24.4.11

Encontrando o xamanismo siberiano - parte 4

27/03/2003 – 18:30h – Recife. 28/03/2004 – 0:30h – na Rússia.


Saímos de Moscou rumo à região da Sibéria, com temperatura média de -33 graus centígrados. Não consigo imaginar que frio é esse! Na chegada a Moscou me emocionei quando me lembrei de seus heróis e das lutas por um mundo mais justo. O clima era tenso porque tudo é proibido. Fiquei cinza, segundo Lígia, quando chegamos e vi uma mulher com roupas militares checando-nos numa fila. Gatilho de memórias passadas? Tentarei trabalhar isso em Roger (Roger Woolger, Terapia Regressiva Integral).
Esperamos muito tempo no aeroporto. Várias russas nos levaram roupas, botas e tudo o mais. Tudo espalhado pelo chão e nós a escolhermos o que cabia em cada um. Parecia uma feira da sulanca, comum no interior do nordeste brasileiro. Só podíamos ir ao banheiro em grupo e não podíamos falar a palavra ‘xamã’. Se nos perguntassem o que estávamos fazendo na Rússia, tínhamos orientação para responder que éramos turistas.
Troquei 20 dólares por 506 rublos. Só o jantar foram 220 rublos. E olhe que pedi café e um sanduíche de queijo aberto (veio uma banda de pão de caixa com uma fatia de queijo em cima). Como não entendi se aquele já era todo o pedido e gesticulei para o garçom perguntando se essa era a comida; ele entendeu que queria mais sanduíches e quase desmaiei com o preço. Resolvi manter as mãos embaixo da mesa e não provocar mais gastos extras.
Até o aeroporto de Moscou viajamos com o xamã russo Mukhomor e com a tradutora Irina. Já na Rússia no encontramos com Soledad (xamã chilena) e Sirena (xamã russa) que estavam com um grupo de chilenas. Como sempre, elas estavam lindas e simpáticas.
Ainda não fui ao banheiro, nem fiz higiene pessoal. Quando penso no chuveiro quente de minha casa.
Mukhomor tem sido maravilhoso, sempre muito cuidadoso, um verdadeiro ‘pai’. Para mim, uma experiência nova, já que estou mais acostumada a cuidar.
Estou vestida com duas meias-calça, uma segunda pele e duas calças, além de uma meia de lã. Arrumei uma bota de lã; na parte de cima, segunda pele, blusa de lã e um casaco de pele e couro. Meu cabelo já está oleoso e coloquei um laço que foi de minha mãe.
Estou com saudades de casa... Sinto-me numa Torre de Babel, com pessoas falando línguas diferentes e com visões de mundo tão singulares. Esse é mais um ponto para reforçar a minha aprendizagem de que tudo é ilusão.
Estou cansada e com a sensação de entrega semelhante a que tinha quando ia para a sala de parto ter meus filhos. Sinto como os amo e como amo muito meu marido.
Meus pés pesam, as calças apertam as pernas. Mais uma vez, refeições sendo servidas a bordo. Não sei mais se é almoço, jantar, as percepções de meu corpo estão se diluindo... Segundo Mukhomor, estamos indo em direção ao sol.
[...]
Chegamos a Novsimbisk e estava muito frio. O que chamam de aeroporto é um galpão, sem aquecimento, da época do Regime. Tudo é muito frio e de uma cor só, onde predomina a cor cinza; clima pesado; pessoas carrancudas. Tive que ir ao banheiro e quase tive um ataque histérico quando descobri que o vaso sanitário era apenas um buraco no chão – isso no aeroporto – e eu teria que fazer xixi aí, estando com um monte de roupas e, ainda por cima, menstruada. Descompensei e comecei a rir sem parar. Depois tivemos que arrastar nossas malas até um ônibus (antigo); os carros são velhos, as condições de moradia muito precárias. Fomos lanchar e só comi crepe com geléia. Peguei na neve pela primeira vez na vida e fiquei muito emocionada.
Fiquei conversando com um russo, Pavio, que não falava inglês. Imagine a mímica!!!! Vi bebês na rua tão encapotados e duros que pareciam bonecos. Crianças brincando de bolas de neve e trenós. Nos locais chiques, as mulheres andam arrumadíssimas e se pintam desde cedo, logo de manhã.
Depois do lanche fomos para um parque, onde havia um ‘hotel’, e aí eu paguei todos os meus pecados, pois tive que carregar a bolsa de mão, a mala e tudo o mais, por uma boa distância, numa trilha cheia de pedras e de neve. Segundo Mukhomor, ‘mala quadrada, cabeça quadrada’. A essa altura do campeonato a minha mala já estava sem rodinhas, arrancadas pelas dificuldades da estrada. Pra que tanta coisa, se não tomo banho há dias?!!! Meu cabelo parece uma lata de óleo.
Descansamos um pouco nesse lugar, que tinha uma energia muita pesada, como se tivesse sido um presídio político ou hospício, na época do Regime, afinal estávamos na Sibéria. Segundo Sirena, um local com muitos espíritos. O quarto era bem simples, com duas camas e uma pia. Tentei tirar a colcha, mas a dureza dos lençóis era pior. Realmente, eu, nesse momento, já estava desapegada de tudo e não sabia mais quem eu era. Só fazia rir, junto com Antonieta.
Nesse momento eu aprendi que mais nunca, em todas as minhas vidas, eu iria fazer uma mala daquele tamanho. A exaustão foi enorme. Depois tivemos que trazer as malas de volta para o ônibus e soubemos que o ônibus havia quebrado e que iria demorar, pois "os espíritos da Rússia são muito brincalhões e gostam de imprevistos", segundo Mukhomor. Começou a nevar. Parei, larguei minhas malas no chão e pensei: “Daqui eu não saio mais para lugar nenhum e vou escolher a melhor posição para morrer congelada”.
Para nossa salvação, apareceu um senhor com os olhos mais doces e o sorriso mais iluminado que já vi e nos disse: “Eu sou o Espírito da Sibéria. Estou feliz por vocês estarem aqui e lhes ofereço o meu melhor espetáculo”. Fiquei pensando que tudo depende da forma como se vê, pois eu estava entendendo a neve como uma tragédia e o Espírito da Sibéria entendia a mesma neve como um presente de boas-vindas aos visitantes!!! Depois ele nos levou para fazer exercícios, numa vivência de olhos fechados no meio da neve e da floresta, enquanto outros xamãs ficaram com nossas malas, esperando pelo ônibus.
Quando o vi pela primeira vez no ônibus o reconheci de imediato e pensei que fosse algum jornalista famoso. Perguntei depois para Soledad o nome dele e ela me disse que ele era um poderoso xamã de cura espiritual. Fiquei realmente impressionada. Depois, já durante o curso, eu sentia a chegada dele na sala, ainda que eu estivesse de costas. Chocante!!!!
Finalmente fomos para a estação de trem e fiquei, literalmente, apavorada. A estação é a céu aberto. Era noite e tínhamos hora para entrar no trem. O caminho era longo, tinha escadas e eu tinha que levar todas as malas; ainda por cima estava muito frio. Quem me salvou foi o meu amigo russo que levou minha malona. Ficamos divididos em dois grupos: vagões 5 e 8. Quando subi no vagão 8 havia uma fila no corredor, os russos gritando e nós, brasileiros, não sabíamos o que fazer, qual o nosso leito e tudo mais. O alfabeto russo é diferente e não sabíamos ler nada do que estava escrito no bilhete, nem o nosso nome!!!! Sirena chegou e leu para todos nós os números das cabines e dos leitos. Um russo gritava com Socorro (uma integrante do grupo, vinda da Paraíba), dizendo-lhe que aquele leito não era o dela; na agonia ela perdeu o passaporte; ninguém passava. Pauluxo (um integrante do grupo, vindo de São Paulo) com um monte de malas no corredor, Socorro desesperada, os russos gritando, eu com minhas malas sem saber o que fazer. Nesse momento o pânico foi tão grande que eu experienciei o nada; literalmente, fiquei paralisada. Depois de Sirena ler nossos bilhetes, acomodamo-nos nos leitos. Fiquei com Pauluxo e mais um casal de russos, já idosos, que colocaram seus pijamas para dormir. Estava muito tensa e, apesar do calor, só tirei o casacão grande. Mukhomor nos serviu um café quente. Não forrei a cama e dormi de botas e tudo. Acho que essa situação engatilhou alguma outra de vidas passadas. Não dormi bem. Às 5:30h nos acordaram para descermos. Levantei logo porque estava com muito medo de me perder do grupo e fiquei no corredor cuidando das malas, pois o horário estava errado. Vi pequenos vilarejos muito pobres, de apenas umas seis casas, com pessoas saindo para trabalhar e usando o trem como transporte.
Vi o sol nascer nas cidadezinhas e me apaixonei ainda mais pela Rússia. Adormeci sentada e Thaís (uma xamã brasileira) foi me chamar para deitar em seu leito. Adormeci até que chegamos a Barnau, região de Altay, onde um ônibus nos esperava e nos levou direto para o lugar sagrado, onde ficaríamos durante todo o nosso encontro. 
Nesse ‘hotel’, as instalações são ótimas. Ana e eu ficamos num quarto, deixando em outro, Lígia, Salete e Antonieta. Arrumamos nossas coisas e depois fomos conhecer Perun, um xamã maravilhoso.
A chegada ao hotel em Altay trouxe-me um alívio enorme, pois eu estava exausta e a possibilidade de um banho quente e cama confortável me sugeria o paraíso na Terra. Dessa vez as escadas e as malas não precisaram de uma batalha maior, pois havia pessoas para levá-las para nossos quartos. Menstruada, há quatro dias sem tomar banho, vestindo várias peças de roupa, percebi que a viagem tinha me ajudado a me desapegar dos meus hábitos, do meu mundinho ‘real’.
Agradeci a Mukhomor pelos cuidados na viagem e ele me respondeu que estava apenas sendo um canal do amor do Mestre.
Depois das acomodações (eles não usam chuveiro, mas uma ducha numa enorme banheira), fomos para nossa primeira prática, num salão aquecido do terceiro andar.
Sirena nos orientou a descermos com material para banho, para tomarmos uma sauna. Foi um ritual maravilhoso. Primeiro, ficamos num salão onde deixamos nossas roupas, fomos para uma ducha e tomamos, finalmente, banho; em seguida, ficamos numa sauna seca e, por último, caímos numa piscina gelada. Os xamãs usam muito o contraste do quente-frio para harmonização, pois os associam aos conceitos de yin-yang (lembrei-me da sabedoria da minha mãe).
Após esse ritual, trocamos de roupa e fomos para o salão aquecido, onde tivemos a prática de nossa primeira refeição em conjunto. Plásticos no chão e todos em volta para compartilharmos não apenas a comida, mas a energia do alimento. O cardápio foi arroz, saladas, frutas, pão café, chá, água e biscoitos. Aprendemos que os xamãs usam o arroz como alimento para promover uma limpeza energética no corpo. Depois da prática, fomos nos deitar e desmaiamos de cansadas na cama.
Em todas as refeições havia a intenção de compartilharmos o Divino. Começávamos com um Namastê e agradecíamos pelo alimento. A alimentação é feita com muita consciência, onde saboreamos cada alimento, sentindo-o pelo gosto, pelo cheiro, pela textura, pela beleza. As refeições são feitas em silêncio.
No outro dia acordamos às 8h e colocamos todas as nossas roupas de frio para irmos fazer exercícios, nossa prática matinal, ao ar livre. Corremos e fizemos vários exercícios que sempre tinham um objetivo ‘espiritual’ - como o desenvolvimento da nossa consciência – e nos aqueciam, obrigando-nos a ir tirando todos os casacos. A paisagem é exuberante, com neve, árvores brancas, pinheiros de Natal e muito cinza-prateado nos galhos secos das árvores. Todos os dias passávamos por esse ritual, As práticas variavam com bolas de neve, bonecos de neve, esqui, subidas às altas montanhas, descer montanhas de ‘bunda’ e tantas outras. Tudo é celebrado com muita alegria.
A princípio, tentei registrar tudo dia-a-dia. Não consegui, pois não me sentia mais tão ancorada na Terra e o meu racional não predominava tanto. Então, descreverei a partir de agora, situações vividas pelo nosso grupo, de acordo com minhas recordações e sentimentos pessoais. Da mesma forma, não conseguia levar a máquina fotográfica para as vivências, pois a energia do que estava vivendo não combinava com o registro frio de uma fotografia. Por isso, as fotos que se seguirão não estão na ordem cronológica do que vivemos em Altay, mas acompanharão descrições de minhas recordações.
Ainda no aeroporto de Moscou o grupo de brasileiros se encontrou com o grupo de chilenas. Entre elas estava uma senhora que estava tendo o seu primeiro contato com o xamanismo ali, pois havia resolvido vir para a Sibéria porque seu irmão estava com câncer, diagnosticado com pouco tempo de vida, e havia sido curado num ritual xamânico, conduzido por Mukhomor, deixando todos os médicos completamente estupefatos. Só encontramos o grupo de europeus em Altay.
Quando estava no avião, depois de sair de Moscou, sentei-me com um companheiro brasileiro, advogado cearense, que, quando me viu de luvas e cachecol branco de bolinhas pretas, começou a rir descontroladamente e me chamou de ‘101 dálmatas’.
Eu também comecei a rir porque estava igualzinha a um cachorrinho dálmata. Estávamos todos muito entrosados e alegres, ansiosos pelo que nos esperava em Altay. Os russos não falam nada de inglês e a comunicação com eles fica muito difícil. Tivemos dificuldade com nossos pedidos de alimentação no avião.
Fizemos muitas caminhadas na neve. Como sou muita pequena, a neve chegava à altura das minhas coxas, quase me sugando. Uma neve macia, que me envolvia com carinho.
Fizemos uma visita às montanhas sagradas de Altay. O ponto era muito alto e tivemos que pegar um teleférico. Não tenho como descrever a beleza do lugar. Fizemos meditação, visão de futuro, ritual de aiame (encontro com sua ‘alma gêmea’). Aproveitei para pegar pinhas secas que estavam no chão e que hoje estão na minha sala.
Quando estávamos lá nas montanhas, quase que em transe, chegou um grupo de turistas com barulhos, alvoroços, máquinas fotográficas e uma guia a contar a história do lugar. Percebi, chocada, que estávamos no mesmo espaço físico, mas víamos realidades completamente diferentes. Fiquei triste quando percebi que aquele grupo de turistas espelhava o meu comportamento no mundo ‘real’.
Num determinado momento de nossa caminhada nas montanhas, um grupo de russos começou a nos seguir. Não sei se eram policiais, mas estavam com gravadores e nos observavam o tempo todo. Nessa hora alguns xamãs sumiram com os russos que estavam no nosso grupo. Apesar de haver oficialmente liberdade religiosa na Rússia há muita corrupção na polícia e já ocorreu a prisão de alguns membros dos grupos que visitavam Altay com os xamãs para averiguação e esse grupo só foi liberado depois do pagamento de uma alta quantia em dinheiro. Podemos ouvir o canto dos pássaros, a música do vento; andamos de olhos fechados através das árvores dos bosques. Realmente, aqui, nas montanhas sagradas de Altay, sentimos o Espírito da Sibéria.
Fazíamos, à noite, muitas encenações de teatro. Também cantávamos e dançávamos. Tudo com muita alegria e festa. Ficava pensando nas festas aqui no nosso mundinho que sempre têm bebida e comida. Não havia bebida alcoólica, nem Coca-Cola, e a comida era muito leve, no momento do nosso jantar. Eu só comia meia fatia de pão com requeijão e meio copo de café; esse cardápio era repetido pela manhã e à noite. Quando percebi isso fiquei assustada pensando nos programas de televisão que via e que falavam sobre a alimentação via energia e que eu olhava com desdém. Agora eu estava vivenciando isso tudo e era verdade.
Numa noite fizemos um teatro com contos de fadas e tudo foi muito mágico e lindo. Percebi que os contos de fadas realmente nos falam numa linguagem universal, pois apesar das diferenças de língua, todos nós estávamos conectados com a energia de cada história.
Quando fomos esquiar senti algo muito estranho, pois percebi o cenário como algo que me era muito familiar. Nunca havia esquiado antes, mas os movimentos dos esquis e do corpo vieram naturalmente. Estranho, mas o que era comum nessa viagem?!!!
Quando chegou o dia 01 de abril, o xamã Perun nos perguntou se sabíamos que dia era aquele. Os brasileiros logo responderam que era o nosso Dia da Mentira. Mas era o dia do início da Primavera. Como por mágica, os pássaros chegaram, os rios começaram a degelar, o verde apareceu. Mukhomor comentou que nós brasileiros temos tanta vida na nossa natureza que não sabemos o que é a morte e, por isso, não compreendemos e valorizamos a vida.
Nesse dia, à noite, tivemos nossa noite de gala e fomos orientados a vestir roupas bonitas, com adereços, lenços, maquiagem e tudo o mais. Fizemos teatro para expressar o nosso primeiro contato com o xamanismo. Nosso grupo relatou o meu encontro com o xamanismo e foi muito divertido.
Depois de todos os grupos se apresentarem, os xamãs trouxeram muitas tortas cheias de cremes e começaram uma brincadeira de passar torta na cara, desmanchando assim toda nossa imagem de elegância. Eles queriam que refletíssemos a respeito do apego e da nossa ilusão quanto aos papéis que desempenhamos na nossa vida. Depois do mela-mela, fomo tomar sauna. Foi uma experiência de liberdade. Apenas nessa noite vesti o casaco de peles de minha mãe, enorme e pesado, que levei durante toda a viagem. Mais uma lição.
Sempre começávamos nosso encontros com a saudação Namastê!, que significa: o Deus que está em mim, saúda o Deus que está em você. Lindo!! Depois da saudação recitávamos o mantra da egrégora de Shambala:

NAMO SOTIDANANDA ANA PARAM ANANDA SWASTI

Aprendemos, também, essa belíssima oração:

Oh! Imensa Força Divina, neste exato instante, eu vos peço:
Que me abra o coração e ilumine a minha mente, para que eu possa compreender esta grande verdade que é a minha vida, e eu vos peço isso, não só por mim, mas para a vossa glória e pelo bem de toda a humanidade.
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém.
Aummmmmm...





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