10.11.08

Era uma vez...


Hoje deixei livros que escrevi com meus textos da fase acadêmica numa livraria. Confesso que, apesar de ainda não me considerar escritora porque estes não vieram de minha imaginação, fiquei emocionada. Não é que, aos pouquinhos, meu sonho de ser escritora vai se tornando realidade?! Já publiquei textos em duas coletâneas. Agora me organizo para publicar meu primeiro livro de verdade, uma história para crianças, ricamente ilustrada por uma mulher fantástica que se apaixonou pelo enredo e criou cenários belíssimos. Essa história eu contava para meus filhos quando eram crianças e vinham se deitar na minha cama com fraldas e mamadeiras. Era uma das nossas muitas histórias de boca, assim chamávamos as histórias inventadas. Quero compartilhá-la com outras crianças pequenas, pois meus filhos já estão grandes e não querem mais esses momentos mágicos.
É mágico, também, o passar do tempo. Ontem, eles eram bebês e eu os guiava pelos caminhos da vida segurando suas mãozinhas. Agora, muitas vezes, são meus filhos que me guiam para novas descobertas. Estive ontem à noite no Recife Antigo para assistir à apresentação de teatro de bonecos – sou fascinada por eles e tenho até um Benedito. Fui com minha filha, freqüentadora dos bares da região. De repente, segurou em minha mão e saiu me puxando e me orientando para chegarmos ao melhor lugar. Olhei para ela cheia de orgulho. Minha filhota cresceu e hoje é uma mulher linda que sabe o que quer. Agradeci ao Universo por mais um momento de magia.
E ainda dizem que fadas não existem. Pode?

4.11.08

Encontrei com uma amiga que não via há muito tempo. Fomos colegas de colégio e de faculdade. Fiquei em estado de choque ao descobrir que ela ainda estava casada com o seu primeiro marido, que também era seu primeiro namorado, que ainda trabalhava no local de seu primeiro estágio e primeiro emprego, que seu marido ainda trabalhava no mesmo setor do seu primeiro emprego e que ainda mantinham a mesma rotina de mais de 20 anos atrás.
Se isso tivesse acontecido comigo ou teria morrido de tédio ou teria enlouquecido. Percebi que a beleza da vida está nas diferenças. Que bom que podemos ser felizes percorrendo caminhos tão diversos! O mito do herói nos mostra que não adianta seguirmos fórmulas prontas, pois a jornada de cada herói é única. Enfrentamos os desafios que precisamos para evoluir.
Essa minha amiga viu meus filhos, conheceu meu terceiro marido, que por sinal havia morado no prédio dela com sua terceira esposa – eu sou a quarta -, soube que eu havia mudado de profissão pela terceira vez – já trabalhei com informática, com psicologia e agora quero ser escritora -, e comentou:
- Você sempre foi assim, revolucionária.
Foi o nome que ela encontrou para o que alguns e algumas chamam de loucura. Mas a verdade é que nunca me conformei com o morno. Adoro a intensidade e juro que até que tentei a mediocridade, mas algo sempre me impele para o novo. Começo projetos, estabilizo-os e já me lanço em outros desafios. Antigamente isso me angustiava, mas hoje entendo que é o meu dom, o meu jeito de ser no mundo. Então, aproveitemos esse talento.
Mais para bruxa que para fada, compreendi que ajudo outras pessoas a realizarem seus sonhos aqui na Terra. É a minha forma de apoiar cada uma delas a manifestar o Sagrado por aqui.
Tive um sonho, sonho mesmo, desses que a gente tem quando dorme, em que uma pessoa me perguntou na presença de outra:
- Doida?, dirigindo-se a mim.
- Feliz!, respondi eu.
Sinto-me livre para ousar e procuro seguir sempre o meu coração, pois acho que o Grande Espírito fala comigo através dele. Confio na vida e nela me jogo sem medo.
Deus proverá.

25.10.08

Quanto custa?



1 l de leite gelado

3 col (sopa) de Nescau

2 col (sopa) de Sustagen Kids

2 col (sopa) de leite Ninho

15.10.08

Sandálias

Estava eu numa cidade do interior pernambucano quando vi um grupo de meninos brincando pelos muros. Falei com um deles sobre o perigo de se machucar. Viram que eu estava com um broche brilhante e me pediram de presente. Começamos a conversar.
- Por que você está sem sandália? – perguntei.
- Porque a mãe dele morreu. – respondeu um amigo.
Ele, simplesmente, baixou o olhar.
- Como assim, porque a mãe dele morreu? Sua mãe morreu como?
- Morreu afogada no açude.
- Ah!
De novo, outro amigo fez uma intervenção.
- Ela morreu porque quis.
Aquele silêncio no grupo e meu coração cada vez mais apertado.
Continuou, então, a história.
- Era doente dos nervos.
- E você vai à escola descalço? – perguntei perplexa.
- A professora deixa, respondeu outro.
Dirigi-me ao menino, que continuava cabisbaixo e perguntei:
- E seu pai?
- Ele tá preso porque brigou com um homem de arma e matou ele.
Outro silêncio. Comecei a perguntar o que ele pediria a uma fada se ela aparecesse ali, naquele momento.
- Uma sandália, um sapato e uma roupa. Ah! Se pudesse, um carrinho vermelho.
Nessa hora os outros meninos começaram a fazer pedidos também. Argumentei que quem mais precisava ali era aquele que não tinha mãe, como eles mesmos haviam me dito. Então, meu novo amigo levantou o olhar e disse com coragem:
- A mãe dele também é doente dos nervos. E a dele também.
Sentimento de pertencer a uma tribo, ainda que dos excluídos. Não estava mais só.
Comecei a brincar perguntando que história era aquela de tantas mães doentes dos nervos. Contei que tinha filhos e que brigava com os meus, que perdia a paciência algumas vezes e que isso não significava que fosse doente dos nervos. Responderam que não era assim que as deles agiam e que eram doentes dos nervos mesmo. Conversamos mais um pouco, abraçamo-nos na despedida e fui embora sem fala.
Quanta coisa dita numa única frase:
- Porque a mãe dele morreu.
Aqui estão caracterizados o abandono, a falta de cuidado, a ausência de um ninho. Mora com a avó em um distrito dessa cidadezinha, em condições mínimas de sobrevivência, com o auxílio do bolsa-escola.
Visitei sua casa no outro dia e levei uma sandália para colocar quando fosse à escola. Conheci sua família, vi sua realidade, dura realidade. Sorriu quando nos encontramos.
No Dia das Crianças levei o que havia pedido à fada. Fui com meus filhos, meu marido. Apresentei-lhe minha família. Quis que ali fosse um encontro de duas pessoas, com histórias diferentes, mas duas pessoas, marcadas pela singularidade característica dos humanos. Não quis uma estatística, não quis um projeto governamental, não quis explicações sócio-econômicas, antropológicas, psicológicas. Não quis análise de dados sobre a violência ou sobre a exclusão social, menino negro, pobre, órfão de mãe, analfabeto, nordestino, pai preso, apelidos pejorativos, dificuldades de aprendizagem. Não quis pensar no futuro. Prendi-me ao instante, ao encontro dos nossos olhares que diziam muito mais que as palavras. Conectei-me ao enorme sentimento amoroso que emanava de meu peito. Não era um amor meu, era algo do Sagrado e eu apenas estava sendo canal.
De verdade, acredito em fadas, duendes, gnomos, príncipes encantados. Acredito em magia, acredito que o belo transforma e que o encantamento é o caminho para a esperança e para a fé na Vida.
Sonho com um mundo em que as crianças também acreditem em magia e que os adultos acreditem em milagres.

13.10.08

Se Maomé não vai à montanha...























Neste final de semana levamos livros para a feira de Lagoa dos Gatos. Foi uma experiência e tanto. O trabalho começou bem antes, com a separação dos livros, o transporte para a barraca logo cedinho, as bolhas de sabão. As pessoas se aproximavam um pouco desconfiadas, pegavam os livros, perguntavam se tinham que pagar alguma coisa. Quando descobriam que poderiam levar quanto livros quisessem e de graça, o entusiasmo se revelava no brilho do olhar. Apareceram crianças, idosos, jovens, professoras. “Tem livro de poesia? Eu queria um que me mostrasse todos os países do mundo. Tem Paulo Coelho? Quero de Cinderela. Tem de Psicologia? Adoro Paulo Freire. Posso levar muitos para trabalhar com meus alunos em sala de aula? Queria um de Matemática. Tem de Biologia? Adoro romances. Já li Machado de Assis, tem aí?”
De repente, nossa barraca estava lotada e mal conseguíamos atender todo mundo. Anotávamos nomes e livros e só.
Deu certo, muito certo, pois emprestamos mais de 200 livros. Uma criança que estava ajudando o pai na banca da feira veio um montão de vezes e pegava mais livros e lia lá mesmo e pegava mais. Algumas mães vieram devolver os livros com medo que seus filhos os rasgassem. Insistimos que levassem os livros e que não teria problema se isso acontecesse, pois as crianças precisariam entrar em contato com o mundo da leitura.
Saímos exaustos e felizes, comprometendo-nos a voltar dentro de um mês.
À tarde, mais cultura. Exibimos filmes da Turma da Mônica numa escola pública de uma comunidade carente. Conversamos sobre a vida na cidade grande e a vida no campo e descobrimos que as crianças preferiam a tranqüilidade da vida numa cidade do interior. Distribuímos bombons, pipoca e refrigerante. Brinquedos e dudus na saída.
Organizamos também a exposição de fotografias Então, é Primavera noutra escola pública do município, oportunizando o contato de jovens com o mundo da fotografia.
O ritmo das atividades foi intenso, trabalhamos muito, mas voltamos realizados e conscientes de que apenas começamos a caminhar, pois a jornada é longa e há muito ainda por ser feito.
Valeu!

8.10.08

Com a força do povo















Participei, pela primeira vez, mais de perto de diversas campanhas eleitorais no estado de Pernambuco. Algumas para prefeito, outras para vereador. Adorei todo o processo e, confesso, surpreendi-me com o que ocorre nos bastidores. Nós, meros eleitores, não temos idéia do trabalho que existe na construção de um projeto eleitoral. Inúmeras discussões para a elaboração de planos de governo, visitas às comunidades para conversas e levantamento das necessidades, novas visitas para a apresentação das soluções propostas pelo candidato. Para os que disputavam a reeleição havia o balanço do que já foi realizado e o planejamento do que ainda precisava ser feito.
A experiência que tive não combina com as idéias do senso comum de que tudo o que os políticos apresentam é para enganar o povo e só conseguir o voto. Foram horas e horas de discussões buscando a melhor solução para cada problema levantado.
Vermelha há muito tempo, aprendi a tirar o chapéu para um candidato amarelo, Galego, prefeito de Jurema. Menino pobre, saiu como retirante para tentar a vida em São Paulo. Ele conta que quando estava indo embora, com o coração cheio de saudade, olhou para trás e viu a igreja matriz e duas colinas que cercam a cidade. Guardou essa imagem no coração e prometeu voltar e ajudar seus conterrâneos a terem uma vida decente para que não tivessem que passar pelo que estava passando. Cumpriu a promessa. Voltou, tornou-se prefeito da cidade e trabalhou quase que 24h/dia pelo seu povo. Acordava cedinho, ia para os postos de saúde, checava as escolas, visitava os sítios e por aí vai. Contam que, em segredo, sem alardear para ninguém, ajudou muito sem-teto a ter sua casa, contribuindo com o dinheiro de seu próprio salário. Isso não sei se é lenda ou se é verdade. Se fosse para apostar, eu ficaria com a segunda opção. Seu gabinete vive lotado de gente. Ouve todo mundo e procura ajudar da forma que consegue. Seus assessores enlouquecem com tanto trabalho. Lembro-me de uma frase de Miguel Arraes que era mais ou menos assim “o possível a gente faz e o impossível o povo ensina a gente a fazer”. Galego é assim, um administrador público que honra seu cargo, ‘estou aqui para servir ao povo; foi para isso que fui eleito’. Encontrou a cidade desfalcada após 20 anos de administração pública familiar, onde uma família entendia que a cidade era seu curral. Contas atrasadas, município sem crédito. Trabalhou muito e hoje a situação já permite uma administração mais tranqüila. Campanha difícil e bonita, muito bonita. Seu último comício foi emocionante. O povo tomando todas as ruas, carreata, caminhada, homenagens e, ao final, um pedido de paz. Lindo!
Nas viagens que tenho feito pelo interior do estado pude conhecer uma Secretária de Trabalho e Ação Social que é um escândalo de boa. Chamam-na de Mili e é de Lagoa dos Gatos, terra de minha mãe, um município com um dos piores índices de desenvolvimento do estado. Acho que nunca cheguei lá num final de semana para não encontrá-la trabalhando, com a secretaria aberta e o povo resolvendo seus problemas. Pense numa mulher que pensa no povo.
Também participei ativamente da campanha de Arlindo Siqueira para prefeito de Olinda. Ele não foi eleito, mas jamais esquecerei as reuniões que varavam a madrugada para discutirmos o que poderíamos fazer pelo povo de sua amada cidade. De verdade, Arlindo é um autêntico olindense e ama sua terra e sua gente. Ainda não foi dessa vez.
Viajei ao lado de Roberto Arrais, um dos homens mais íntegros que tive a oportunidade de conhecer. Ele acredita na construção de um mundo mais justo e mais belo, sendo o caminho a transformação social. Alguns acham que é ingênuo, que as coisas mudaram e que militante é coisa do passado. Age com a convicção de que um dia os sonhos de Gregório Bezerra, Prestes, Dom Hélder Câmara, Paulo Freire, Patativa do Assaré e tantos outros se tornarão realidade. E faz a sua parte. Tenho aprendido com ele e tentado fazer a minha. Compartilho com ele a vida e a esperança na beleza da vida e na justiça para todos os povos.
Vejo meus filhos conversando sobre política, sobre problemas sociais, sobre possíveis soluções e fico encantada com as posições que assumem. Lembro-me do sangue derramado por tantos que sonharam e acreditaram que um dia, no nosso país, novamente a liberdade seria possível. Se hoje nos reunimos em praça pública e defendemos nossas posições é porque alguém construiu há algum tempo esse caminho para a nossa geração e para a geração dos meus filhos. Novamente a esperança me alenta.
Uma imagem, quase sempre, revela a mensagem de algumas muitas palavras. Acho que a foto da casa de um agricultor num acampamento de sem-terras traduz o que sinto e penso. Desistir, jamais.

3.10.08

Então, é Primavera













Organizamos uma exposição de fotografias com flores do nordeste brasileiro, do Japão e do Canadá, registradas por dois fotógrafos: uma mulher bem jovem e um homem maduro.
Percebi que a sensibilidade não é algo que se adquire com a idade. Jovens podem ser bem sensíveis e, com suas atitudes, interferir no mundo para que esse seja melhor e mais bonito. Apesar da diferença de idade dos artistas, não se conseguia distinguir quando a foto era de um e quando era de outro. Essa descoberta me encantou e me encheu de esperança por dias melhores: os jovens de hoje serão os maduros do amanhã e eles estão muito mais preparados que nossa geração para a construção da harmonia entre os povos e para uma postura de respeito à natureza.
Enquanto arrumávamos o local da exposição, várias pessoas que estavam participando de outras atividades no espaço colheram flores pelo jardim e vieram nos ajudar na decoração. Mais um momento de encantamento e aprendi que o belo realmente transforma lugares e pessoas.
Ambiente acolhedor, boa música, flores nas fotos e nos vasos, sucos, saladas e tortas, incensos, velas, e, principalmente, convidados sensíveis à estação das flores. Não importa a idade, não importa o lugar, com sua exuberância de cores e cheiros, a Primavera sempre nos convida para um novo recomeço, lembrando-nos que a vida e sua magia devem ser celebradas.

1.10.08

Autoria

Reunião da escola. Pais aflitos porque seus filhos não estão atingindo todas as metas pedagógicas. Educadores angustiados orientam os pais para que vasculhem escondido as bagagens de seus rebentos procurando bebida.
Saio perplexa. Que mundo é esse? Qual a relação construída por pais e filhos na contemporaneidade? Pensava eu que seria algo baseado na confiança, na liberdade e no amor. Pais são amigos, são confidentes, são o porto seguro e não, agentes do serviço secreto.
Outra reunião de pais. Professores das diversas disciplinas apresentam os objetivos trabalhados e o quanto as turmas estão aquém do que foi planejado. Só querem amar, diz um; estão indisciplinados, diz outro; vocês precisam obrigá-los a estudar, tem o vestibular, o mercado exige.
Mais estupefata estou. Em que mundo vivo? Será eu a única alienada ali? Tento provocar uma reflexão sobre a não importância das notas, sobre o quanto é importante estarmos focados na formação da cidadania, no espírito críticos desses jovens que daqui a pouco tempo serão adultos exercendo o seu papel no mundo. Por que ninguém se pergunta se esses alunos, nossos filhos amados, estão felizes? Por que o foco é o sucesso? Por que ninguém ali se lembra da época maravilhosa dos nossos 15 anos?
Estou lendo um livro que fala sobre os conceitos freudianos: complexo de Édipo, castração, o grande Outro, o filho como falo da mãe. Essas reuniões de pais e mestres na escola comprovaram a teoria. O êxito do filho, nos moldes estabelecidos pela sociedade capitalista, significa que a família foi competente na educação. Ninguém está vendo o estudante como Sujeito, como autor de sua história. Ele continua preso na posição de objeto com a função de atender os desejos do Outro. Será preciso uma longa jornada, cheia de dores, doenças, depressões e lexotan, para que a pergunta primordial se instale: qual é o meu desejo?
Conheço jovens que estão na contramão da onda. Um deles lê muito, muito mesmo, tem postura crítica, é solidário, criativo, inteligente e carinhoso. Apresenta muitas dificuldades ortográficas e questiona o sistema educacional vigente. A escola sugere aulas de reforço e um acompanhamento mais de perto dos pais para que faça as fichas de leitura dos livros trabalhados em sala de aula. Outro jovem só tira notas boas, questiona o mundo, é sensível e carinhoso, usa calças lá embaixo, deixando a cueca aparecer e tem tranças no cabelo. A família da namorada não o quer como genro, pois parece um garoto irresponsável e drogado. Uma jovem é estudiosa, passou no vestibular, é alegre, cheia de vida e tira suas máscaras assumindo suas escolhas. As amigas a acusam de só pensar em si e se sentem ameaçadas com sua liberdade. Imagino o quanto deve ser difícil para esses três assumirem os seus desejos e não se submeterem ao que foi determinado por uma sociedade hipócrita, cujos membros fogem de suas verdades como o diabo foge da cruz.
Até quando vamos continuar privilegiando nossos medos? Até quando vamos carregar conosco nosso maior inimigo que é a liberdade que temos de escrevermos nossa própria história?

30.9.08

Fragmentos

Andava pelo centro do Recife quando vi um homem de meia-idade escrevendo com pedra numa lousa o valor de algum produto que iria vender. De repente, virou-se para uma senhora que estava perto e gritou:
- Ô, Creuza, 4trocentos tem quanto Os?
Na hora que escutei a pergunta, sorri maravilhada com sua inteligência e encantada com a riqueza da língua. Mesmos signos e inúmeros significados. Lembrei-me do inconsciente freudiano. Resolvi que escreveria um texto sobre o que tinha presenciado e fiquei matutando como grafaria o falado sem perder a originalidade. Pensei, pensei e, nas minhas limitações, não descobrir recurso lingüístico que me socorresse. Por isso, reproduzo a sabedoria popular:
- Ô, Creuza, 4trocentos tem quanto Os?

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Campanha eleitoral pegando fogo em Recife. O prefeito, muito popular nas classes menos favorecidas economicamente, está sendo acusado de uso da máquina administrativa. Li no jornal uma nota que relatava a conversa entre dois homens do povo.
- Você viu a confusão que o prefeito se meteu?
- Vi. Tão dizendo que ele usou a máquina.
- Que máquina?
- Não sei direito. Parece que foi a máquina Xerox.

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Saiu no jornal uma pesquisa que afirma que mais de 80% das crianças que não sabem nem ler nem escrever freqüentam a escola. Uau! Surge a pergunta: as escolas fazem o quê?
Várias respostas. A culpa é dos alunos. A culpa é das famílias. A culpa é do governo. A culpa é dos professores que não se empenham para ensinar direito. Esta última foi dada por um especialista em educação. Penso, cá com meus botões, que esse cara é um babaca, que fica sentado atrás do seu birô, numa sala com ar-condicionado, sem andar quilômetros para ir até a escola que leciona, enfrentando sol, chuva e lama. Nunca enfrentou uma turma superlotada e quente, com bancas quebradas, alunos famintos e violentados. Nunca ficou imaginando, enquanto aluno, o que danado seria a tal da uva que todo vovô vê nas cartilhas e que ele não consegue decifrar “Vovô viu a uva”. Os desenhos do papel, que lhe dizem serem letras, não contam histórias com algum significado para ele. Será que a uva é parecida com a jaca? Ou será com a manga? Será algo como a vaca?
Imagino que para intelectuais que habitam apenas os livros o discurso para culpabilizar a precária formação dos professores brasileiros é confortável. A minha pergunta é: se todos os professores fossem capacitados num programa organizado pelo tal especialista esses dados mudariam? Acho que Paulo Freire é um dos que pode dar a resposta.

8.9.08

Lagoa dos Gatos
















“Se algum dia, à minha terra eu voltar...”
Foi assim, emocionada como na música, que voltei a Lagoa dos Gatos, terra de minha mãe, junto com meus filhos, meu marido, minha babá, a babá de meus filhos e nosso motorista. Os meninos estiveram lá quando crianças e não lembravam nada.
Adoraram a surpresa da casa. Tudo pronto e arrumado para eles. Bombons, escovas de dente, DVDs preferidos, todos os detalhes para que se sentissem em nosso lar. O marido ainda não tinha visto tudo pronto e ficou encantado com a transformação de cômodos vazios num ninho de amor. Eu estava em êxtase. Não dava nem vontade de sair. Perdemos o teatro, perdemos o show, perdemos o desfile. Aproveitamos cada minuto, só nós, juntinhos. Comemos camarão, founde de queijo, churrasco, morangos, sorvete de chocolate. Vimos dvs e ouvimos muitos lps.
Nos passeios pela lagoa, brincamos com o gato. Contei o que fazia quando ia para lá quando a criança era eu. Fomos visitar nosso terreno. Adoraram as árvores, a vista, as pedras, a cacimba, os cupins, as formigas e as abelhas. A dor da picada do maribondo não me abateu. Escolhemos o local da casa num lugar alto, com vento e uma paisagem de tirar o fôlego.
Seguimos em frente e, depois de muitas ladeiras, chegamos ao sítio que foi de meu avô materno. Os pavões faziam um alvoroço enorme. Descemos para a bica e lá relembramos as famosas farras da família Souza Lira, com músicas, cachaça e alegria. Tomamos banho de bica, de açude e de piscina. Brincamos muito e até ouvimos vozes do além.
O tempo nos cobrava a volta. Saímos de lá com a certeza de que isso foi apenas o começo e que nunca mais iremos ficar tanto tempo longe.
“Eu vou partir, não aceito desacato, adeus terrinha santa, adeus nossa Lagoa dos Gatos.”

4.9.08


















Tive outra experiência mágica. Minha vida anda cheia delas. Participei do curso do Programa Nacional de Gestores Ambientais, na sua última fase em Pernambuco. Nesta etapa, nove, das dez etnias indígenas pernambucanas, fizeram-se representar. Havia caciques e outras lideranças das diversas aldeias. Trouxeram seus apetrechos indígenas e andavam de cocares, colares, apitos, maracás, lanças e caras pintadas.
Todos ficaram hospedados num hotel campestre, em regime de reclusão. A cada dia, antes das aulas começarem, os índios faziam um ritual e explicavam que era assim que faziam nas tribos deles. Invocavam Tupã e outros deuses e diziam que o Deus era um só. Cantavam músicas na língua nativa. Imitavam o som dos pássaros. Ensinaram-nos que tudo na natureza tem vida, tem espírito, e, por isso, uma árvore não é apenas uma árvore, mas algo sagrado, uma irmã que compartilha a vida aqui no Planeta Terra, nossa mãe.
Lembrei-me da Carta do Cacique Americano. Lembrei-me de Francisco de Assis, Lembrei-me de Chico Mendes. Todos defenderam as mesmas idéias que agora a ciência consegue provar como verdadeiras. O Universo é todo energia e tudo está conectado.
E como se resiste a essas verdades. Lá, no encontro, eles prestaram uma homenagem a um parente, é assim que chamam os índios das tribos diferentes das deles, que havia sido assassinado por brancos numa luta pela posse da terra. Crime encomendado, coisa de pistoleiro. Desde 1500 é assim. Será até quando?
Na quinta-feira à noite organizaram um ritual ao redor da fogueira. Dancei até tarde junto com eles, em círculo, porque dançam assim, moram assim, e nos mostram que na vida não há hierarquias, ninguém é melhor que ninguém, e que a mandala é a forma perfeita para captação da Energia do Grande Espírito.
Na sexta, pela manhã, fui assistir a uma defesa de Mestrado. Tive um choque cultural. Tudo precisava ser provada pela razão. A lógica reinava soberana. E me dei conta de que tudo aquilo ali seria incapaz de explicar o que eu havia sentido e vivido na noite anterior. O mundo civilizado ainda não tem as ferramentas cognitivas, termos científicos, para compreender a sabedoria de uma cultura que vive tão intimamente conectada com a Natureza.
Há de se aprender com os indígenas.