30.11.06

Tiremos a pele de asno

Ao completar oito anos, minha mãe me deu um livro de Contos de Perrault, traduzido por Monteiro Lobato. Tenho este livro até hoje e a história que li quando criança está transcrita nesta reflexão amorosa que trago agora. É amorosa mesmo, porque não posso falar de contos de fadas sem ser pela linguagem do amor, do amor de mãe-filha, do amor do adormecer ouvindo histórias através da voz amada, do amor que me confortava e me dava coragem para enfrentar os meus medos e sonhos ao acreditar que se tinha dado certo para as personagens daria certo para mim também. É o amor e a segurança de um ninho de amor e a crença de que a vida é bela e no final tudo termina bem.
Foi assim a minha relação inicial com os livros, com as histórias encantadas e esse amor me acompanhou a vida toda, fazendo com que eu adorasse ler, com uma paixão intensa, emocionando-me ao entrar numa livraria, deliciando-me ao folhear as páginas de um livro, libertando-me através das palavras mágicas de uma história ou de um poema.
Com esse mesmo amor, contei histórias para os meus filhos. Histórias de livros, histórias de boca, histórias ouvidas e repetidas no aconchego de minha cama, onde a plenitude se instalava ao vê-los de pijamas, mamadeiras e fraldas, e a minha voz repetia o mesmo ritual de amor que vivi quando a criança ainda era eu. Assim, eu estava dizendo a cada um deles um ‘eu amo você, a vida é bela, tudo vai dar certo e você vai ser feliz para sempre’. Ainda hoje, de vez em quando, repetimos esse mesmo ritual e, magicamente, ficamos completamente preenchidos de amor.
Quando criança, ganhei uma máquina de datilografia rosa-choque. Foi a glória. Ali iniciei a minha carreira de escritora, aprendendo a fazer casas de livros para outras pessoas morarem nelas e nelas sonharem, como conta Lygia Fagundes. Hoje, o notebook ocupou o lugar da minha máquina – que está num lugar de honra no quarto de minha filha – e as histórias não estão apenas nas folhas de papel, mas estão espalhadas pelo mundo através das páginas da internet. Os textos ainda são científicos, em sua maioria, mas, aos poucos, os dedos vão tomando vida própria e toda minha alma vai entrando em transe e a história começa... Era uma vez...
Escolhi Pele de Asno como o conto de fadas da minha vida. Além de representar um vínculo amoroso com minha mãe, uma viagem ao tempo seguro da infância, descobri, já adulta, que tive que colocar uma pele de asno para encobrir a minha beleza, o meu potencial criativo, a minha inteligência, a minha liderança, enfim, o meu modo singular de ser no mundo e de brilhar. Não é nada fácil para uma mulher, numa sociedade patriarcal, assumi a sua força. Enfrentei muita exclusão, solidão e isolamento porque era muito inteligente, porque só tirava dez, porque inventava formas incríveis de apresentar meus trabalhos, porque era sempre eleita representante de classe, porque era bem-feita, porque minha família era uma delícia (apesar das dores), porque meu namorado me amava, porque minha poodle era linda, porque me comunicava com o coração. A inveja foi um sentimento muito forte e destrutivo no meu caminhar e fiz o que pude para esconder do mundo e das pessoas que eu amava, que faziam parte do meu círculo pessoal de amizades, o meu brilho, com medo delas fazerem a mesma coisa que as colegas da escola e, depois, do trabalho, usando-me quando precisavam dos meus conhecimentos, do meu cérebro, e me ridicularizando e isolando, machucando o meu coração e a minha alma.
Foi tão forte esse sentimento de exclusão e de uso, de não ser vista e amada como uma pessoa inteira, que troquei de colégio só para não ser mais reconhecida apenas pela minha inteligência. Quantas vezes não fiquei calada para não dar a resposta certa e ser mais uma vez excluída do grupo, desejando com toda a minha essência ser apenas ‘medíocre’!! Quantas vezes não rebatia alguns elogios que surgiram mais tarde nas minhas relações profissionais, sempre apontando algum defeito, para que não fosse mais uma vez rejeitada!!
Depois de muito chão de vida – hoje, aos quarenta e poucos anos – e de muita terapia, pude tirar minha pele de asno, sem medos e sem precisar fugir, e comecei a assumir o meu potencial e as minhas dificuldades com muita tranqüilidade. Como me comunico muito bem, tenho arrasado em palestras, aulas, programas de televisão, artigos e até já consegui colocar na internet um site (www.caleidoscopio.psc.br), onde compartilho o meu caminhar.
Trabalhando com mulheres em oficinas que têm o objetivo de resgate do feminino, observo que muitas delas também usam suas peles de asnos para esconderem o seu potencial, pois se sentem ameaçadas pelos seus maridos, seus filhos e até pelas suas amigas. Que esse texto possa ajudar cada uma delas a tirar a pele de asno e assumir o seu destino de brilho e felicidade!!

Minha cidade

Como seria viver numa cidade que não fosse banhada pelas águas? Como seria viver longe do mar de águas mornas? Como seria viver longe dos rios e dos manguezais? Nada de caranguejo, guaiamum, agulha frita, sururu, camarão, moqueca de peixe. Nada de água de coco, de lama de coco. Nada de lama de gente. Pontes, morros, planícies. Frevo, maracatu. Bondes e casarões antigos. Cores - de casas, de frutas, de flores, de árvores. Pipoqueiro, quebra-queixo, algodão-doce, cuscuz na porta. Macaxeiiiiiiiiiiira, quem não come cheira. Corais, peixes, arraias, mergulhos no fundo do mar. O luar refletido nas águas.
Uma beleza que sempre me encanta. Pontes que unem ilhas e, principalmente, pessoas.

26.11.06

Meu encontro com o Recife Antigo

Esse negócio de ser escritora é bem mais complicado do que eu pensava. Na última quinta-feira, tivemos a aula da Oficina de Textos, coordenada por Antônio Guinho, no Recife Antigo. A ordem era andar pelas ruas, escrever o que quisesse e depois voltar para compartilhar tudo com a turma, numa mesa do bar que serve o melhor e mais tradicional maltado da cidade.
Lá fui eu, de prancheta na mão, sob sol escaldante, observar o Recife Antigo e torná-lo meu, através do meu encontro com ele.
Andei pelas ruas, parei em praças, entrei em museus. Registrei tudo com frases curtas, observações, anotações sobre sensações – como cheiro de xixi ou cheiro da água da fonte -, e divagações para outros tempos naquele mesmo espaço geográfico.
Viajei... Vi-me naqueles casarões, com vestidos longos e sombrinhas, passeando pelas ruas e indo tomar o bonde – ainda há trilhos!! – para encontrar-me com meu amado.
As pedras das ruas ainda cantam canções dos carnavais de outrora. O fiteiro ainda conhece as damas da vida que prestam seus serviços nos sobrados antigos para homens que não querem ser vistos na sua procura por um pouco de fantasia. Hoje, a cidade tenta esconder este segredo escondendo as janelas com tijolos. A modernidade tenta se impor àquele recanto de histórias com empresas de tecnologia. Mas a cidade resiste. Homens conversam na calçada e já planejam o próximo carnaval, como se fizessem um esforço para manter a época de alegria, beleza e liberdade dos bons tempos e lutassem contra a decadência que teima em se instalar.
Árvores antigas e enormes palmeiras têm muito que contar. Lembrei-me de meus tempos de crianças quando brincava saltando pelas raízes expostas das árvores. Os lampiões nas ruas me remetem à pergunta: será que já foram de gás?
O batuque do maracatu favorece um transe. De repente, uma mulher bate no meu braço e pergunta:
- Essa menina, você sabe me informar onde é que tira xerox aqui?
A voz me soa longe e me força a voltar para o aqui e o agora. Acho tão estranho. Onde estou?
- Não tenho a mínima idéia, respondo.
- Muito obrigada, diz ela e sai procurando por outra pessoa que possa lhe dar a informação.
Percebo que no Recife Antigo de ‘agora’, há pessoas que trabalham, que vivem o seu corre-corre e que já não se encantam com o cenário esplendoroso dos casarões e ruas antigos e com a suave brisa do mar que sopra para aliviar o calor. No entanto, há pessoas que viajam milhares de quilômetros para conhecer aquele pedaço de história e que ficam encantados com tamanha beleza, tentando fotografar cada detalhe para garantir a lembrança caso a memória não lhes seja fiel. Como antigamente, quando portugueses, holandeses, africanos e brasileiros conviviam juntos, a cidade ainda acolhe a diversidade. O sol brilha intensamente para todos.
Dentre todas essas pessoas, uma me chama a atenção. Como eu, ele também tem um bloco de papel e uma caneta nas mãos. Olha, olha e registra o seu olhar no papel, não com palavras ou desenhos, mas com rabiscos. Fico um tempo só olhando para aquele homem de chapéu, já idoso, com orelhas e bigodes grandes e um rosto cheio de rugas, marcas de sua história. Segura o lápis com leveza e arqueia a sobrancelha toda vez que vai colocar traços no papel. Encanto-me com sua doçura. Lembra um beija-flor. Não tenho coragem de invadir sua ingenuidade.
Vejo que já está na hora do maltado e da conversa com a turma no bar. Estou feliz. Sentamo-nos à calçada, na mesa do bar, sob a sombra das árvores, e começamos a leitura dos textos. Um menino negro, que toma conta dos carros, coloca as mãos na cintura e fica em pé ao nosso lado para ouvir nossas histórias. Cada uma das escritoras criou uma história, menos eu.
Fico me perguntando: serei eu realmente uma escritora?
Isso eu ainda não sei, mas sei que consigo encantar-me com a vida, pois foi vida, apenas vida, o que encontrei por lá.