11.6.11

Nas minhas veias corre o sangue de Lagoa dos Gatos, cidade do agreste pernambucano. Minha mãe contava histórias de sua infância, com brincadeiras nas ladeiras à noite, com direito a comer um bolo inteiro escondida atrás da porta, com o desejo ingênuo de pedir para um avião cair e ela poder ver de pertinho. Também fui construindo minhas próprias memórias da cidade nas festas de São Sebastião, com sua enorme roda gigante, nas sessões de TV na praça, nos carnavais no mercado público e nos encontros com os “Ala Ursa quer dinheiro, que não der é pirangueiro”. Boca Preta, Boca Branca, Dona Malila e os desfiles de Sete de Setembro. Festas de São João com direito a forró pé-de-serra no terreiro da casa do sítio. As melhores lembranças são das famosas reuniões da família Souza Lira/Lira Souza (com I, porque o Y saiu de moda) na bica, com os tios assobiando na boca da garrafa de cerveja e marcando o ritmo com o toque de um talher, tudo regado a muita bebida, comida e frutas – jabuticaba, jaca, manga, caju, banana. Nesses momentos os filhos da terra voltavam a ser crianças e contavam as presepadas que aprontaram quando os quinze de Seu Manoel Antônio e Dona Zefinha alegravam a cidade e plantavam café. Havia também os banhos no açude, dividindo as águas enfeitiçadas da nossa terrinha santa com a lavagem de cavalos e carros. Bons tempos, belos dias e uma enorme saudade no coração.
Muitos já partiram para outra dimensão e a família deixou de se reunir por lá. Sempre acalantei o desejo de devolver para aquele pedacinho sagrado de terra o muito que havia nos dado – a mim e a minha família. Até que um dia, há alguns anos, tive a oportunidade de começar a realizar este sonho. Fui convidada para palestras em Panelas, Jurema, Cachoeirinha, cidades que ficam na região. Pedi, então, para me apresentarem alguém de Lagoa dos Gatos que estivesse engajado nesses projetos. Numa manhã em que estava trabalhando na Amupe, Roberto Arrais abre a porta e me apresenta a Secretária de Trabalho e Ação Social, Mille. Agendamos uma palestra e algumas semanas depois estava chegando naquele espaço sagrado para mim. O coração disparou, deu um nó no estômago, fiquei sem respirar, e o tempo não era mais o do relógio. Fui vendo e ouvindo nossas brincadeiras, a prima linda com seu violão, minha mãe, meu pai, meus irmãos, os primos. Voltei aos sítios, chorei, ganhei colo – acho que neste instante Roberto Arrais foi se tornando meu futuro marido -, fui encontrar a juventude deste tempo, que não era mais o tempo da minha família. Adorei poder estar lá, mas fiquei preocupada com a falta de esperança de alguns jovens. Resolvi que iria fazer alguma coisa. Voltei para outras palestras, Roberto se tornou meu marido, organizamos, com filhos e auxiliares, livros na feira, arrecadamos brinquedos. Tudo de forma voluntária.
Agora sou funcionária, ao lado de outras pessoas que sonham e constroem um futuro lindo para os que têm o sangue da terrinha ou que beberam de sua água e não conseguiram mais ir embora. Temos cinema, aos sábados à noite, encontro cultural – a 5ª. na Lagoa. Já estamos organizando um movimento com a juventude, realizamos seminários. Falo na primeira pessoa do plural, nós, porque lá na secretaria há uma equipe muito boa. Mas não posso deixar de destacar que tudo isso só está acontecendo porque um jovem gatense resolveu sonhar e realizar. A minha participação é apenas ajudar a concretizar os sonhos que povoam a lagoa.
Num desses seminários, comecei a falar sobre a questão da sexualidade:
- É, tem muita mulher que transa com o marido mesmo sem sentir vontade. Tem que servir, em troca de casa, comida e roupa lavada. Qual a diferença para uma prostituta que vende o corpo por dinheiro?
- Realizei um trabalho com crianças e uma delas perguntou, ‘tia, você já fez sexo aral?’.
- No trabalho de sexualidade na escola a gente não pode emitir juízo de valor. Por exemplo, se um aluno pergunta ‘tia, é certo transar por trás?’, não se pode dizer nem que sim, nem que não, porque esse é um valor de cada família.
Só que eu não sabia que o microfone estava aberto para toda a cidade!!!!!!! Imagino o que minha mãe estava pensando neste momento.
Descobri há pouco os quilombolas, as cachoeiras, as casas que servem deliciosas comidas. É uma cidade que se revela e que me encanta. Muito potencial para ser um lugar de gente feliz!

10.6.11




O que é preciso para ser feliz?

Lembro que esta pergunta fazia parte da música religiosa que ouvia em minha infância. Lá, a resposta era simples e eu já era feliz. Cá, neste tempo e lugar, a pergunta fica rondando meu juízo, provocando meu coração: o que eu preciso para ser feliz?
As coisas se complicaram e perdi a sabedoria da criança que fui. Toda intelectual, cheia de informações num cérebro cansado, não consigo fazer com que a mente me dê as respostas. Tentei achar minha alma perdida no caminho da vida profissional. Já fui tantas que até perdi a conta. Mudei, mudei, mudei e não me encontrei nestas estradas. Diplomas, cargos, salários, poder, aplausos... tudo isso me jogava num vazio e me deixava mais perguntas que respostas. Também tentei ouvir meu coração, mas ainda não sabia decifrar sua linguagem e segui rumos que entendia como meus, mas que me levaram para dor e sofrimento. Apesar de amar muito, a solidão sempre se fez minha companheira. Vivi a possibilidade de me sentir eu mesma nas relações com os amigos e as amigas que mantive por toda uma vida. Porém, no momento em que mais precisei de um ombro para apoiar meu corpo cansado, vi-me perdida, como num deserto, sem água e sem comida, sem carinho e sem apoio das pessoas que pensava ao meu lado para sempre. Se teve alguma parte de mim que me manteve ligada a quem de verdade sou, foi a maternidade. Ser mãe me tornou plena.
Fui buscando minha alma pela vida afora, procurando em esconderijos que imaginava além. Aos quase cinqüenta anos, para minha surpresa, descobri que desde o início me acompanha, tão perto, tão perto, colada mesmo, que nem dava para ver, porque, de verdade, estava dentro, lá dentro, num lugar que só se ilumina quando a gente entende que a maior viagem tem que ser em direção àquele encontro cara a cara, quando a razão se curva com humildade diante da grandiosidade do sentir.
Começo a achar algumas respostas. Para ser feliz, preciso desacelerar, preciso ficar mais tempo perdendo tempo e, assim, apreciar mais as belezas da natureza, acompanhar o ciclo da vida. Não quero aprender apenas a pensar – isso já nasci sabendo. Delicio-me com o belo, com o simples, com a sabedoria que vem daqueles que caíram na chuva e se deixaram ensopar. Preciso ficar mais na rede ou no banco do jardim, abraçada com meus amantes, os livros, que me levam para mundos fantásticos. Preciso tomar banho quente, ou de chuva, ou de mar. Preciso de café forte, de suco de laranja feito na hora. Preciso ouvir disco na radiola e dançar agarradinha vendo o sol nascer. Preciso sentir cheiro de terra molhada e deixar que meus pés deslizem na grama orvalhada. Preciso ouvir passarinho cantar, árvore balançar e chuva cair no telhado. Preciso traduzir em palavras esse turbilhão de imagens que me fazem sentir que sou artista.
Li uma frase linda que dizia que “a missão de todo artista é não deixar o sonho morrer”. A arte preenche os vazios com significado.
Oxalá consiga ficar assim, vivendo meus presentes em completamente mergulhada na arte!