13.11.06

O que de mim realmente é meu?


Ler a última carta de Olga ao seu amor é algo que não pode me deixar imune. Tanta força, tanta poesia, tanto sentido dado à vida, só podem provocar muitas lágrimas em meus olhos.
Lágrimas pela dor de Olga, de Carlos e de Anita. Lágrimas pelas minhas dores, hoje também já choradas. Lembrei-me de perdas tão significativas: Príncipe Encantado, meu eterno amor; o fim do meu casamento (dor física que me dilacerava o corpo); o sofrimento de minha filha com nossa separação; o derrame de papai e a dor constante por tê-lo e não o ter mais; a lembrança da rigidez e da fragilidade de mamãe; o som do seu último ronco, a sua ausência e a presença do cuscuz na mesa; a impotência de titia diante de tão difícil final de vida e, a mais transformadora de todas, a visão do esqueleto de mamãe. Ao olhar aquele conjunto impessoal de ossos, fiquei como que lhe procurando, procurando a sua inteligência, procurando onde estava o seu amor por mim, procurando o colo que tantas vezes me acolheu e me protegeu, procurando sua voz que me contava histórias. Conviver com papai sem poder compartilhar sua alegria, seu carinho, seus conselhos, suas idéias, vendo-lhe os olhos quase mortos, parados, sem brilho, num mutismo forçado pelas forças do cérebro. Onde estará sua vitalidade? Onde estará o espírito de titia, num corpo em coma há tanto tempo? Por onde andará a minha mãe?
Questões como essas me atormentam. Aos 40 e poucos anos a força da vida se impõe com crueldade. O que é a vida? O que é ser ‘humano’? Como funciona o universo? O que é Deus? Perguntas pessoais também surgem das vísceras. Momento de prestação de contas. Quem sou eu? O que vim fazer aqui? O que é ser mãe? O que é ser esposa? E a mais difícil de todas: como quero viver daqui pra frente?
As máscaras vão caindo. Já compreendo o poder da cultura na formação dos papéis que exerço e busco minha essência. O que de mim realmente é meu?
Busca por conhecer. Tesão por aprender. Vazio no sentir. Meu currículo profissional ficando cada vez mais amplo. Lendo-o, não me reconheço. Sinto-o como sendo de uma outra que não sou eu. Libriana, com a missão de construir o equilíbrio. Como, se vivo atormentada pelas polaridades?!
Lá, bem dentro de mim, uma força enorme, um desejo de liberdade, de conhecer o mundo, de viajar, de trocar experiências com pessoas diferentes. “Viver é pulsar, é ser canal para que a energia cósmica faça, através de nós, o seu trabalho no mundo”, já me ensinou Sandra Celano. Ser canal da energia cósmica... tanta responsabilidade. Inteligência brilhante, enorme poder espiritual, pessoas ao redor buscando pela energia cósmica. E eu? Cansada, solitária, procurando por um colo, por alguém que me diga “Deita aqui, descansa, que eu vou cuidar de você”. Príncipe... que saudades de sua alma, do seu olhar.
O mundo me chamando para o trabalho, a cabeça fervilhando com novos projetos, novas idéias – sempre ajudando muitas pessoas – e o coração querendo ficar quietinho, só curtindo a viagem para dentro de mim. Tantos livros na estante com diálogos a serem estabelecidos. Sinto que estou construindo uma nova forma de ver o mundo. O que devo fazer?
Meus filhos reclamam a minha presença, chegando a sugerir pagarem uma consulta para poderem conversar sozinhos comigo. As atividades profissionais me impedem de tomar chá com meu pai. Aulas à noite me tiram de casa e permitem que meus filhos fiquem horas no computador, simulando matanças em jogos virtuais. Apenas solidão. O que quero fazer? Para que trabalhar tanto? Notebook, roupa da moda, casa de campo, carro novo; boas escolas, inglês, violão e esportes. A que preço? Isso tudo realmente é essencial para viver?
Vejo a cena do meu cotidiano secreto. Levanto-me, tomo um copo de suco de laranja, vou cuidar do jardim e da horta, dou umas voltas, tomo café, leio os jornais, ouço o canto dos pássaros e o maravilhoso som do lar, posso até ouvir música e meditar um pouco; escrevo, converso com pessoas, entro na internet, leio; almoço, acompanho as tarefas da escola, leio junto com as crianças, brincamos, vemos um bom filme, comendo pipoca e brigadeiro. Um chá com papai. Um banho, uma rede, uma revista; talvez uma ida à cozinha, o jantar; contemplo o céu, descubro estrelas com luneta, espero pela visita de um disco voador, tomo um bom vinho, danço, converso, conto muitas histórias e ouço outras tantas. Antes de ir deitar, passo pelos quartos de meus filhos e sorrio com o sono de anjos, pedindo-lhes a proteção divina. Namoro com calma e durmo feliz, pé-com-pé, agradecendo a Deus pela felicidade da simplicidade. De vez em quando, visitas à livraria Cultura ou viagens para recarregar as energias. Jogo tarô, entendo de florais e astrologia. Sou doutora em sabedoria, encanto-me e encanto com os contos de fadas. Chegam os netos e percebo o ciclo da vida. Chega a hora da grande viagem e parto em paz, sabendo que vivi com consciência cada momento. Missão cumprida. Agora, novos desafios.
Essa é uma possibilidade de roteiro. Existem outras. Posso continuar vivendo essa farsa, desempenhando os papéis certinhos, trabalhando muito, ganhando dinheiro, sendo esquizofrênica. Posso, também, viajar pelo mundo fotografando tudo, entrevistando mulheres, tentando descobrir os mistérios do universo feminino. Há ainda a criação de espaços lúdicos para as crianças viverem mais felizes e construírem um mundo de paz e harmonia. O compromisso com a educação pode se expressar através de livros, sites, conferências e formação continuada. Vou para o ‘mundo’ ou fico em ‘casa’?
Como fazer? O que fazer? Só não posso trair minha alma.

“Vá aonde o seu corpo e a sua alma desejam ir. Quando você sentir que é por aí, mantenha-se firme no caminho, e não deixa ninguém desviá-lo dele.” (Campbell)

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