertura no local em que a cachoeira se encontrava com o lago lá no fundo. Não resistiu e passou por ela, não sem antes fechar os olhos e pensar que tudo isto era uma loucura.
Quando abriu os olhos novamente, Aiolá pensou que havia morrido e que estava no Paraíso, pois o que viu era tão belo que ela só conseguia se lembrar das descrições de Céu que ouvia desde pequena. O vento soprava uma brisa suave com um doce perfume de flores. Havia flores coloridas, árvores frondosas espalhadas por um campo verde. O sol brilhava num céu muito azul com nuvens de algodão branco formando figuras de animais. Coelhos, corujas, pássaros – que enchiam o ar com o seu canto -, tatus, preguiças, formigas, águias, gatos, cachorros, peixes, aranhas, micos-leão-dourado – e todas as espécies de animais em extinção -, cavalos, bois, lobos, ursos, búfalos, leões, zebras, emas, cobras, galinhas, lagartas, abelhas, borboletas. Ah! Eram tantos e tantos.
Aiolá ficou ali, parada à beira do rio que cortava toda aquela paisagem. Sentiu fome e comeu uns morangos que estavam ao seu lado. Sentiu sede e se debruçou sobre o rio para beber um pouco d’água. Quando estava quase colocando a água na boca, surgiu ao seu lado um lindo cavalo marrom, com uma mancha branca entre os olhos, que lhe disse:
- Se a água estiver suja, não a beba.
Seguindo o conselho do cavalo, Aiolá olhou novamente para a água que estava em suas mãos, percebeu que estava bem limpa e a tomou de um gole só.
O cavalo, então, convidou-a para subir em suas costas. Aiolá aceitou o convite para a aventura e juntos saíram passeando por aquele lugar mágico. Divertiram-se muito e ela adorou sentir o vento batendo no seu rosto enquanto galopava com seu novo amigo.
Pararam em frente a uma casa de pedras brancas. Aiolá ouviu, pela primeira vez, vozes de outras pessoas. De dentro da casa saiu uma velha senhora vestindo uma longa túnica branca, com uma fita dourada na cintura; seus cabelos eram negros e estavam arrumados numa trança que pendia para um lado só. Ela sorriu para Aiolá e falou:
- São poucas as pessoas que conseguem chegar até aqui. Elas precisam confiar no que diz o coração e se entregar à aventura. Você conseguiu. Seja bem-vinda.
Aiolá olhou bem nos olhos daquela senhora e os achou ligeiramente familiares.
- Sim, nós já nos conhecemos há muito tempo. Foi o amor que nos conecta que nos uniu outra vez. – disse-lhe a velha mulher.
Aiolá não entendia muita coisa, mas estava muito emocionada, sentindo uma paz imensa em seu coração. Lágrimas caíam dos seus olhos.
A doce mulher continuou:
- Você não pode ficar aqui conosco porque sua casa é em outro lugar. Mas você já sabe o caminho e poderá voltar sempre que quiser.
Então, ela pegou uma corrente com um pingente em forma de coração que carregava em seu pescoço e a colocou no pescoço de Aiolá, dizendo:
- Leve-a com você. No pingente há um cacho dos meus cabelos e um cacho da crina do seu cavalo. Dessa forma, estaremos ao seu lado lá na sua morada e você poderá contar com a nossa ajuda sempre que precisar.
Ainda zonza com tudo que estava acontecendo, Aiolá perguntou:
- Como saberei o caminho que me trará até vocês?
- É fácil, respondeu a mulher. Pergunte-se: esse caminho tem a energia de amor do meu coração? Você saberá, então, o caminho a seguir. Agora vá.
A bondosa senhora beijou-a na testa e a ajudou a subir no cavalo. Seu amigo começou a galopar e Aiolá virou-se para dar adeus. Logo estavam na beira do rio.
- Obrigada, disse Aiolá, passando carinhosamente a mão na mancha branca do seu amigo cavalo.
- Agora vá, respondeu o cavalo.
Aiolá mergulhou no rio, passou pela abertura da cachoeira e saiu no lago da caverna. O sol ainda deixava a água azul com seus raios dourados. Saiu caminhando devagar, segurando o pingente no pescoço. Na saída da caverna encontrou o lobo branco. Mais uma vez ele olhou bem dentro de seus olhos e ela percebeu um leve sorriso em sua boca. O lobo a conduziu de volta pelo caminho apertado até a beira do rio.
Aiolá sentou-se e, ao olhar para o lado, percebeu que o lobo não estava mais ali. De novo, Aiolá estava apenas ouvindo a música do rio.

Como Aiolá, você poderá encontrar um animal que estará sempre ao seu lado, ajudando-o quando precisar. Quer tentar?
Sente-se ou deite-se numa posição confortável. Foque sua atenção em sua respiração, sentindo o ar entrando e saindo, entrando e saindo. Imagine agora que você está andando por um bosque e encontra uma passagem para algum lugar dentro da terra. Esta passagem pode ser do jeito que você imaginar: um buraco numa árvore, uma fechadura, um portal, uma caverna. Escolha a sua passagem e se imagine entrando nela e chegando a algum lugar, só seu. Perceba a paisagem, observe as suas sensações, veja como está se sentindo... Agora procure ver se você consegue enxergar algum animal. O animal que vai ser seu amigo deverá aparecer para você três vezes. Se você tiver dúvidas que este é o animal seu amigo, pergunte-lhe diretamente. Só pare quando encontrar o animal que será seu amigo. Ao encontrá-lo, imagine-se brincando com ele, fazendo coisas que lhe dêem prazer. Sinta-se feliz... Agora é hora de voltar. Peça ao seu novo amigo um conselho, um objeto que você traga para o seu mundo e que ligue você a ele. Qualquer coisa pode ser o objeto que simbolize a união de vocês dois. Receba este objeto e agradeça o presente a seu amigo. Dê adeus a seu amigo e comece o caminho de volta para casa, trazendo com você toda a paz e a alegria que vocês vivenciaram aí. Fixe novamente sua atenção em sua respiração, sentindo o ar entrando, saindo, entrando saindo... Quando sentir-se pronto, abra lentamente os olhos, levante-se e faça um desenho do animal seu amigo.

12.11.06

Professor babaca



Você já teve um professor daqueles bem chatos, que se acha o tal só por que sabe um pouco mais que você alguma coisa? Pois é, eu já tive um assim. Ele era insuportável. Andava pelos corredores da escola sem falar com os alunos. O peito era todo inchado. Careca, de cabelos brancos e aquele olhar de metido a besta. Era professor de matemática. Acho que escolheu matemática porque não sabia fazer uma coisa mais divertida. Dei graças a Deus quando saí da escola e fiquei livre dele.
Mas essa vida é muito engraçada mesmo. Desde pequena que eu vou sempre para uma praia passar o verão. A praia é linda. Tem conchinhas, o mar é bem calmo e os peixinhos ficam nadando junto da gente. Conheço cada pedacinho daquela praia e todas as suas manhas. É o meu paraíso aqui na Terra. Sabia que até um paraíso pode se transformar num inferno? Estava eu toda feliz, tomando banho de mar, brincando na areia quando chegou um grupo de pessoas. Olhei para elas e senti meu coração parar. Meu corpo ficou duro. Não acreditei no que estava vendo. O meu professor babaca estava lá, parado na minha frente. Fiquei com ódio. Como ele se atrevia a invadir a minha praia? Como ele poderia destruir o meu paraíso de liberdade e alegria? Recuperei-me do susto e fingi que não o havia visto. Uma outra colega minha, que também tinha sido aluna dele, foi falar com ele. O descarado teve a coragem de dizer que não conhecia a gente. Só depois de muita conversa foi que disse que se lembrava vagamente da nossa turma. Continua bobo e nojento, se achando o máximo. Eca.
Continuei a me divertir, pensando que ele não ia conseguir estragar o meu dia. Para ser sincera, dei as costas para ele. O mar foi enchendo e fui pegar onda com minha prancha. Quando estava lá, toda entusiasmada, percebi que meu professor estava em apuros no mar. O danado tinha caído num redemoinho e estava quase se afogando. Por que não usava toda a matemática dele para se salvar? Achei foi pouco. Gostinho de vingança. Mas não consegui deixá-lo lá. Nadei em sua direção, segurei-o pela mão e o ajudei a subir na minha prancha. Não sabia se tinha feito o certo. Se ele tivesse morrido, muitas outras crianças não passariam pelo que passei. Quando chegamos à areia já tinha um monte de gente para ajudá-lo. Voltei para o mar, para o meu paraíso, e fiquei pensando em como algumas pessoas são burras. Elas acham que ser sabido na vida é conhecer algumas fórmulas matemáticas, é decorar algumas coisas que outras pessoas dizem que todo mundo deve saber e ficam lá, arrotando informação. Aquele professor podia até saber muito de fórmulas, equações. Mas não sabia nada de mar. Será que sabia alguma coisa de vida?

Terrinha santa


Eu me lembro das festas de São Sebastião em Lagoa dos Gatos. Carro cheio, tudo resolvido em cima da hora. Jabuticabas em troncos todos cobertos de pontinhos pretos. Comia tudo, até os caroços. Muitas, muitas mangas. Jacas. Família reunida. Brincadeiras. Candeeiro. Banho frio. Meia parede.
Do terraço dava para ver a enorme lagoa com sua pedra no meio. Ah! Por falar em pedra, havia pedras por toda parte. Os cururus faziam a festa e sempre estavam à nossa frente quando íamos andando para a festa na cidade, ou, como dizíamos, na rua.
Tudo iluminado. Roda gigante. Jogos de azar. Música. Todo mundo arrumado. Alegria. A cada momento chegava um parente novo, alguém que era filho da prima que era tia de não sei quem.
No outro dia, pela manhã, cheiro de mato, montanhas verdinhas, banho no choque ou no açude, junto com os cavalos. Às vezes, banho na bica de tia Maria. As crianças brincavam de casinha, fazendo almoço de mato nas panelinhas de barro.
Muita cerveja, muito violão, muita cantoria. Assobios na boca da garrafa de cerveja, sendo ritmados pelo tocar de garfos ou facas.
Muita emoção, sempre.
Na volta, a música que nos marca até hoje:

“Eu vou partir
Não aceito desacato
Adeus terrinha santa
Minha Lagoa dos Gatos”

Transformações


Eu sinto que estou vivendo um período de grandes transformações. São tantas perguntas, tantos insigths. É como se estivesse num sonho e, de repente, tudo começasse a fazer sentido, tudo é possível.
A razão está em parafuso com tantos conceitos novos. A alma está plena, como se estivesse voltando para casa.
Sinto que meu mundo é construído a partir de minhas escolhas e sinto minha responsabilidade no meu jeito de ser feliz.
A razão cobra escolhas; a alma, entrega.
Pensar menos, sentir mais.
Sinto que estou viva.

Meu Graal


AR-FOGO-TERRA-ÁGUA, os quatro elementos, a Alquimia, o GRAAL. Será que meu GRAAL é escrever? Cadê Merlin, Morgana, Tara, Nossa Senhora? Onde está o mapa do Caminho?
Quero o fundo do mar, quero o reino de Netuno com seu silêncio, sua lentidão, suas cores. Quero passear de asa delta pelas estrelas e sorrir com o Pequeno Príncipe, se ele me tomar como amiga.
Quero ser semente de jabuticaba e explodir docemente por todo o tronco.
Quero o fogo da paixão a me queimar, a derreter meu coração e me deixar exausta e feliz.

A Deusa

Carolina acordou, tomou suco de laranja com mel e foi caminhar. Percebeu que a luz do dia estava diferente e ao olhar para o céu viu que estava havendo um eclipse, com a lua encobrindo parcialmente o sol. Sorriu ao ouvir a conversa de duas outras mulheres que estavam dando voltas ao redor da praça com negativos de filmes nas mãos para melhor observarem o eclipse, pois elas comentavam que todas as mulheres que estavam recebendo a energia daquele encontro – do sol com a lua – sofreriam uma transformação, já que a magia se instalaria em suas vidas. Seu corpo arrepiou-se e pensou que isso era coisa de bruxa, coisa que ela, definitivamente, não era. Ficou mais tranqüila ao se lembrar que era engenheira, que construía prédios e pontes no mundo concreto. Saiu da praça e foi para casa tomar banho e se preparar para mais um dia de trabalho no seu mundo real.
Foi dirigindo até a empresa, mas estava se sentindo muito estranha. O entusiasmo que sempre a fazia vibrar cada vez que ia para o trabalho não a acompanhava naquela manhã. O que estava acontecendo? Quando chegou ao estacionamento, parou o carro e ficou sem coragem para entrar. Sem saber explicar o porquê, deu meia volta e foi para a praia. Estacionou. Tirou os sapatos, soltou os cabelos, dobrou as calças e começou a caminhar em direção ao mar. Gostou de sentir o vento desmanchando seus cabelos. Gostou de sentir o calor do sol e de ouvir o barulho das ondas do mar. Sentou-se na areia e ficou brincando de fazer castelinhos. Por que estava se sentindo assim, tão feliz? Começou a andar, fazendo pressão na areia para que as marcas de seus pés ficassem no chão. Observou que várias pessoas também estavam na praia naquele momento. Será que não trabalhavam? Continuou sua caminhada e se encontrou com uma moça que vendia amuletos. Adorou um conjunto de brincos e anel. Quis experimentá-lo e, quando pegou o espelho para ver como estavam no seu rosto, tomou um susto. A imagem que apareceu no espelho não era a sua imagem atual, de mulher madura, mas a sua imagem de quando era apenas uma menininha. Voltou-se novamente para o espelho e lá estava a danada da menininha sorrindo, com seus olhos puxados. Piscou, piscou e pensou que aquilo só poderia ser uma alucinação, pois o sol estava muito quente. Respirou fundo e deu mais uma olhada no espelho na esperança de encontrar-se refletida nele. Nada. A menina continuava lá e começou a falar:
- Não tenha medo. Lembre-se, apenas. Liberte-me. E veja como será feliz.
Aquilo não poderia estar acontecendo, era uma loucura. Lembrou-se dos prédios, do concreto, dos amigos. Fechou os olhos e pensou ‘enlouqueci’. Quando abriu os olhos novamente Carolina percebeu que estava vendo os objetos de um jeito diferente. Via os objetos e uma luz em torno deles. Sentiu-se tonta e ia caindo quando foi amparada por uma mulher idosa que passeava pela praia. A mulher sentou-se ao seu lado e esperou que se refizesse do susto.
- Obrigada, disse Carolina. Não sei o que está acontecendo comigo. Passei mal. Estou vendo tudo de um jeito muito estranho. Acho que estou enlouquecendo.
A mulher idosa olhou bem nos olhos de Carolina, sorriu e falou:
- Bem-vinda!
Pensou que estava mesmo perdida, pois na situação em que se encontrava ainda se deparava com uma outra louca. O que deveria fazer?
Então, a mulher começou a falar:
- Hoje é um dia muito especial, pois houve o encontro do sol com a lua e a magia se espalhou pela Terra. Para nós, bruxas, este é o momento de sairmos por todos os cantos do mundo procurando por outras iguais a nós, já que nenhuma bruxa de verdade fica imune aos efeitos de um eclipse e, assim, podemos identificá-las com mais facilidade. Entendo sua confusão, pois você está despertando agora do longo sonho de Maya.
Por mais que achasse aquilo tudo uma loucura, algo bem dentro do coração de Carolina a deixava feliz. Ela só não sabia explicar o que era, mas era como se soubesse que o que aquela mulher estava falando era verdade. Virou-se para olhar novamente para os objetos ao seu redor e percebeu que ainda os via com uma luz os envolvendo. Começou a olhar para as pessoas que andavam pela praia e viu que tinham luzes diferentes em volta de seus corpos. Resolveu enfrentar a situação de frente e perguntou para a mulher idosa:
- Tenho a escolha de querer não ser uma bruxa?
O sorriso que recebeu de volta foi suficiente para compreender a resposta. Era uma bruxa. Não tinha escolha. Mas, o que isso significaria? O que mudaria em sua vida? Com seria continuar seu trabalho construindo prédios e pontes, batendo ponto, enfrentando engarrafamentos.
Será que as bruxas modernas voam de vassoura?
A mulher idosa convidou-a para um ritual que aconteceria à noite na praia e sugeriu que viesse com uma roupa branca. Pensou que as bruxas modernas eram realmente diferentes, pois em todos os filmes que já tinha visto sobre bruxas elas usavam roupas pretas. Como seria essa festa? Que tipos de mulheres encontraria por lá?
Agradeceu ao convite e voltou para seu carro enquanto a mulher idosa permanecia sentada à beira do mar. De volta ao mundo da engenheira dos concretos, sentiu-se mais segura. Dirigiu-se para casa, tomou um banho bem quente, ligou o som – escolheu músicas de Raul Seixas – e tentou relaxar. Adormeceu. Acordou ao final da tarde e resolveu que iria a tal festa das bruxas. Escolheu uma roupa branca que usava nas festas de final de ano. Colocou um perfume que lhe dava sorte e saiu pisando firme.
Quando chegou à praia ficou encantada com a beleza da festa e com a alegria das mulheres. Tochas acesas, flores coloridas, velas e incensos. Uma grande toalha branca cobria mesas cuidadosamente postas. As mulheres dançavam, tomavam vinho e sorriam muito.
A mulher idosa notou sua presença e veio recebê-la com um abraço carinhoso, dizendo:
- Fico feliz por você ter aceitado meu convite.
Em seguida, levou Carolina a uma roda de mulheres e lhe pediu que sentasse para ouvir histórias. Foram várias histórias maravilhosas, com todas se emocionando, chorando e rindo a cada novo conto.
Foi servido um ponche com maçãs e, em seguida, as mulheres se levantaram para dançar em círculo e homenagear a Grande Deusa, a energia feminina do Universo.
Carolina deixou-se envolver pela música e seguiu o seu ritmo, dançando com alegria.
Todas dançaram por muito tempo até que, exaustas, deitaram-se em esteiras espalhadas pelo areia da praia. Ficaram em silêncio, vendo a lua e as estrelas e ouvindo as ondas do mar.
Carolina apenas sentia o pulsar de seu coração, que aos poucos foi se aquietando. Sentiu-se integrada àquele céu estrelado, à areia da praia, ao vento, às ondas do mar e a todas aquelas mulheres. Relaxou.
Depois de algum tempo, Carolina sentiu um leve toque em seu rosto. Ao abrir os olhos, recebeu sete lindas rosas brancas. A mulher que estava distribuindo as flores explicou que representavam a harmonia das Deusas Ártemis, Afrodite, Hera, Deméter, Atena, Perséfone e da Grande Deusa, que integrava todas as anteriores.
Aos poucos, as outras mulheres foram se levantando. Abraçaram-se e começaram as despedidas. A mulher idosa veio falar com Carolina e explicou:
- Todos os meses, na lua cheia, reunimo-nos aqui na praia para celebrarmos a energia da Deusa. Sinta-se convidada. Você será sempre bem-vinda, pois é uma de nós.
Carolina abraçou-a com carinho, sem conseguir entender exatamente o porquê da alegria que estava sentindo. Agradeceu e lhe disse que voltaria na lua seguinte.
Foi para o carro, carregando suas rosas, e a certeza de que sua vida mudara. Não se sentiria mais uma estranha quando se olhasse no espelho. Tinha reencontrado sua alma. Sua criança estava feliz.
Enfim, havia retornado a sua tribo, a sua gente.

Penso



Recebi a ordem de escrever livremente durante um certo tempo. Tudo que vier à cabeça. Hummm! Isso não será possível, pois segredos muito secretos não podem ser escritos. Tenho sonhado muito desde que comecei a ler Clarice Lispector. Cada sonho doido. Pena que não me lembro do que sonhei. Tenho a impressão que se pudesse conectar um computador ao meu cérebro já teria escrito alguns livros, pois sinto que foram muitas histórias já sonhadas. Pensei que a vida de escritora fosse mais fácil. Era só pegar um computador, sentar num lugar calmo, tipo uma beira de praia (romântico, não?) e esperar a intuição chegar. Mas, ai, isso não é verdade. Para ser escritora de verdade, tipo uma Djanira, que é escritora das boas, tenho um longo caminho a percorrer. Dá medo, pois não sei se conseguirei ter o mesmo talento e competência. Para começar, tenho que voltar a ler muitos livros que não sejam técnicos (andei lendo muitos livros de Psicologia nos últimos 10 anos); tenho que ler os clássicos, tenho que ler livros infantis, tenho que escrever todo dia, tenho que ter experiências sempre novas para contar, tenho que ter dicionários e gramáticas por perto (até Chico os tem!!!). É tanto ‘tenho’ que, às vezes, me dá preguiça. Por que tenho este bichinho que sempre fica me futucando com novas possibilidades de viver?! Não seria mais cômodo, mais comum, mais normal, apenas continuar sendo Psicóloga, fazendo o meu trabalho de uma forma cada vez melhor? Todas as minhas amigas e amigos escolheram um caminho e o percorrem com alegria, buscando serem felizes no seu dia-a-dia. Por que me inquieto tanto? Por que não consigo ser feliz com as conquistas que realizo? E olha que já fiz um montão de coisas. Já fiz Ciência da Computação, já fui estagiária, já fui chefe, já fiz palestra, já apareci em programa de tv, já fiz trabalhos com crianças e adolescentes sobre sexualidade, já refleti com professores sobre o tesão de aprender, já comecei um curso de corte e costura, já fiz mestrado, já fiz curso de reiki, já fui para Sibéria aprender sobre o xamanismo, já fiz xixi nas calças quando fui assaltada, já entrei na favela de Santo Amaro para ir a uma reunião num centro espírita, já levei galinha preta no pescoço, já comunguei, já fiz curso de pintura, já fiz curso de inglês, já fiz pavê para meu irmão, já assisti criança nascer, já vesti gente morta, já fui traída, já traí, já amei, já fui amada, já tirei ossos do caixão, já fiz limpeza de túmulos, já fiz curso de cura quântica, já fui para congresso de ET, já recebi espírito, já fiz regressão em outras pessoas, já mergulhei no fundo do mar, já cavalguei no meio das areias da praia, já fiz amor no meio do mar tendo a vela de um windsurf como leito, já abortei, já tive filhos, já fui casada, já me separei, já fiz cesta de café da manhã, já vendi roupa de porta em porta, já fui empresária (acho que umas três vezes) e já desisti, já comecei mestrado e deixei no meio, já fui feliz e já chorei de saudade. Já... tantas coisas. Mas o que me inquieta é “Ainda não experimentei...”. Isso é o que me impulsiona. É como se o meu caminho fosse sempre o de uma buscadora, pois o movimento é sempre o de busca, o de novas descobertas e experiências. Tento, tento ficar quietinha, mas a vida me seduz com novos desafios. Agora mesmo, desisti de fazer doutorado e resolvi ser escritora. Estou fazendo um curso. Também estou aprendendo a colocar tarô. Mas aí vem o ‘ou isso ou aquilo’. Por que sempre tenho que escolher? Sonhar acordada que todas as realidades possíveis continuam existindo em outros lugares é uma das coisas que mais gosto. Queria ser como as outras pessoas. Elas são tão felizes indo para os shopppings, levando os filhos para a escola, esquentando o jantar do marido. O vazio que experimento me incomoda. É tão bom meditar... É tão bom tomar chá de cidreira. Gosto de ouvir passarinho cantar. Também gosto do cheiro de café bem quente. Gosto de ver a fumacinha subindo e desaparecendo, direto da xícara para o infinito. Sempre gostei de olhar para as estrelas. Há tanto mistério. O que será que há do lado de lá? Se Deus é tudo e o Diabo existe, Deus também é o Diabo. Legal, não? Também posso viver meu diabinho sem culpa. Mas tem uma danada em mim que é muito boazinha. Às vezes tenho tanta raiva dela, porque esta história dela querer ajudar todo mundo é que me aprisiona. Por que não ser livre e irresponsável? Por que fico sempre ligada no que posso fazer pelos outros? Lembrei-me do Louco, do Tarô, um arcano que nos manda ousar. Adoro esta carta. Totalmente inteira. Cansei.

Patrícia Vasconcellos

Já que a lua é quem mais entende de amor


Existia numa floresta uma árvore muito linda, cheia de folhas verdes e flores coloridas que exalavam um delicioso perfume. Nesta mesma floresta também existia um fogo, muito forte e rebelde. O fogo e a árvore se apaixonaram perdidamente um pelo outro.
Mas esta paixão era um suplício, pois nunca se concretizava o encontro dos dois amantes. A árvore, por mais que balançasse suas folhas, não conseguia chegar até o fogo. O fogo, por mais que aumentasse sua labaredas, não encostava na árvore. Quando a paixão entre eles crescia tanto que até doía, o vento afastava as folhas da árvore e água apagava o fogo. E os dois amantes sofriam.
Um dia, a lua, que estava cheia no céu, viu o enorme amor do fogo e da árvore e resolveu dar uma ajuda, já que a lua é quem mais entende de amor. Fez sumir do céu todas as nuvens para que a água da chuva não apagasse o fogo. Também fez com que surgisse uma calmaria, com nenhuma brisa no ar. E mostrou o seu brilho mais bonito e soltou o seu poder de realizar os desejos dos amantes que vivem separados e que têm os corações unidos, não importando a distância e o tempo que os façam esperar pela realização desse amor.
Devagar, o fogo foi se aproximando da árvore. Quanto mais perto chegava, mais aumentava o calor de sua paixão. A árvore mal cabia em si de tanto amor. Foram tantos momentos de dor e separação que aquele encontro parecia um milagre. E os dois se encontraram e a paixão se consumou. Os dois gemeram de prazer, soltaram faíscas de alegria e arderam em brasa de tanta felicidade por muito tempo. Depois, exaustos de tanto amar, entregaram-se quietos e foram, lentamente, transformando-se em cinzas, para de novo renascerem e viverem, mais uma vez, o seu eterno amor.

Patrícia Vasconcellos