24.2.09

Tive uma experiência muito chocante na última semana. A esposa de nosso motorista, uma mulher de quarenta e poucos anos, mãe de três filhos pequenos, com problemas neurológicos que a colocaram numa cadeira de rodas, teve um AVC, acidente vascular cerebral. Primeiro, ficou com a voz embolada, depois não conseguia mais engolir a comida e, por fim, apresentou dificuldades para respirar. Ligaram para ele e saiu correndo para socorrê-la. Levou-a uma policlínica, onde recebeu os primeiros socorros: foi colocada no oxigênio e no soro. Por lá ficou até conseguir que uma ambulância a transportasse para um hospital. Isso demorou um pouco porque as ambulâncias estavam apenas com cadeiras (e as macas?). Conseguiu uma vaga num hospital em Cavaleiro, Jaboatão dos Guararapes. Então, começou o calvário. Ela foi colocada numa cama e continuou no soro. Ao seu marido foi informado que ela teria que ter acompanhante feminina ou não poderia permanecer na unidade, inclusive com a sugestão, pelo grupo de auxiliares de enfermagem, de que assinasse um termo de responsabilidade e a levasse dali. Ligou-me desesperado, pois sua esposa não tem irmãs, a mãe dela já é acamada, também vítima de AVC, e uma vizinha sua estava tomando conta das crianças que haviam ficado chorando em casa. O que fazer? Pedi para conversar com a chefe de enfermagem e a orientação mudou. “Não era bem assim”, “ele não havia entendido direito”, “é que havia muitas pacientes e a equipe de enfermagem não poderia dar uma assistência completa a cada uma”, “claro que ela deveria ficar lá, pois não teria condição alguma de remoção”. Ele foi para casa e, no outro dia, levou ao hospital lençol e fraldas descartáveis, além do material pessoal de higiene de sua esposa. O hospital não tem lençol para os leitos, pois, segundo informações da equipe técnica os mesmos são roubados pelos próprios pacientes. Também não há fraldas descartáveis e cada uma tem que levar as que irá usar. Ficou lá a manhã toda esperando pela médica que iria fazer o exame nas pacientes, a evolução, como chamam os doutores da medicina, mas ela não apareceu. A explicação? Estava dando plantão em outro hospital. Veio outro médico, chegou até cedo, mas não poderia olhar a esposa dele porque era responsável pelos pacientes da outra ala. Inclusive, foi embora bastante irritado porque havia pedido um Raio-X há vários dias e o mesmo não tinha sido providenciado, o que impediria a alta de um paciente.
Diante da situação caótica, fui com ele ao hospital. Chegamos na hora do almoço. Logo na entrada, um grande número de mulheres, crianças e idosos se aglomeravam numa fila à espera de atendimento ambulatorial. Dirigimo-nos à internação e o vigia nos deixou entrar porque estávamos com fraldas para a paciente. Encontramos um grupo de auxiliares de enfermagem conversando por trás de um balcão. Perguntei pela esposa de meu amigo e responderam que estava no leito e que já havia tomado banho. Comecei a perguntar pela médica e confirmaram as informações que ele havia me passado. Enquanto respondiam laconicamente às minhas perguntas, chegou uma senhora gritando de dor, sendo apoiada por sua filha. Nenhuma das enfermeiras saiu do lugar e apontaram uma sala para a filha depositar a mãe. Questionei o porquê de outro médico não a ter visto, não houve resposta; quis saber o nome do diretor do hospital; “é melhor a gente chamar a enfermeira chefe”.
A enfermeira foi muito gentil, repetiu a história da médica, disse que ela viria no dia seguinte e que se a paciente tivesse qualquer coisa grave, seria atendida pelo médico de plantão. Quis saber o que deveria fazer, já que neste hospital não havia neurologistas e o quadro dela era neurológico. Orientou-nos a aguardar até o dia seguinte, pois na visita da médica ela solicitaria a transferência para uma unidade hospitalar que tivesse essa especialidade e isso seria mais fácil porque haveria o pool de vagas dos hospitais da região e já iria com a senha para internamento imediato. Também liberou a permanência do meu amigo ao lado da esposa, no turno da noite.
Ele passou a noite toda lá, sentado em uma cadeira, até a chegada da médica, perto das nove horas da manhã. Explicou o caso, solicitou a avaliação neurológica e ouviu um “eu não posso fazer isso não, o senhor não deveria ter aceitado que o médico da policlínica a encaminhasse para cá”. Acanhado, respondeu que era motorista, que entedia tudo de carro, mas que não poderia mandar no médico e, sim, confiar no que ele havia dito quando falou que esse hospital era muito bom e que iria cuidar da esposa dele muito bem. Vai pra lá, vai pra cá, a tal médica conseguiu a transferência para um grande hospital público de Recife, com indicação para avaliação neurológica. Depois de esperar pela ambulância, de novo sem as macas, foi direto para o hospital, onde fez os exames necessários, tomografia computadoriza, e se constatou um AVC com conseqüências nada animadoras para a paciente e sua família: seu quadro é irreversível. Está no soro, sem conseguir falar, andar ou se mexer, com alimentação através de uma sonda. O médico chegou a falar em alta, pois não havia muito a ser feito. Ela ficou na maca, no corredor do hospital, e seu marido foi mandado para casa.
Voltou no outro dia e quase era impedido de entrar pelo policial que fazia a segurança e que pediu um dinheirinho para que o deixasse passar. O maqueiro também pedia um agrado para priorizar o transporte de alguns pacientes no lugar de outros.
Ah! Lá descobriu porque as ambulâncias estavam sem as macas. Só neste hospital, oito delas serviam de leitos para os pacientes, pois não havia camas suficientes para todos.
Ela ainda está neste hospital, seu marido tem ido visitá-la, o médico tem recebido meu amigo com respeito e carinho, disse-lhe para não levar mais lençol e fraldas porque o próprio hospital forneceria tudo que precisasse.
Fiquei indignada diante disso tudo. Claro que há falhas no sistema público de saúde. Não há camas, as macas estão servindo de leitos, mas isso inviabiliza o transporte de pacientes nas ambulâncias. Um erro aqui, afeta ali. Todo o sistema está interligado. Mas, soube através de um médico amigo, que o sistema único de saúde paga certo número de diárias quando há o internamento e aí os hospitais conveniados ficam com o paciente durante este período, mantendo-os com os custos mínimos, só no soro, no caso de minha amiga. Um verdadeiro depósito de pacientes, representados apenas pelas cifras financeiras. Onde está a humanidade? Como se justificar que uma médica que prestou o seguinte juramento, proponha-se a estar em dois lugares ao mesmo tempo?
"Eu, solenemente, juro consagrar minha vida a serviço da Humanidade. Darei como reconhecimento a meus mestres, meu respeito e minha gratidão. Praticarei a minha profissão com consciência e dignidade. A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação. Respeitarei os segredos a mim confiados. Manterei, a todo custo, no máximo possível, a honra e a tradição da profissão médica. Meus colegas serão meus irmãos. Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais intervenham entre meu dever e meus pacientes. Manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção. Mesmo sob ameaça, não usarei meu conhecimento médico em princípios contrários às leis da natureza. Faço estas promessas, solene e livremente, pela minha própria honra."
Claro que sei que a vida do médico não é fácil, que muitas vezes trabalham em condições precárias, mas quando se assume um emprego, qualquer que seja ele, enfrenta-se o que se tem ou se pede para sair dele. O que não dá é para fazer de conta que se cuida, quando a doença não pode apenas fingir que existe. Ela provoca dor e morte. Onde estão, na consciência dessa médica, as palavras proferidas em seu juramento, “Praticarei a minha profissão com consciência e dignidade. A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação.”
O que constatei é que fica fácil para a população condenar o Estado, pois sente na pele a ineficiência do serviço de saúde, está faltando médico na hora em se precisa de socorro, está faltando lençol, a equipe de enfermagem não é suficiente, mas a população não sabe que o médico foi pago e que não está lá por causa de esquemas pessoais que fazem corar aqueles que abraçam a profissão por vocação, que o Estado paga ao hospital exigindo condições de instalação, que pelo contrato estão sendo cumpridas, que também paga para a enfermagem trabalhar e apoiar os pacientes.
O que leva um grupo de auxiliares de enfermagem, pagas pelo Estado, a não reagirem diante de uma mãe que berra de dor e de uma filha que faz um esforço enorme para conduzi-la para os primeiros socorros? O que faz um policial, pago pelo Estado para servir à população, a extorquir dinheiro de pessoas pobres, num momento de grande desespero? O que provoca no maqueiro, também pago pelo Estado, a roubar – a outra palavra para isso? – das famílias para que seus entes queridos sejam socorridos na sua dor?
Sei que não é fácil lidar com a dor, com a morte, e que, talvez, como mecanismo de defesa, os trabalhadores de saúde precisem se embrutecer para suportar o que vêem todos os dias. Se assim for, precisamos criar instrumentos de apoio que os ajudem a enfrentar esse dilema e devolva para cada um deles a dignidade humana, neles próprios e em todas as pessoas que encontrarem pelo caminho.
Precisamos resgatar o conceito de servidor público, pois este é pago pelo Estado com o dinheiro do povo, para servir com qualidade ao povo. O que não podemos é nos calar diante de situações como estas. Temos que denunciar e provocar uma nova forma de organização popular e de gestão pública, para que juntos, como co-responsáveis, façamos valer o direito de saúde para todos. Não podemos ficar apenas culpando o governo, os profissionais de saúde. Como cidadãos, podemos fazer a diferença na hora de agir, não aceitando o pagamento de propinas, não aceitando tratamento desrespeitoso, procurando os canais competentes para garantir nossos direitos.
Vamos fazer a nossa parte!

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