23.3.11



Fotos: Gabriela Vasconcellos

Aos poucos estou aceitando a ideia de como mudei de dimensão quando vim morar no paraíso. Enxergo coisas que nunca consegui ver antes, sinto cheiros e sensações que não estavam presentes no meu cotidiano, ouço sons que me passavam despercebidos. O corpo está em conexão com minha alma. Tenho certeza, como estou respirando agora, que, apesar de viver no mesmo tempo/espaço da maioria das pessoas que vivem como autômatos – eita, ainda lembro a época da informática -, vivencio os meus dias com uma consciência diferente, em harmonia com os ritmos da natureza, expressando o Sagrado em tudo que faço no meu cotidiano. E tudo isso tem acontecido de uma forma espontânea, sem a razão determinando os passos do meu fazer.
Da varanda do meu quarto, do terraço ou do jardim, posso ver a muralha de pedra constiutída pelos prédios de uma cidade, a minha cidade, que está logo ali. As luzes dos apartamentos refletem os sonhos e os medos de seus moradores. Fico só imaginado os segredos de suas vidas. Quais monstros precisam manter sob controle? Quais voos desejam realizar? Daqui mando passes de liberdade, numa humilde atitude de oração.
Estava vendo/lendo um livro de Sebastião Salgado no sofá da sala, agora cedo, e, de repente, entre o som do canto das cigarras, escutei algo diferente, forte, livre, feliz: era a fala de uma águia que havia pousado num eucalipto que mora bem perto da varanda. Fui apagar a luz do abajur do meu recanto de oração e me deparei com uma cigarra descansando no fio do interruptor. Ops! Cuidado para não a assustar. Comecei a lavar os pratos e a rã, que mora perto do escorredor, saiu saltitando toda alegrinha. Há borboletas, pássaros, lagartixas, muitos insetos. Hércules, nosso cachorro, já se acostumou com as visitas constantes dos pavões, dos tô-fraco e da siriema. Também vejo o sol e a lua nascerem por trás das árvores, vejo estrelas no céu. O sol, quando vai dormir, incendeia o ceú com suas cores vermelhas, laranjas e amarelas. Tudo fica dourado.
Aqui, neste pedaço de paraíso, sinto-me completamente dissolvida na natureza. Noutro dia, deitada na minha cama, vi a enorme lua iluminando o céu. Contemplei-a e fiquei escutando seu chamado com uma vontade louca de me perder em sua magia – ‘a lua me chama eu quero ir pra lua’. Nessas horas, meu corpo fica pesado, aprisionando o voo de minha alma. Não é a morte que desejo; é a dissolução no Todo ao qual me sinto conectada, numa sensação de pertencimento. Acho que deve ser assim com as águas dos rios quando chegam ao oceano. Elas não acabam; apenas se integram a algo maior. Só que a diferença minha para elas é que sempre souberam disso e eu só estou ficando sabida agora.
Mas há também um outro paraíso, onde a energia é a do mar, que me completa, que me faz sentir inteira. Estou morrendo, fraquinha mesmo, de saudades da música das ondas, das areias mornas, da água quentinha, das marias-farinhas, do balanço dos coqueiros, das aves que gorjeiam apenas lá, do cheiro de sargaço, do gosto do sal. Logo, logo, também estarei neste pedacinho de mim e, na alternância do campo com o o mar, poderei viver a experiência do yin-yang e me sentir inteira.
Comecei a folhear, com todo reverência, o Livro Vermelho, de Jung, que me dei de presente como uma forma de me sustentar no momento da imensa dor pela morte de meu pai. Desde que o peguei em minhas mãos, senti algo estranho, pois intuio que ali há muitos mistérios revelados. Não sei se estou pronta para encará-los, pois minha alma canta a mesma música que a de Jung cantava. Não foram poucas as vezes que pedi para ele me ajudar a encontrar meu verdadeiro caminho. Fui devagar, emocionada, passando uma folha aqui, outra acolá. As mandalas surgindo, as letras desenhadas numa língua que não entendo. Chegou o texto traduzido e via que naquelas páginas havia uma energia diferente, uma luz que iluminava e cegava, ao mesmo tempo. Li algumas trechos, lágrimas chegaram, como se eu fosse sendo despertada para um conhecimento que trouxe comigo quando vim para este planeta lindo. Assustada, encantada, participando das conversas de Jung com sua alma, seu self, seu anjo, ou sei lá que outros nomes se pode dar a essa Energia que fala – não é bem uma voz que ouvimos – dentro de nossas cabeças (ou corações?). Eu sabia o que ele estava vivendo, compartilhava sua angústia diante do inexplicável – ‘o essencial é invisível aos olhos, só se ver bem com o coração’, dizia O Pequeno Príncipe -, pois, desde que me entendo por gente, tenho esse mesmo tipo de conversa. Finjo que não é comigo, finjo que esqueço, finjo que isso é loucura. E ela, a alma, numa paciência amorosa, vai e volta, na insistente tentativa de me despertar. Lembro que já segui seu caminho em outras vidas e foram muitas as responsabilidades e dores vividas. Acovardo-me diante de seu chamamento. Sei que não poderá ser para sempre. A vida cobra o destino.
Ontem vi um monstro sair do esconderijo quando seu dono perdeu o controle. Tive compaixão porque sei que também tenho os meus e estes vivem bem trancados pela covardia de não sair do controle de minha consciência. Enquanto isso, meu inconsciente fica lá, esperando o momento de sua libertação. Quando? Como é deixar de ser cientista e se tornar artista?
Clarice dizia que escrevia para tentar entender o inexplicável para si. Não inventava. Acho que traduzia. Percebi, numa conversa com alguém especial, que não imagino, não invento histórias. Interpreto, apenas, coisas que explodem dentro de mim. Acontecimentos, sensações, sentimentos, recordações, saudades, ausências, fatos. A interpretação, para a alma que me habita, passa pela dança das palavras. Será esta a minha loucura?

Um comentário:

Louise Anne Vieira de Menezes disse...

Patrícia:
Como sempre você, com suas palavras, consegue tocar o meu coração. Emociono-me com as suas palavras. Mais uma vez, parabéns.
Beijos.