20.4.09

Foi assim. Eu estava numa livraria no setor de livros infanto-juvenis. Selecionara alguns títulos: os de Clarice Lispector, Tatá pede socorro – história que contei inúmeras vezes na cama para meus filhos amados -, alguns de Machado de Assis. Coloquei-os sobre uma mesa com tamanho adaptado para crianças e percebi, então, a presença de um menino.
Vestia bermuda, camiseta e chinelos. Deveria ter uns 10 anos. Era moreno, gordinho, rosto redondo, olhos grandes. Pegava alguns livros e os soltava depois de folheá-los com rapidez. Pensei que não deveria saber ler. Escolheu um com números e começou a contar em voz alta. Estava imerso em seu mundo. Aproximei-me da mesa e pedi licença para pegar meus livros. Sorriu. Em seguida, perguntou-me:
- A senhora podia me pagar um lanche? Tô com muita fome.
Pronto, fora fisgada. Meu coração apertou. Uma criança faminta de comida também tinha fome de livros. Claro, neles há o mundo da fantasia, do faz-de-conta e é lá que encontra consolo e esperança de um final feliz para sua dura vida. Mas uma coisa é saber disso tudo na teoria e outra é ver essa verdade escancarada na sua frente. Sentei-me ao seu lado e começamos a conversar.
- O que é que você quer comer?
-Um Mc Donalds Feliz. Você sabe o que é?
- Sei. Mas o sanduíche é tão ruim. O legal é o brinquedo que vem. Você já comeu alguma vez?
- Não, mas minha irmã já e disse que é muito gostoso.
- Você mora onde?
- Em ...
- Estuda?
- Tô na segunda série.
- Mas você ainda não sabe ler, né?
- Sei não.
- Quer que eu leia para você? Quer que eu conte uma história?
Seus olhos brilharam. Soltou um sorriso largo. Seu rosto se iluminou.
- Quero.
- Vamos escolher? – sugeri, sorrindo também.
Levantamo-nos e percorremos prateleiras escolhendo alguns livros. Ele pegou alguns de carros, de animais, de atividades. Escolhi contos de fadas.
Começamos por um livro que tinha a atividade de procurar desenhos de objetos em uma cena. Ele vibrava a cada achado e sorria quando eu dizia:
- Poxa! Como você é fera! Toca aqui.
E batíamos nossas mãos para festejarmos as conquistas. Conversamos mais um pouco.
- Como é seu nome?
- Manuel.
- O meu é Tital. Você mora com seus pais?
- Moro e com mais quatro irmãos. Meu pai e minha mãe estão sem trabalho.
- Seu pai sabe fazer o quê?
- Tudo. É ruim ficar sem comida em casa.
- E como é que vocês fazem quando a situação aperta?
- A gente sai, eu, meu pai e minha mãe, para pedir comida nas casas.
- Você fica muito chateado nessa hora?
- Fico, mas quando a barriga fica roncando, não tem jeito. Tem que sair e arrumar comida.
Pegou o livro de Pinóquio e me deu para ler. Adorou quando Pinóquio foi virando um burro, quando seu nariz cresceu com mentiras e quando a baleia expulsou todos por sua enorme boca aberta.
Eu tinha um compromisso com hora marcada e precisava interromper nosso encontro.
- Você prefere um lanche ou uma cesta básica?
- Uma cesta básica. Minha mãe vai ficar tão feliz. – e se levantou entusiasmado.
Saímos abraçados da livraria. Havia, também, fome de carinho. Não quis tirar dele a realização de seu desejo de criança e lhe comprei um sorvete.
- A senhora não vai tomar um?
- Não.
- Ah! Então não quero.
Insisti e terminou aceitando o mimo, não sem antes se certificar que esta opção não excluiria a cesta básica.
Fomos ao supermercado, compramos a cesta básica e uma revista de carros. Arrumei dinheiro para sua passagem de ônibus.
Falou meio sem jeito:
- Desculpa por tá dando esse aperreio.
- Não foi nada. Hoje eu estou ajudando você. Amanhã você poderá me ajudar. Já pensou se você estuda, vira médico e um dia eu chego doente num hospital que você trabalha e você cuida de mim?
Mais uma vez seus lindos olhos brilharam.
- É mesmo. Ou então, eu vou ser policial e prendo ladrões. Aí eu vou estar ajudando a senhora também.
Na hora da despedida me abraçou bem forte e perguntou:
- Quando é que a gente vai se encontrar de novo?
- Não sei. Eu nunca venho aqui. Acho que foi o destino.
Sorrimos um para o outro. Dei meia volta e saí andando, quase correndo, sem coragem de olhar para trás, com receio que meu amigo percebesse as lágrimas que escorriam em meu rosto.
Experiência mágica essa. Mais uma, das inúmeras em minha vida.

2 comentários:

Magna Santos disse...

Não foi só no teu rosto que as lágrimas escorreram.
Fome de livros, fome de carinho, fome...
Cada um tem a sua. Uns, subjetiva, mas outros bem concreta.
Sigamos, com um pouco de pão e de afeto.
Abraço.
Magna

Psibuscando disse...

Meus olhos também brilharam e as lágrimas escorreram pelo meu rosto, principalmente por ter Thais ao meu lado.
Crianças não deveriam passar por certas coisas. Criança deveria vir ao mundo PARA SER FELIZ, PARA BRINCAR E ESTUDAR, PARA DESCOBRIR O MUNDO COM UM SORRISO NO ROSTO.
Continuo encantada.
Beijos. Louise Anne