20.12.06

Sem saída

Becos, ruelas, esgoto a céu aberto, cheiro de merda no ar. Lá vou eu entrando, junto com mais duas profissionais, num mundo que não conheço. Não sinto medo. Talvez tenha dissociado ou, talvez, tenha apenas me entregado a alguma força superior. O desejo de transformar aquela realidade me faz seguir adiante. Estou dentro do ......, um dos locais mais violentos de Recife. Um anjo da comunidade nos guia. Mostra-nos a beira da maré. O chão é coberto por cascalho de conchas de mariscos. É lindíssimo e penso como ficaria lindo na minha casa de praia. Ridículo! Palafitas, botes, homens e mulheres misturados com a lama. Cadê Josué? Caranguejo, unha-de-véio, sururu. Aquelas pessoas tiram da lama a vida e também na lama encontram a morte.
Um grupo de jovens diretamente ligados à violência chegam à casa onde estamos. Começamos a conversar e enquanto esperamos pelo resto da turma começam a fazer maracatu com o próprio corpo, batendo com as palmas das mãos nos joelhos e na ‘caixa dos peitos’. Fico em transe. Que cena surrealista! Jovens que roubam, matam, traficam, fazendo música com alegria, doçura e entrega! Lembro-me do Sagrado que afirma que sempre há luz nas trevas. Seus filhos, amigos e parentes circulam entre nós. Muitas pessoas se encontram sentadas nos becos, apenas conversando porque não têm o que fazer. E o poder público com isso? Dando aumento de quase 100% para os deputados. Porra! Puta que pariu! País de corno esse.
Os outros vão chegando, depois de ‘dar uma’, pois ficam ansiosos para conversar com a gente. Lanchamos juntos. Falamos sobre os próximos passos do trabalho. Comentam que é legal cada vez que a gente se encontra porque ‘pega mais intimidade’. Vamos ficando amigos.
Perguntamos o que poderíamos fazer - a gente e eles - para mudar aquilo ali. Respondem que têm o futebol e que precisam de coletes. No dia do jogo ninguém se droga, ninguém ‘trabalha’, todo mundo só curte a pelada. Topamos ajudá-los nisso.
O nosso anjo mostra seus poemas e diz que sonha com um carrinho de mão cheio de livros para circular pela comunidade. Topamos ajudar nisso também. Sugerimos filmes. Sugerem apenas conversar mais vezes com a gente.
Abraçamo-nos na despedida.
Saio de lá com o coração sangrando, a alma partida e os olhos cheinhos de lágrimas. Isso também sou eu, caralho!!! O que posso fazer? Continuar sentada na sala de meu apartamento, com a boca escancarada e cheia de dentes, esperando a morte chegar, como disse o sábio Raul Seixas? Fingir que não tenho nada a ver com essa guerra nojenta que ocorre todos os dias na minha cidade? Condenar quando assaltam e matam os filhos da burguesia?
E eles têm saída?

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